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13.8.10

A nova teocracia.

O Rio de Janeiro é o estado com maior proporção de não-católicos no Brasil, e especificamente de evangélicos. Assim, não chega a surpreender que a Assembléia Legislativa do estado tenha aprovado uma lei alucinada pela qual cultos evangélicos, em templos ou fora deles, são imunes a quase qualquer lei. (E além disso, shows Gospel vão receber incentivo do governo via uma espécie de lei Rouanet.) Mas não é só no Rio que evangélicos estão se espalhando; a Universal, em particular, em seu plano deliberado de construção de igrejas "espelhando" as católicas, pretende fazer uma cópia do Templo de Salomão (cópia só pelo lado de fora, com escritórios dentro e ar condicionado) no Brás, em São Paulo, por exemplo.

A lei também demonstra que, se o Brasil, em parte graças ao positivismo dos primórdios da República, se livrou da influência católica sobre a política muito mais do que parte da Europa católica, ele por outro lado corre o risco, devido a como funciona a política brasileira, de ver uma influência cada vez maior de um grupo que mesmo sendo minoria de um quarto já aprova uma lei dessas. E enquanto a Igreja Católica brasileira tem uma ala progressiva importante, mesmo depois de décadas de João Paulo II e Benedito XVI, o "programa" evangélico é bem mais conservador, com exceções muito pontuais.

Finalmente, fica a pergunta: essa lei vai se aplicar a terreiros, e macumbas de encruzilhada também?

12.8.10

Crescimento negativo

As empresas de energia elétrica estão se atropelando em lobbies e procurando projetos porque precisam investir dois bilhões, até dezembro, em programas de conservação e eficiência energética. A soma representa o que deveriam ter investido desde a privatização, e não investiram porque conseguiram repetidos adiamentos junto à ANEEL.

A situação demonstra de maneira bastante prática e fácil de entender os limites do mercado - e porque é imbecilidade "levar o espírito gerencial ao serviço público," aliás. A idéia era simples: já que conservação e eficiência são investimentos com retorno maior e mais seguros do que qualquer investimento em geração, as elétricas nascidas das privatizações tiveram imposta a obrigação de investir nisso. Por que não deu certo também é simples: que empresa investe para diminuir suas próprias vendas? Aplicada ao serviço público, é o problema de "metas de desempenho," como quando se premia policiais por número de apreensões (ou, pior ainda, confrontos violentos) - qual o interesse desse policial em diminuir o crime?

Seria bem mais razoável endereçar a grana devida a um program público independente (com verba carimbada, e não derivada do OGU), que as implementasse. Não que resolvesse o problema, pois a conservação de energia em geral, quando chega no consumidor, leva a outro problema: quando a energia fica mais barata, por que não comprar mais coisas que usam energia? Como narrado por Cédric Gossart num artigo do Le Monde Diplomatique Brasil de Julho, o problema se estende a quase todo tipo de consumo energético: uma França com eficiência de quase o dobro da de vinte anos atrás e população apenas 10% maior consome bem mais que 50% de energia a mais. Aumentar a eficiência na ponta, apesar de muito mais econômico watt por watt do que qualquer forma de geração, assim, não é tão eficiente assim quando se pensa por esse lado, problemático. (Tem que ser dado um "desconto" pra fazer a conta, portanto.) Claro, isso pensando apenas em watts/hora, isso é, consumo total. A substituição de chuveiros elétricos por chuveiros solares, por exemplo, descontaria da carga de pico brasileira uma Tucuruí inteira.

Resta, portanto, em termos de investimento com o maior retorno possível, o aumento da eficiência no meio do caminho, i.e. em comércio, serviços, indústria - que, afinal, no Brasil ainda são bem mais significativos do que o consumo residencial. E volta meu xodó, até por morar em rua de ladeira da aladeirada São Paulo: o consumo de diesel no país cairia em 15 a 20% (o equivalente à implantação de uma refinaria do tamanho das maiores da Petrobrás) se todos os ônibus urbanos das regiões metropolitanas fossem trocados por equivalentes diesel-elétricos. E isso seria viável com menos subsídios e incentivos do que o Governo Federal está dando para a construção de Belo Monte.

