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25.7.14

O ovo da anfisbena

A Anfisbena é uma cobra lendária, descrita por Plínio, o velho, como tendo duas cabeças "como se não fosse suficiente uma para que se escoasse o veneno de seu corpo." Também estrela os bestiários do Borges e do TH White. Também poderia descrever a polícia brasileira, com alguma liberdade.  Afinal, a polícia que mata na favela é a que reprime na rua, como ficou demonstrado pela ópera bufa (libreto de Philip K. Dick) encenada no Rio de Janeiro, em que meia dúzia de pessoas que sonhavam em ser revolucionários e acreditavam que o Mujica do Facebook iria lhes salvar foram pintados como terroristas perigosos a partir do depoimento de outros tantos descompensados.  Bem, mais ou menos.

A polícia brasileira é das que mais matam no mundo. Possivelmente a que mais mata, em termos absolutos - é o tipo de estatística que é difícil de auferir com certeza, mas não se tem notícia de policiais tão violentos em nenhum país com tamanho similar ao nosso ou maior; os únicos concorrentes, no Caribe, Venezuela, e Colômbia, são países com população menor que a de São Paulo. Não que a polícia de, digamos, Mumbai seja gente boa, só mata menos do que a daqui. Os EUA, então, considerados o símbolo do Sistema duro por gente que ama e odeia isso, mata menos de um terço. Por que exatamente a polícia brasileira mata tanto é uma resposta difícil de se atingir, com uma longa história; tem a ver com a sociedade hierárquica e racista, com a guerra às drogas, com a legitimidade da violência, com a falta de supervisão, com a organização militar, com a desigualdade de renda... o que se sabe é que mata. Mata e tortura. Muito. Mas não mata, em hipótese alguma, de forma indiscriminada; pelo contrário, é de maneira extremamente discriminatória. Morre-se às pencas na favela da Rocinha; na Gávea, ali ao lado, cada assassinato é uma notícia de jornal.

E isso pode ser dito também da repressão às manifestações de classe média que vêm se estendendo desde Julho. A polícia que mata pode ser o mesmo organismo que reprime, pode ter os mesmos membros, mas definitivamente não é a mesma. Fosse a mesma, Sininho, Eloisa, Camila, e companhia  não estariam neste momento livres da cadeia, mas livres das amarras da carne (pra não falar dos destinos de Caio e Fábio, que mataram mesmo o cinegrafista Santiago); pela média estatística, nos dias que durou sua prisão foram 72 mortos pela polícia, sem uma sombra de gritos. Nem a repressão às manifestações é um desenvolvimento orgânico da violência genérica; pelo contrário, a polícia brasileira, por conta daquela hierarquia muito bem delimitada, reprime manifestações de gente branca, com acesso a advogado, à luz da imprensa, com infinitamente mais pudores do que reprime - bem, qualquer coisa na favela. Incluindo manifestações; é muito etnocentrismo da Vila Madalena achar que não havia manifestações constantes no Brasil antes de Junho do ano passado, é que o título da matéria era "moradores de lugar x queimam ônibus."

A repressão violenta às manifestações, antes de ser uma consequência natural da polícia militarizada de sempre, é uma importação de países com trabalho cotidiano de polícia muito mais civilizado, mas que desde os anos 90 têm militarizado e sofisticado o aparato de repressão a manifestações políticas, e a polícia em geral. As táticas como o kettling - encurralar ao invés de dispersar a manifestação - e o uso de câmeras para intimidar vieram diretamente da Europa, e foram ensinadas por instrutores ingleses, alemães, e americanos. O mesmo pode ser dito dos amplos poderes de vigilância eletrônica (aliás, ampliados no Reino Unido durante o desenrolar do Minority Report carioca). Se trata de uma luta específica contra um inimigo externo muitas vezes imaginário, e que não faz parte das práticas ensinadas e costumeiras; as práticas são sujas e antidemocráticas, mas não são algo que "nem a ditadura fez," mas sim algo que foi importado diretamente do que é considerado o estado da arte em democracia. Curiosamente, num paralelo próximo à importação de técnicas dos soldados anticoloniais do general Massu contra a luta armada, durante a ditadura. E até na mesma Manaus. De novo, se trata de ensinar a uma polícia e um exército toscos e brutos algo mais sofisticado.

