O senador Lindbergh Farias nos brindou com um discurso no qual alerta para o preconceito sofrido pelos evangélicos, deixando implícita a falsa equivalência entre este e a homofobia. O discurso - já criticado à exaustão pelos próprios companheiros de partido de Lindbergh - tinha a intenção de defender o pastor, milionário, e homofóbico Silas Malafaia, aquele que há menos de dois anos atrás dizia a seus correligionários que o PT de Lindbergh era a representação do diabo na terra. Não é desprovido de lógica política - afinal, a principal base eleitoral de Lindbergh, a Baixada Fluminense, é das regiões mais evangélicas do Brasil. Mas, compreensível e tudo, é de uma desonestidade intelectual que dói o fígado.
Primeiro de mais nada, é bom ressaltar que (como boa parte das falsas equivalências) a afirmação "existe preconceito contra evangélicos* no Brasil" está inteiramente correta. Existe mesmo, e é associado intimamente ao preconceito de classe, já que as igrejas neopentecostais se espalharam primeiro nas periferias e favelas das metrópoles, pouco assistidas seja pelo Estado seja pela Igreja Católica. O estereótipo é a empregada crente, não (como nos EUA) uma família de classe média crente. Não se trata apenas da reação ao extremismo religioso, porque não existe o mesmo preconceito contra católicos. Políticos Brasil afora rezam alegres em Te Deums sem serem chamados à atenção, e capelas católicas se espalham pelos palácios. Nossa Senhora Aparecida é feriado nacional; quando falam em instituir o dia do evangélico,** chora-se a morte do estado laico.
A mentira de Lindbergh, construída sobre essa verdade, é dupla. Uma de que o preconceito contra evangélicos motivaria os ataques verbais contra Silas Malafaia. Ora, o que motiva alguém a ter raiva contra Malafaia não é nenhum preconceito, é o fato de ele se destacar primariamente como porta-voz da homofobia e do preconceito em geral. O (milionário) pastor não é discriminado porque é crente. É atacado porque ataca, porque quer manter e aprofundar a discriminação que nega cidadania a milhões de brasileiros. A fala de Lindbergh é como dizer que ataques contra Hitler se baseiam no preconceito contra bávaros.
Mais insidiosa, porém, é a falsa equivalência construída pelo senador - que, como não é central ao aparte, pode ter sido inadvertida. Querendo deixar claro que também é contra a homofobia, Lindbergh equiparou-a ao preconceito contra evangélicos. Deu margem, assim, a um discurso maior, ligeiramente diferente, aquele que fala de "cristofobia." Ora, se o preconceito contra evangélicos é real (embora nem de muito longe se compare à homofobia), falar de cristofobia, no Brasil (em alguns outros lugares - como a Arábia Saudita - tudo bem), parece piada.
Há gente que fala mal do cristianismo, ou da religião em geral? Há, e tem gente que conheço que a ser chata de tanto fazer isso. Moralmente, suponho que possa ser dito que o preconceito contra um e outro, sendo equivalentes, se equivalham (é um grande "se," esse "sendo equivalente). Mas politicamente - que é o que interessa quando se passa para o debate público - o preconceito ganha uma dimensão que está bem longe da moral. Mesmo ignorando-se os efeitos legais, coercivos do preconceito, é muito diferente você ter um sujeito ou outro que bradam contra você (qualquer que seja sua identidade) de você ter uma organização sistemática da sociedade nesse sentido. Um sujeito te discriminando é um maluco preconceituoso; a sociedade te discriminando te torna um pária.
Não é "apenas" uma questão dos danos psicológicos e morais envolvida com essa exclusão. Ao fora-da-sociedade, são retiradas as garantias e direitos que aqueles que estão dentro da sociedade detêm. Em tempos idos, isso era legalmente codificado - e era considerado o equivalente a uma sentença de morte, cuja execução o Estado delegava a quem se interessasse. Hoje em dia, não há lei que diga que um homossexual pode ser morto sem que seu atacante tenha cometido assassinato. Não explícita, pelo menos. Perto disso, o pior que se tem do preconceito contra evangélicos (de novo - não contra cristãos***) é "crente é chato," ou "crente é brega."
*Ou, antes, contra neopentecostais, que é o que a palavra "evangélico," ou "crente," veio a significar para a maioria das pessoas. As igrejas protestantes históricas, como a luterana ou a metodista, não se encaixam no mesmo grupo, nem sofrem o mesmo preconceito. Nem exibem, na maioria dos casos, o mesmo radicalismo no preconceito - aliás, estão atualmente bem melhores do que a Igreja Católica.
**Admita-se que o tal dia é bizarro - gente que bate no peito para se dizer temente a Deus, que se autodefine primariamente por essa condição "elevada" de absorção no Divino... e o feriado que quer comemorar é homenageando a eles mesmos, não a Deus.
***A não ser que se concorde com os próprios evangélicos, para quem não-evangélicos não são cristãos. Não é por acaso que a palavra que oximoronicamente os divide de outras religiões é "crente," ou em bom inglês "christian."
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