10.8.10

A rosa telepática

Ontem foram 65 anos desde que a superfortaleza voadora Bockscar recebeu a benção do capelão militar junto com seus aviões auxiliares e decolou rumo a Kokura para deixar bem claro que havia mais de onde os americanos tiraram a bomba de Hiroshima.

Nas discussões sobre a decisão do governo americano de utilizar a bomba atômica contra o Japão, uma parte que sempre me parece carecer de resposta é a questão dessa segunda bomba. Afinal, a maioria dos argumentos utilizados para justificar o emprego da bomba atômica sobre Hiroshima glosa esse ponto - desde os press releases preparados pelo Pentágono no equivalente publicitário do Projeto Manhattan até hoje. Depois do horror de Hiroshima, que diferença faria outra bomba? Não existia uma convicção de que os japoneses não iam se render incondicionalmente, apenas uma suposição (hoje, o consenso é de que eles provavelmente o fariam mesmo sem a bomba). Do mesmo modo, não é plausível que Stalin achasse que a Little Boy era irreproduzível.

Pra que serviu (fora para matar mais 80.000 pessoas) o Gordo, afinal?

Pode-se dizer para que não serviu para deixar os japoneses com ódio dos americanos; o Japão do pós-guerra é americanófilo ao ponto de ter como esporte mais popular o beisebol. Até a aliança militar entre os dois é estreitíssima, apesar de desigual, impopular entre boa parte dos japoneses, e curiosamente explicada...



(Aparentemente, o pessoal de propaganda do Pentágono não é mais tão bom quanto já foi...)

4.8.10

Chaebol

No Valor de hoje, se menciona que os frigoríficos brasileiros - um mercado que já era concentrado o bastante pra sofrer denúncias de truste - se consolidaram ainda mais com apoio do BNDES.

Continua, pelosvisto a idéia do Lessa de se criar "chaebols e zaibatsus" brasileiros. Podiam, já que é assim, jogar fora logo a cara estrutura brasileira de defesa da concorrência. Por outro lado, não dá pra dizer que BNDES e CADE são o único caso de órgãos operando um contra o outro dentro do esquizofrênico governo Lula - o Ministério da Agricultura e o Ministério do Meio Ambiente que o digam.

3.8.10

Sacronsantíssima do pau oco

Uma das preocupações alegadas por muitos conservadores é o caráter sagrado da propriedade privada, com a qual o governo não deveria nunca se mexer, a não ser em casos extremos. Assim, o MST é uma organização terrorista, que deveria ser extinta a ferro e fogo, por ousar questionar essa santidade; a CNA arruma simpatizantes entre as camadas urbanas justamente ao falar da propriedade privada com a alegação farsesca de que os que questionam a propriedade privada dos meios de produção fá-lo-ão também dos apartamentos em que vive a classe média.

O que é curioso é que esse apego não se aplica quando, por exemplo, se fala em remover favelas. "Mas aí a propriedade não é dos favelados, eles invadiram terras públicas," retrucariam. Ora, se for por aí a maioria absoluta das terras de fazendeiros da CNA também foi obtida através da grilagem de terras públicas. Mas espera, tem mais: também ninguém fala em socialismo totalitário quando o estado desapropria propriedades particulares para ajudar empreendedores privados, como a Prefeitura do Rio se orgulha de ter feito na Zona Portuária, ou o Estado do Rio nos 78Km2 entregues ao Eike Batista para fazer seu porto. Não há invasão nenhuma aí; há um proprietário de um imóvel que pôs um preço nele pra transferi-lo a outro particular.

Vista a falta de grita nesses casos, fica a suspeita de que é dar a propriedade aos pobres, ao invés de aos ricos, que é questionável. Talvez se arranjarmos algum playboy com nome quatrocentão para ser chamado de "dono da MST participações" a coisa se resolva. Sugiro o Índio da Costa.