E é aí que mora o perigo. Se no momento as duas modalidades de repressão caminham em estratos separados, com alvos separados, não há nada que impeça que, no futuro, elas se misturem, como o saber dos torturadores franceses e a visão do território como guerra se espalharam e tornaram assassina a polícia que já era brutal. Não foram os milicos que inventaram a polícia militar; ela existe desde os tempos coloniais, em paralelo à civil e diretamente subordinada a um executivo que se confundia com o poder militar; a separação dos poderes no Brasil, historicamente, foi mais entre civil e militar que a de Montesquieu. Mas foi com a repressão ao comunismo aprendida da CIA e da Legião Estrangeira, mais a guerra às drogas aprendida com o ATF, que ela mudou a marcha das mortes (e superou, como hoje supera em ordens de grandeza, a pistolagem interiorana que antes respondia pela maioria das mortes "de emboscada antes dos vinte.")

As chances de que isso signifique a migração das mortes e torturas do morro para o asfalto não é tão grande - acho, não tendo os poderes precognitivos da polícia fluminense; haverá as exceções dos exaltados, como aquele policial do vídeo que é puxado por seus próprios pares enquanto tenta chutar uma menina com um cartaz. Não estamos no mesmo contexto da ditadura, em que torturar e matar os rebeldes era parde explícita das aulas, chancelada por todos os níveis da hierarquia, e tem que ser dito novamente que o que a polícia faz não é porque os policiais são doidos, mas porque são legitimados e apoiados por governo e sociedade. Mas as chances de que isso represente um grau de repressão muito maior nas favelas são muito boas; mesmo em países com um grau de respeito aos direitos humanos e instituições de controle muito mais sólidos que os nossos, a Guerra ao Terror vem resultando num rosário de presos. Dilma, no medo de que a Copa desse errado, ajudou a chocar o ovo da anfisbena.

11.7.14

Triumph des sambens

A se julgar por parte dos comentários que circulam pelas bocas e teclas em torno da Copa, cada resultado de partida de futebol - aziago ou alvissareiro - seria a representação das qualidades essenciais do povo representado, sejam elas suas virtude e força ou o contrário. Se James fez mais gols que Neymar, é porque o povo colombiano tem uma paixão alegre e saudável pelo futebol, ao contrário do Brasil corrupto e assassino. Se a Argentina foi à final, é porque a raça, a garra, a determinação de um país cujo zagueiro dá o cu pela pátria brilharam. Se a Holanda massacrou a Espanha, é a vitória da alegre e maconheira Holanda sobre o vetusto império espanhol. Se o Brasil venceu Camarões, é porque os africanos - sim, os africanos, é um país só - são crianças inconsequentes, e talvez não seja inteiramente fortuito que o único exemplo pró-brasileiro que achei ter tido do outro lado um time africano. E por aí além, num festival de essencialização, de metonímia, de investimento simbólico, que deve ter rendido sorrisos a Leni Riefenstahl no inferno. Sim, até o inferno tem folga em dias de jogo da Copa.

Até aí, é do jogo, com o perdão do trocadilho. O esporte coletivo internacional tem sido visto por esse prisma desde os seus primórdios, e mesmo o doméstico; Barcelona catalã contra Real Madrid franquista, Flamengo favelado contra Fluminense pó de arroz... a lista é grande. Mas uma dessas manifestações do triunfo da vontade, e uma que deixaria Leni Riefenstahl particularmente sorridente, é a que reza que a vitória acachapante da Alemanha sobre o Brasil seria o triunfo da "seriedade alemã contra a malandragem brasileira." Não difere do resto na sua essencialização de um fato passageiro; afinal, mesmo que acreditássemos que os resultados no futebol demonstram a força de um povo, o Brasil ainda tem cinco copas contra três da Alemanha, que até Domingo quando muito diminui a liderança. Nem a maior população explica tudo, já que o Brasil só superou a Alemanha nesse quesito em 1965, sem nem levar em conta o dinheiro. Também não difere da maioria das outras na hierarquia de povos presente nessas essencializações. Mas talvez seja particularmente forte como triunfo do estereótipo sobre a realidade.

