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9.11.15

A realidade não é verossímil II - Egil Skallagrimsson, o pirata-poeta troll

A idéia dessa série não é falar de pessoas excepcionais, cuja vida daria um filme. É de falar de gente que, se fosse personagem de cinema, seria considerada um bando de apelão. Das pessoas que fizeram de verdade coisas que você, vendo na tela, falaria “ah vá.” Enfim, daquele povo que fez a ficha no RPG da vida roubando muito, roubando forte, roubando rude. O segundo personagem histórico da série foi um poeta viking lobisomem. Bem, a parte do "lobisomem" era só superstição. Acho.




Egil Skallagrímsson, pirata, poeta, e pioneiro, tinha esse nome de urro de guerra e, dizem, uma cara mais feia ainda. Seu avô, Kveldulf, era chamado de lobisomem; seu pai, apelidado Skallagrím (caveira sombria), por muito tempo desconfiou que o amado filho mais velho, Thorolf, era filho do padeiro, digo do irmão (também chamado Thorolf), por ser bonito. Não é só nisso que ele é bem diferente da estrela anterior; viveu até provectos 91 anos de idade, e isso durante a idade Viking, aquele pedaço da história escandinava quase pré-histórico, quase medieval, que veio logo antes da cristianização. Foi das poucas figuras que não eram reis, fundadores de dinastias de chefes, ou quevalhas a ganhar uma saga pra si, e provavelmente a melhor delas, escrita por Snorri Sturlusson. Do mesmo jeito, os poemas dele, registrados na saga e aqui e acolá em outros textos, são considerados os melhores poemas de skald que sobreviveram.

Não só a feiura dava a reputação sobrenatural à família do velho Kveldulf; eles também eram, reza a tradição, meio sami, o povo que cavalga renas no extremo norte e que os noruegos viam como feiticeiros. A mesma tradição diz que o menino cometeu o primeiro poema (infelizmente não registrado, então não dá pra saber se bom ou ruim) aos três anos de idade, e teve o primeiro acesso de fúria berserkr aos seis. Berserkr sendo os guerreiros doidos vikings que, depois de comer uns cogumelos daora, mordiam o próprio escudo de vontade de entrar na batalha, e lutavam sem sentir as feridas até morrer. A maioria, ao contrário de Egil, morria bem cedo, pelo motivo evidente de que, se você não tá prestando atenção nas próprias feridas, seus inimigos estão. O primeiro assassinato foi aos sete, de um moleque que roubou no xadrez; ao invés de berrar que fulano estava roubandooooo, Egil simplesmente voltou calmamente pra casa, pegou um machado, e partiu a cabeça do outro ao meio. Coisa de nada. Quando o pai do menino veio reclamar, Egil (de novo: sete anos) desafiou o coitado para um duelo. Ganho. Com o mesmo machado.

Mais tarde, já adolescente, o moleque embarcou na sua primeira viagem comercial, em que foram hóspedes de um dos intendentes reais na mesma época em que o rei estava naquela casa. O intendente, Bard, tinha deixado os hóspedes num celeiro, mas o rei mandou trazê-los para o salão, com comida e bebida àvonts. Egil, longe de agradecer pelo upgrade, começou a fazer poeminhas insultando Bard pela sua avareza com os hóspedes; esses estão registrados, e são das coisas mais antigas de poesia escandinava conhecida. O intendente e a rainha, putos com o adolescente idiota que reclamava e ainda bebia como uma esponja, resolveram envenená-lo; Egil pegou o copo envenenado, declamou poema em que se autoatribuía grandes poderes rúnicos, e apertou até rebentar. Daí começou sua reputação de feiticeiro, à época quase tão grande quanto as de poeta e pirata. Daí começaram também as aflições de Egil com a família real, já que o passo seguinte do moço foi matar Bard e a rainha, fugir na confusão, empacotar as próprias armas e levá-las a nado para uma ilha deserta próxima (no meio da noite, no outono, no norte da Noruega), e ludibriar os grupos de busca que foram enviados, matando os três que o encontraram e roubando seu bote para chegar à casa de um lorde seu amigo. Dessa primeira rusga régia, conseguiu se safar pagando uma multa às famílias dos defuntos.