2.8.10

Os trilhos e a locomotiva

O Globo e o Estadão denunciam, apoiados em estudos do IBMEC: com os 36 bilhões do trem-bala entre o Rio e Campinas daria para construir mais de 200Km de metrô. A preocupação dos dois com transporte urbano é tocante, apesar de não se estender à denúncia da conversão, acertada entre a prefeitura do Rio e o Comitê Olímpico Internacional, do que seria uma ligação por trilho por uma autopista com ônibus rápidos, de modo a permitir que esta fosse usada pela "família olímpica" e carros privados, mas tudo bem.

O que é um pouco curioso é que o grande amigo dos diretores do Globo e do Estadão, o governo de São Paulo, alardeia para quem quiser ouvir (e para quem não quiser também, com um investimento quase bilionário em publicidade) que, ao custo de 20 bilhões, está construindo 16Km de metrô. Enquanto o Globo consegue pagar menos de 180 milhões por Km de metrô, o governo de SP paga 1.250 milhões, só míseros 1.070 milhões a mais. Talvez fosse o caso de as famílias Marinho e Mesquita avisarem a seus amigos no governo onde estão comprando metrô baratinho - espero que não seja no camelô ne na Daslú.

Outra curiosidade dessa construção de metrô é que ela é alardeada como uma prova da eficiência do governo paulista. Ora, é antes uma prova do dinheiro disponível. Afinal, São Paulo não é apenas o estado mais rico do Brasil, tanto em termos da riqueza total quanto da por cabeça: é também o beneficiário de uma legislação fiscal no mínimo curiosa. Responda rápido: qual o governo estadual brasileiro que recebe mais dinheiro da produção de petróleo? Se respondeu Rio de Janeiro, errou: o Rio recebe royalties que valem mais ou menos uns dois terços do valor que São Paulo recebe de ICMS.

O ICMS, maior imposto cobrado no Brasil, é regulado pela Lei Kandir. Incide sobre a venda ou circulação de qualquer bem ou serviço, e é cobrado na origem, isto é, no local de produção, com a única exceção, explícita, de produtos energéticos (petróleo e eletricidade) e lubrificantes. Ora, isto quer dizer que, quase explicitamente, beneficia São Paulo (e em menor escala, Santa Catarina) em detrimento do resto da federação. Se essa cláusula fosse eliminada, a arrecadação de São Paulo diminuiria em 16 bilhões por ano - quase, anualmente, o total investido em metrô ao longo destes últimos oito anos. O Rio ficaria com a maior fatia disso, 10bn. Espírito Santo, Paraná e Pará ganhariam pouco mais de um bilhão cada; e os outros 2 bilhões iriam para o resto da federação.

É isso mesmo: o estado mais rico do Brasil recebe, por lei, um subsídio especial tirado dos outros estados. Um pobre consolo é que, pelo menos, os estados mais afetados negativamente por essa cláusula são, com a exceção do Pará, também ricos. Por outro lado, essa situação mudará com as novas hidrelétricas amazônicas, acrescentando Rondônia à lista.

Nem essa situação é nova, no Brasil. São Paulo não ganhou sua preponderância econômica devido ao acaso nem à virtude quase-racial do povo paulista ainda ensinada em algumas escolas. O Brasil, longe de "tirar dinheiro dos homens de bem do sudeste para sustentar os vagabundos nordestinos," sempre tem transferido renda, via governo nacional, dos estados mais pobres para os mais ricos, desde o fim do século XIX. Tome por exemplo os imigrantes: aprendemos na escola que os primeiros imigrantes, destinados a substituirem os escravos, comeram o pão que o diabo amassou, o que é verdade. O que é menos mencionado é que a imigração, parte de uma política de branqueamento racial deliberada, era subsidiada pelo governo nacional. E que após essa primeira leva, os imigrantes receberam vantagens econômicas diretas do governo nacional e daquele da província de São Paulo.