A idéia de uma América do Sul lúdica e uma Europa operosa não resiste às estatísticas de trabalho. Fora as horas trabalhadas - que sempre foram muitas -a América do Sul é cada vez mais operária, e a Europa cada vez menos; um continente industrializa-se e o outro se transforma numa economia de serviços. Mas deixemos isso pra lá, que falar em quem tem mais "seriedade" é coisa pra quem acredita naquelas essências nacionais todas. Vamos reduzir o campo de visão e olhar só para os times. Alguém vê na Alemanha um time sério e vetusto e no Brasil um alegre e festeiro? Eu vejo o contrário, uma Alemanha caindo na gandaia tanto dentro quanto fora do campo, numa ilha tropical, cantando hino do Bahia, fazendo amizade com meio mundo. E um Brasil sisudo, concentrado na fria Teresópolis, sem festa, sem sexo na concentração (e não estou falando do David Luiz não querer, mas de a ninguém ser permitido), sem brincadeira. Um Brasil felipônico, mortalmente sério, que não estava ali pra brincadeira nem dentro nem fora do gramado. Batalhador, com vontade de vencer e não de jogar bonito. Aliás, insuspeito de jogar bonito. Se alguém ganhou, foi justamente a malandragem alemã contra a seriedade brasileira, até em termos bem práticos - o excesso de peso dado à partida, de pressão, resultou no pânico brasileiro. E talvez essa derrota devesse levar ao questionamento da sisudez como da CBF. Sonho, eu sei.

No futebol, claro, essa idéia do vencer e pra isso deixar de lado a alegria vem do acaso de 1982; fora dele, ignoro. Quem sabe veio do futebol mesmo. Mas difunde-se cada vez mais o par de idéias que exalta os vencedores e a seriedade, como se só o que importasse na vida fossem a seriedade e a vitória, como se elas tivessem um valor moral próprio, e esse valor é um valor do peso, da densidade, que rechaça a leveza como leviandade, que significa levar tudo a sério, que vê em cada adversário inimigos a serem derrotados com choro e ranger de dentes. No fundo, tanto o vencedorismo quanto a sisudez são facetas de uma apologética do peso, vitoriana, quase o contrário da leveza com que sonhava Ítalo Calvino em suas Seis Propostas Para o Próximo Milênio. Vitoriana ou stalinista, tanto faz. E estridente, infinitamente estridente. Engana-se quem pensa em vitorianos calados; é a grande era do jornalismo no Tennessee, das jeremíadas, da indignação... o peso só é calado nas próprias fantasias de gravitas romana, a pedra de moinho guincha mais que a roda de brincar. E a alegria - como ser alegre, num mundo de tanta desgraça? Como admitir a alegria, se há coisas importantes em jogo? A alegria é um pecado, um aleijão moral, que nos atrapalha na corrida rumo à sonhada vitória, rumo à utopia, ao paraíso (e ao gozo de ver os inimigos no inferno). O reino de meu pai é outro, mas pelo menos o cristianismo sempre teve festas; hoje o feriado atrapalha o faturamento da Fecomércio em dois ponto quarenta e oito bilhões de bruzudangas.

Se Paolo Rossi em 1982 realmente impulsionou essa corrida ao peso, desconheço. Mas tomara que os sambantes - e vitoriosos -  Klose, Kroos, Özil, Schweinsteiger, Neue, Götze, Gmbh tenham conseguido deixar a lição oposta.


PS Orlando - no livro da Virginia Woolf - via no século XX a libertação dos grilhões vitorianos. A segunda é de lei?

