Já tem quem diga que o crime cometido pelo tenente representa uma "volta do AI-5." Besteira. O crime foi denunciado, está sendo investigado, e muito provavelmente será punido. A reação do Estado à atrocidade cometida é até muito melhor do que a que normalmente ocorre em situações semelhantes - não custa nunca lembrar dos milhares de mortos pela polícia brasileira todo ano, muitos com requintes de crueldade.
As condiçóes que tornaram possível a atitude do tenente é que são vergonhosas e sistêmicas. A saber:
1 - O uso do exército para policiamento. Esse uso só pode ser considerado natural num país em que o uso da polícia como exército de ocupação foi generalizado. Exército não é polícia, não funciona como polícia, e não coíbe o crime. Serve para matar inimigos, não manter a ordem. A escala do problema do uso do exército, no caso, é até pequeno comparado ao uso da polícia militarizada. Isto é, não faz diferença o exército ou a polícia fazerem o policiamento, já que a polícia virou exército, mas a polícia está agindo como exército em uma área muito maior.
2 - A cultura corporativa do exército brasileiro, que continua, apesar de estarmos no mais longo e profundo período democrático da história brasileira, sendo a cultura de um exército golpista. Antidemocrática e antipopular. Não se questiona um superior, ainda mais quando se trata de impor a autoridade da Arma perante civis. Se os soldados fossem ensinados a prezar as leis e instituições brasileiras (nem precisava pensar que pobre era gente), teriam recusado a ordem do tenente.
3 - O crime de "desacato." Como o de "apologia ao crime," não tem lugar numa sociedade democrática. Se não estiver impedindo a autoridade de fazer seu trabalho, o cidadão tem, sim, todo o direito de xingar como quiser até o presidente da república. Mesmo que não fosse usado como desculpa para prender quem não fez nada ou justificar comportamento truculento de policiais e soldados, o crime de desacato seria um absurdo.
Um comentário:
O crime de desacato - art. 331 do Código Penal Brasileiro - consiste em deixar de acatar, não obeder ordem legal de funcionário público no exercício das suas funções, equivale, pois, ao "contempt of court" do direito anglo-saxão. Em si, com ele, nada há de errado. E é claro, no caso, não houve desacato algum da parte dos jovens assassinados. Nem tampouco haveria se os soldados não acatassem à ordem daquele tenente meio fronteiriço. Num exército de pais minimamente democrático nada teria ocorrido nem o tenente teria dado a ordem, se a tivesse dado, não seria obedecido. § Quantoa ao delito de " apologia do crime ou criminoso" - art. 287 do Código Penal Brasileiro -, tal como posto no Código Penal, que é de 1940, em plena Ditadura do Estado Novo, e mais ainda, como interpretado por magistrados, promotores e políciais, desprovidos de qualquer bom senso, é claramente um atentado à liberdade de opinião, e, portanto, inconstitucional. Em situações civilizadas, o que se reprime, como explicou algumas vezes, é a incitação atual, concreta, imediata e efetiva à prática de um delito. O resto é tentativa antidemocrática e liberticida de criminalizar o exercício de uma opinião. No Brasi, a Constituição é democrática e liberal, a sociedade, as instituições públicas e privadas, as autoridades, e, claro, a legislação ordinária defsaada, não o são.
Postar um comentário