Outras transferências abundam: assim, na República Velha, a função principal do governo federal parecia ser garantir os lucros dos cafeeiros. Quando começou a industrialização pesada sob o Estado Novo, as instalações ficaram todas no Rio e em São Paulo. Os subsídios à indústria se intensificaram com Juscelino, e novamente, numa visão curta da eficiência do investimento, se incentivava a indústria do sudeste e o extrativismo em outras regiões; assim, mesmo coisas alegadamente destinadas a promover outras regiões funcionavam como as ajudas externas americanas destinadas a minas na Guiné; a zona franca de Manaus é uma meia exceção.

O sudeste brasileiro é a região mais rica, e dentro dele São Paulo é o estado mais rico, por vários motivos. Um dos pouco mencionados, e dos mais importantes, é que o governo brasileiro não transferia renda regressivamente apenas no campo do indivíduo, mas também entre regiões. Isso agora está começando a mudar, com a atuação do BNDES direcionada a novos empreendimentos industriais no nordeste e o bolsa família. Mas só começando. Assim, não é de se surpreender que enqunato nos EUA o estado mais rico, Maryland, tenha uma renda (70.000USD) de um pouco menos do que o dobro do mais pobre (37.000, Mississippi), no Brasil essa diferença é de um pouco menos de cinco vezes. (SP R$ 22.000, Piauí 4.500). A diferença entre a renda per capita do Sudeste, excluída Minas Gerais, e a do Brasil é similar à diferença entre Maryland e o Mississippi, o que é ainda mais grave se levarmos em conta o quanto a região, com quase um terço da população brasileira, distorce o dado nacional.

Por isso que, mais uma vez, digo: menos mal que, pelo menos, sejam atualmente o Rio e o Paraná os financiadores do metrô de São Paulo. Pelo menos não é o Piauí.

17.6.10

Espaçoso

Um dos problemas dos órgãos públicos, especialmente em áreas densamente povoadas, é encontrar terrenos a preços baratos para construir habitação popular. É o que leva à clássica enunciação do problema de decidir entre requalificar favelas (ou mesmo permitir a sua permanência em áreas problemáticas) ou levar as pessoas para áreas distantes e que necessitariam de infraestrutura cara. (Para além de, em muitos casos, não serem razoáveis para os moradores nem com essa infraestrutura.) Por isso, vão aí algumas sugestões.
 
1.  O estádio da Gávea, que não serve pra nada, está num terreno da prefeitura. Oficialmente, o Flamengo não pretende nunca mais usar ele pra abrigar partidas de futebol, então nem a alegação tênue de que futebol é interesse público se justifica. Ora, naquela área poderiam ser erigidos 1400 apartamentos - ou, se preferirem, toda a população do Laboriaux ou do Parque da Cidade. Aliás, os diversos clubes que pontilham a orla da Lagoa Rodrigo de Freitas também ou não pagam nada ou pagam uma merreca por ocuparem área do município; se metade passasse a pagar um aluguel justo e metade fosse embora e a área usada para habitação social, as favelas em volta ficariam bem esvaziadas. Do mesmo modo, quase todos os terrenos ao longo da Marginal Tietê são ocupados em regime de comodato, principalmente aqueles ocupados por clubes e associações.
 
2. A refinaria de Manguinhos não tem escala pra ser uma refinaria moderna. Nem pode vir a ter, no terreno exíguo de que dispõe; hoje em dia, os donos (que a compraram para receber créditos fiscais bem duvidosos concedidos pelo governo do Estado) ficam (fingindo que) procuram algo pra fazer com ela, de refinaria de biodiesel a termelétrica. Bem, o terreno é exíguo para uma refinaria, porque é um terreno de meio quilômetro quadrado, próximo ao Centro da cidade, sanduíchado entre linhas de trem, a Avenida Brasil, e a Linha Vermelha. Daria pra fazer em parte dele um parque e na outra parte mais de 10.000 apartamentos (contando a área para pracinhas, ruas internas, comércio no térreo, e um CIEP.)