8.7.14

Neymar e o pleonasmo

Neymar, melhor jogador do Brasil na Copa, foi tirado dela por uma falta carniceira que lhe rebentou um pedaço da coluna. Não foi o primeiro jogador do mundial a ir parar no hospital, nem seu agressor foi punido sequer com um cartão amarelo, deixando claro o quanto o sistema (tanto as regras formais quanto as instruções e entendimentos informais) de arbitragem da FIFA é inútil. Zuñiga, o carniceiro escolhido para bater na Colômbia, explicou que "poderia ser ele, poderia ser o James, é assim mesmo." Mas ao invés de se ater à necessidade de reformar as regras para preservar o futebol dos Neymares e James contra os Zuñigas e Fernandinhos, o que se vê muito é gente da torcida antibrasileira (incluídos os muitos brasileiros que a integram - desconheço se o fenômeno é comum mundo afora) explicar que "Neymar não era nenhum santinho," ou que "o Brasil também é violento." Ora, se isso é, rigorosamente, verdade - e, de novo, precisa ser impedido, porque prefiro ver Neymar e James jogarem do que Zuñiga e Fernandinho, porrada já tem seus eventos esportivos - também é rigorosamente irrelevante. Nem pode-se argumentar que o animus de falar da violência brasileira esteja falando em "consequência" e não no "bem-feito,"  porque não há nenhum indício de que o técnico da Colômbia, Pekerman, ou Zuñiga tenham ficado dias insones olhando para as maldades de Felipão e Neymar, e jurado vingar suas vítimas. Felipão e Pekerman sabem bem que o jogo violento funciona, e por isso mandam bater; e mandariam mesmo que a seleção adversária fosse de quakers.

Se a vítima é boazinha, pura, ou inocente, isso não importa pra que a agressão seja um absurdo, não muda sua condição de vítima. "Vítima inocente" não devia ser um pleonasmo enfático, como fica sendo quando seguimos o raciocínio de que só pode ser vítima o inocente, nunca o culpado. Neymar poderia ter quebrado mil colunas que ter a sua quebrada não seria apenas uma justa paga. Há oito anos atrás, escrevi coisa parecida, quando da iteração daquele ano da longa marcha descivilizatória de Israel.

Normalmente, eu odeio comparações entre Israel e os nazistas. Não gosto de "ironias e lições da história" reducionistas, e essa em particular tem um odor a anti-semitismo que, por mais leve que seja, fede. O anti-semitismo, em parte graças à contribuição israelense fornecendo desculpas para ele, nunca esteve tão morto quanto, na ressaca do pior crime da história, gostaríamos de supor que ele estivesse, afinal.

Mas a comparação é inevitável, quando Israel estabelece uma razão de 1:10 a ser observada em termos de prédios atingidos por bombas. Isso é retribuição coletiva, sem nenhuma "razão militar" (sem entrar no mérito do caráter esfarrapado das justificativas militares para bombardeios aéreos). E fala em prédios por pura hipocrisia, para não falar em gente. Aliás, a razão è obviamente muito maior do que dez pra um, já que a densidade populacional nos subúrbios de Haifa é muito menor do que no Líbano, e as bombas israelenses muito mais destrutivas do que os foguetes do Partido de Deus.

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O mencionado Hezbollah não é flor que se cheire, de jeito nenhum. É uma milícia violenta, racista e fundamentalista religiosa, no pior sentido. Mas essa é uma característica comum das vítimas de massacres: se recusam a ser puras e angélicas. Não eram anjos as vítimas de Pol Pot, Hitler, Stálin, Mao, Saddam, ou de qualquer outro massacre. Condenar o crime, felizmente, pra qualquer pessoa decente, não depende dessa pureza, e para qualquer pessoa inteligente não implica em inventá-la. Quem insiste nessa falta de pureza para exonerar os criminosos lembra um advogado de estuprador dizendo que a vítima usava saia curta. (Outro exemplo comum são aqueles articulistas que "denunciam" que índios também guerreavam, ou que africanos fizeram a sua parte no tráfico atlântico).

É claro que uma joelhada nas costas não se compara a bombardear cidades inteiras - nem tampouco a violência em campo de Neymar ou Felipão se compara a explodir praças. Deixemos Neymar ser vítima quando é, por mais que não gostemos do Brasil, da seleção, da CBF, do próprio Neymar, ou o que seja. 

PS Absolutamente nada contra quem torce a favor de outro time que não o do país aonde nasceu. Pessoalmente, queria que não houvessem mais países... 

PPS Particularmente horrível-engraçado na história toda foi a guerra de comentaristas de página na Internet - essa espécie estranha de hominídeo - em torno da foto da filha de Zuñiga, com uns desejando "currar a filha desse preto safado" e outros respondendo aos primeiros com "só podia ser brasileiro, vergonha desse país," numa espiral de ódio que poderia facilmente suprir energia ao mundo sem precisar de Belo Monte nenhuma.