Já mais velho, conseguiu acumular uma vasta carreira de pirata, poeta, e duelista em todo o mar do Norte, do círculo polar ártico à Cornualha. Duelar, aliás, era algo em comum entre o feíssimo Egil e a bela Maupin: os dois duelavam por dinheiro, e se o cliente não tiver dinheiro tudo bem, vai por lazer mesmo. Num desses duelos, numa pendenga jurídica, Egil reparou que o outro era melhor com espada e escudo, jogou ambos fora, agarrou o oponente, e mordeu-lhe fora a jugular.  Noutro, ele enfrentou outro tipo de duelista que existia na Escandinávia da época: uma espécie de ladrão legalizado. No holmgang, o duelo nórdico, quem ganhasse uma causa jurídica através do duelo podia ficar com os bens móveis do defunto, e alguns faziam disso uma carreira, desafiando gente relativamente fraca para duelos com motivos pífios ou inventados. Ljot o Pálido, conhecido como um berserkr, um comedor de cogumelos alucinógenos devoto de Odin Senhor dos Enforcados, desafiou um menino de família amiga de Egil, e ele, chamado, prontamente foi lá para a briga, rachou o coco do berserker em dois, e cavalgou em direção ao pôr do sol cantando “I’m a poor lonesome cowboy…” ok, talvez essa última parte seja o Lucky Luke.

Eventualmente, procurando riqueza nas terras cristãs da Inglaterra (ele até fez um contrato de “cristianismo prévio” para poder trabalhar para o rei cristão e carola Athelstane) Egil foi capturado pelas forças do rei norueguês Eric Machado Sangrento, que era tão simpático quanto seu apelido. Inimigo de Egil desde a adolescência, o rei já tinha resolvido cortar-lhe a carantonha feia pra longe dos ombros, quando recebeu de Egil e de seu amigo Arinbjorn, que também era amigo do rei, uma oferta irrecusável: um poema laudando o rei, em troca da cabeça do poeta e de seus companheiros, mais um barco. O poema, o “resgate da cabeça,” é uma das obras primas da poesia nórdica até hoje; tem 20 estrofes de oito versos cada. Liberado, Egil voltou para o acampamento do rei Athelstane, e entregou a maior parte do tesouro para o amigo, que em troca lhe deu a espada Dragvandil (entre os nórdicos da época, tudo tinha nome. A espada fulana, a mesa sicrana, o vaso de planta beltrano, “vou comer a sopa com a colher Thurfynnjanngar e me sentar depois na poltrona-do-papai Gylfagynnigjur.”) Pouco depois, com a morte de seu filho mais velho, Egil trancou-se no quarto sem comer nem beber nada senão algas e água do mar, por uma semana, até que a filha, postando-se ao lado para fazer a mesma coisa, conseguiu tirá-lo da depressão com a promessa de morrer junto. O brutamontes parou de besteira pra não por em risco a filha que ainda tinha, e se livrou da depressão escrevendo um poema.

Já no final dos seus noventa anos de vida, cego e com dificuldade em andar, Egil pensou num plano genial para usar todo o tesouro que tinha acumulado: levá-lo à assembléia do povo islandês, e jogar para a multidão, pra ver em que briga ia dar. O filho e a nora conseguiram impedir, mas poucos dias depois ele arranjou um escravo e duas mulas, foi até um pântano ermo, enterrou o tesouro e matou o escravo. Porque com isso, explicou o velho pirata enorme com cara de lobisomem pra quem ouvia, estaria semeando muitas brigas e vendetas futuras; a última ação registrada dele antes de morrer foi essa trollada épica. Só pra completar, quando o cemitério local foi renovado, um século mais tarde, acharam o esqueleto de um homem grande, com a cabeça muito maior que a dos outros, e que na testa tinha linhas onduladas; tentou-se rebentar a caveira com um machado, sem que os golpes fizessem mais do que embranquecer a parte atingida (hoje especula-se que ele tivesse alguma desordem regenerativa óssea, que também explicaria a feiúra, e a cegueira e frio na velhice). Em resumo: o homem não era exatamente um pirata troll, era um feiticeiro-poeta-pirata klingon.


Estatísticas de D&D: St 19 Dx 15 Co 19 Int 18 Wis 11 Cha 14

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