3. Não dá pra deixar de repetir: o último dado que saiu registra que as forças armadas brasileiras têm 136Km2 de área nas capitais, excluída Brasília. Muito disso em áreas nobres e/ou bem servidas de infraestrutura. Vende-se a parte em áreas nobres, conserva-se o que seja necessário, e voilá: mais uns 60Km2 de área e dinheiro pra fazer a urbanização. Uns 2 milhões de apartamentos.

12.6.10

Círculos

O projeto de reforma do código florestal brasileiro elaborado pelo (ex)comunista Aldo Rebelo* podia ser chamado também de projeto de revogação do código florestal brasileiro. Tem mimos como perdão de crimes, além de eliminar restrições ambientais óbvias que vigoravam literalmente desde tempos coloniais, como a proibição de se desmatar cumes de morros, num país tropical caracterizado por fortes chuvas e solo frágil. As poucas restrições ao desmatamento que mantem, ele faculta aos estados remover. (Santa Catarina, em especial, já tentou fazer isso mesmo antes da nova lei, na cara dura inconstitucional.)

O curioso pra mim dessa sanha antiambiental dos ruralistas brasileiros é a cegueira dela. Os sojicultores que lutam pelo fim da proteção dos mananciais se dão conta de que isso vai fazer com que eles tenham que pagar caro pela água que hoje rega de graça a soja deles? Os pecuaristas que lutam pelo direito de acabar com o pantanal se dão conta de que não dá pra criar gado em grande densidade num deserto? Os únicos contribuintes para o projeto do Aldo Rebelo que fazem sentido são as papeleiras que querem receber dinheiro do governo para "reflorestar" com eucalipto áreas desmatadas.

É até curioso que as elites brasileiras tenham tão pouco apreço pela natureza em todos os níveis. Me dei conta de outra iteração desse desapreço quando olhava um mapa de São Paulo outro dia. Não é apenas a falta de parques e praças na cidade, apesar de essa ser assustadora. É que ela, como a maioria das cidades brasileiras, não possui um cinturão verde. É até curioso, se você pensar que parte da retórica justificando o multibilionário e ambientalmente problemático rodoanel falava que as cidades "desenvolvidas" possuíam rodoanel.** Ora, as cidades "desenvolvidas" também têm um verdeanel, e não só não se falou de fazer um para Sampa como ainda se destruiu, com a construção do rodoanel, boa parte de uma das duas franjas verdes da cidade. (A área de proteção das represas, ao sul, que se mistura com os parques da Serra do Mar. Ao norte, menor e mais ameaçada, a cidade tem a serra da Cantareira.)

Os cinturões verdes têm uma origem pouco cheirosa, literalmente: originalmente, a expressão significava a área ao redor de um núcleo urbano que era fertilizada pelos dejetos deste. O cocô (de gente e animais de tração) e lixo orgânico, que eram quase a totalidade do lixo antes da era industrial, viravam excelente adubo, possibilitando a formação de um cinturão que por sua vez supria quase inteiramente as necessidades alimentares da maioria das cidades localizadas em climas minimamente razoáveis. (A forma específica desses cinturões variava muito, dos vergéis do Al Andalus aos trigais bizantinos, aos jardins flutuantes (literalmente) de Tenochtitlán.)

Dessa importância para o abastecimento surgiu, metamorfoseando-se em importância paisagística e cultural, a idéia de fazer cinturões verdes, áreas non aedificandi, ao redor das crescentes metrópoles industriais do século XX. Os subúrbios mais remotos da cidade estão, assim, separados por uma área verde, protegendo a cidade em vários sentidos. Na América do Norte, a idéia começou a ser divulgada mais tarde, e alcançou em muitos casos um patamar superior, com os ideais da City Beautiful precedentes se combinando, formando quase uma roda verde.