2.7.14

Mais médicos mais caros, ou, de como a desigualdade é um problema financeiro

Em meio à disputa sobre o programa Mais Médicos, uma das questões mais citadas pelos defensores do programa foi o alto valor das bolsas pagas aos médicos participantes, chamados pelos seus detratores de "escravos." Com efeito, as bolsas que o governo pagará aos médicos situariam alguém entre os 3% mais ricos dos assalariados (caso representassem salário bruto, e não líquido). Mesmo o quinhão do custo dos médicos cubanos que ficará com os próprios, de 4.000 reais, situariam os cubanos entre os 10% mais ricos. Entretanto, não se viu, numa cena política pródiga de jacobinos, ninguém que considerasse esses valores demasiado altos, senão para ironizar os médicos que os desprezavam. Não deixa de ser curioso compará-los com os valores pagos a médicos que praticam a residência obrigatória no serviço público em outros países: eles vão de nada (Itália) a um pouco menos da renda per capita (Reino Unido), em geral. No Brasil, a "escravidão" vale dez rendas per capita.

Não se trata, aqui, de enfatizar o quão generosa é a oferta do governo (e registre-se que em outros países com serviço compulsório especificamente voltado para áreas carentes, a oferta pode ser muito mais generosa em outros quesitos, como preferência para especialização). O governo não está sendo generoso, mas oferecendo o mínimo possível. Isso porque o tal salário de dez mil reais líquidos não é significativamente superior à renda média dos egressos de medicina - dependendo de a quem você pergunta, entre 20% e 50% maior. Os médicos são considerados arrogantes e insensíveis por não se candidatarem ao Mais Médicos, mas você aceitaria ganhar 20% a mais do que ganha em São Paulo para trabalhar num lugar em que só se chega em lombo de burro ou canoa? O comportamento dos conselhos de medicina é francamente deplorável, mas essa equação simples, feita pela maioria dos médicos que nem protagonizaram cenas de racismo explícito para ser contra, nem se juntaram ao programa, é bastante razoável. A pergunta poderia ser "por que no Brasil dez  rendas per capita são insuficientes, e no Reino Unido menos de uma é razoável, como salário para um médico ou outro profissional qualificado"? E o que creio é que a resposta a essa pergunta é necessária para qualquer projeto de Brasil, e que ela é simples. Chama-se desigualdade.

É necessária porque o ponto em comum de todas as múltiplas e díspares reinvindicações que foram às ruas em Junho de 2013 é que não querem algum tipo de estado minarquista, mínimo, em que os fracos não têm vez e o darwinismo social impera. Pelo contrário, mesmo aqueles que reclamavam de altos impostos reinvindicavam, ao mesmo tempo, sistemas públicos de saúde e educação melhores. Ora, a não ser que a idéia seja reinivindicar uma versão contábil de "sejamos realistas, reinvindiquemos o impossível," essa conta não bate, nas condições atuais - a não ser que a idéia seja o "desenvolvimento" como panacéia, e bem, mesmo descontando aqueles dos marchantes que são contra o desenvolvimentismo, os que são a favor tampouco sabem de verdade como conseguir esse mítico desenvolvimento rápido. São poucos os países que conseguiram pular de patamar de renda, e a maioria em situações de crise aguda infinitamente mais graves do que as do Brasil de hoje e/ou com a ajuda direta das potências centrais, por suas próprias razões geopolíticas. E com enorme sacrifício do povão enquanto o desenvolvimento não chegava, no mais das vezes.

Então, se desenvolvimento é algo que não se gera apenas com vontade, e se o que se quer é mais dinheiro pra saúde e educação, precisamos de mais impostos sobre o dinheiro que há, ou mais eficiência ao gastá-los, ou os dois. E eficiência no gasto não é algo que depende apenas da qualidade ou da honestidade de nossos gestores públicos; como tanta coisa, depende também de fatores estruturais e infraestruturais. Os estruturais, como a péssima lei de licitações, são relativamente mais fáceis de enfrentar. Com os infraestruturais, voltamos ao problema do primeiro parágrafo. Médicos são apenas uma das diversas categorias de profissionais altamente educados necessárias para um estado moderno funcionar, principalmente na provisão de saúde e educação aos seus cidadãos (em outros campos do estado, os profissionais não são menos educados, mas são em menor número). E profissionais desse nível de educação ocupam um local proporcionalmente alto na escala de rendimentos. O resultado inevitável - poder-se-ia quase dizer aritmético - disso é que quanto mais ampla essa escala, quanto maior a desigualdade, mais caro é o Estado para um mesmo patamar de serviços. A desigualdade brasileira torna o Estado menos eficiente, faz com que seja mais difícil prover saúde e educação. Não é apenas uma questão de justiça.