Cinturões verdes têm sua cota de críticas - afinal, todos os subúrbios a ser construídos fora deles ficarão, por definição, uns 10, 20km mais distantes, o que é caro em termos de infrastrutura e especialmente danoso quando se tem um padrão urbanístico de sprawl anglo-saxão. Além disso, como a área de proteção de mananciais da Billings bem demonstra, políticos apreciam a facilidade de construir estradas e outros trambolhos de infra em cima deles, sem precisar de desapropriações complicadas. Mas, bem, uma dessas críticas se aplica menos por aqui, e a outra se refere, não ao cinturão em si, mas a gente que o destrói.

Oficialmente, São Paulo até tem um cinturão verde. Olhando a foto ou mesmo o mapa oficial, é difícil de entender quem achou que isso era um círculo. E essa foto é de 1996, que também é a data da última ação relatada no site do cinturão verde de SP. Hoje em dia, o "anel" já foi degradado e - parece até piada - é em parte dele que vai ser enfiado o novo aterro sanitário da capital. Pra ser mais exato, pertinho de onde pretendem construir a parte leste do rodoanel.

Em escala nacional, tem um movimento que se autodenominou cinturão verde europeu, que tenta aproveitar as áreas verdes surgidas por acaso da história ao longo da Cortina de Ferro, numa situação parecida, se menos absurda, com a da Zona Desmilitarizada coreana, que já foi Lugar Estranho do Mundo por aqui.


*Agora convertido em defensor de agrocorporações e latifundiário, com laivos de nacionalismo do tipo esposado pelos milicos, como a seguinte declaração demonstra: "Querem interditar a infraestrutura, tutelar os índios e trazer boas novas da defesa da natureza com financiamento farto, como braços paramilitares de interesses internacionais".
**Com direito a um press release do governo no qual se exclamava que Moscou tinha "cinco rodoanéis já" - incluindo na lista até a rua que circunda os muros do Kremlin. Por essa classificação, São Paulo já tem uns três.

4.6.10

A palavra é sweatshop

A Apple passou, semana passada, a Microsoft, em termos de valor de mercado. Uma reversão espetacular da situação a que muita gente estava acostumada, possibilitada pela diversificação que levou a empresa a investir em mercados distantes dos desktops, como os iPods, iPhones, e agora iPads. Infelizmente para a companhia, a notícia veio junto com uma onda de suicídios entre os operários que fabricam os gadgets bonitinhos, mudernos e descolados dela, nas fábricas gigantes da taiwanesa Foxconn na China continental. Muitos applemaníacos, que tendem a se considerar vagamente de esquerda, provavelmente ficaram chocados ao ler o anúncio de Jobs de que a Apple aumentará o salário médio na fábica para 171 dólares por mês. Isso mesmo, meio salário mínimo por mês. Por jornada de trabalho de 54 horas semanais.

Na verdade, não é novidade nenhuma. A Apple, apesar de ser vista como alternativa pelos seus usuários e design, e por ser considerada a Davi contra Bill Goliath Gates, sempre foi das empresas americanas com os piores desempenhos em termos de responsabilidade social; Steve Jobs é conhecido por estar a um passo de Ebenezer Scrooge.

Mais assustadoramente, o trabalho semiescravo (ou escravo mesmo, como na zona industrial de Kaesong, que diga-se de passagem não foi fechada apesar de teoricamente os dois países estarem à beira de uma guerra apocalíptica) é essencial a todo e qualquer bem de consumo de alto valor agregado humano e baixo custo. É muito provável que a roupa que você está vestindo tenha sido feita por um escravo. Boliviano em São Paulo, centroamericano em Nova Iorque, africano ou iugoslavo em Milão, marroquino em Barcelona, chinês em qualquer lugar do mundo. A grande produção horticultural dos países centrais, como o carvão vegetal do aço brasileiro, o carvão que move a indústria chinesa, ou quase qualquer coisa ainda tem trabalho semiescravo.

Pense no Haiti - ele é no mundo inteiro.

31.5.10