Não é um processo muito complicado. A expectativa de renda de uma pessoa não é ilimitada (como proposto por algumas escolas econômico-filosóficas) mas, empiricamente, ancorada numa noção de renda justa que tem muito a ver com a renda observada do mesmo estrato social. Médicos, advogados, e professores, e outros profissionais, parte de uma elite social por um zilhão de motivos (inclusive a reprodução intergeneracional de seu capital social ostensivamente meritocrático), e tem suas expectativas de renda balizadas pelo seu entorno. O Estado, portanto, (como qualquer empregador) a longo prazo terá o salário médio de seus profissionais qualificados puxado para a média dos salários de elite, ou bem terá que conviver com a insatisfação crônica desses profissionais e, no limite, o abandono por parte deles das carreiras públicas. E agora vou além do que falei sobre o desenvolvimento: não adiantaria de nada aumentar o PIB, porque esse balizamento é em boa parte feito comparativamente, e não em termos absolutos. A vida material de alguém de classe média-média hoje é bem mais abastada do que a de alguém mais rico em 1900; isso não muda suas classificações. A desigualdade brasileira baliza expectativas de desigualdade também - é a indignação com um professor ganhando o mesmo salário de alguém com menos educação, frequente mesmo entre quem se considera de esquerda. Aliás, fazendo uma enquete informal com amigos que se definem como de esquerda ou até socialistas, a diferença de renda considerada razoável entre um professor universitário e um de 1º grau é de 3x, e entre este e um faxineiro, de outras 4x. Dá mais do que a diferença entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres na maioria dos países do mundo (entre o prof. universitário e o faxineiro), e coisa próxima à diferença entre os 20% mais ricos e a média da população (entre o prof. universitário e o escolar) no Brasil. Mesmo acha errada a diferença de renda baliza suas expectativas de renda nela.

Vamos fazer uma simplificação tosca para a conta de como isso afeta as finanças públicas ficar mais fácil: Falemos de duas nações, Laputa e Houyhnhn. Em ambas, os funcionários públicos qualificados - médicos, professores universitários, promotores, auditores, e quejandos - representam 5% da população. Em ambos, os governos têm como prioridade o bom funcionamento dos serviços públicos, então o salário médio de seus funcionários está em linha com suas expectativas, isso é, em linha com os rendimentos do quintil (20%) mais rico da população. A diferença é que em Laputa, o quintil mais rico ganha 3,6x mais que o PIB per capita, enquanto em Houyhnhn, mais igualitária, o quintil mais rico ganha apenas 1,7x o PIB per capita. Pois bem, para fazer funcionar a contento sua máquina pública, Laputa gastará 18% do PIB só em salários de funcionários qualificados, enquanto Houyhnhn gastará 8,5% do PIB com os mesmos funcionários. Laputa e Houyhnhn são os nomes de países visitados por Gulliver, mas os dados de desigualdade são os do Brasil e do Japão, respectivamente.

Vamos lá: o simples fato de a desigualdade ser menor no Japão faz com que seu governo, para prover os mesmos serviços aos cidadãos, possa ter uma carga tributária 10% menor. O equivalente a desonerar o tal "setor produtivo" de toda a arrecadação direta estadual brasileira. Não é uma discussão pequena, em tempos em que hospitais erguidos não funcionam por falta de médicos, e universidades novas não conseguem achar professores. Na mesma tradição da direita que, previdente, pretende reformar a previdência pensando no longo prazo, os efeitos de uma redução de 10% na carga tributária no longo prazo não podem er subestimados. Sem coração de banana, sem questões abstratas de justiça, sem o medo de madame Guilhotina que já anima alguns megaempresários mundo afora. E quais seriam as ferramentas apropriadas para diminuir a desigualdade? Oras, impostos sobre a renda e patrimônio das pessoas físicas. Não é uma discussão teórica, é o que foi feito no mundo pós-guerra, e funcionou. É simples e calculável. O imposto sobre grandes fortunas, um aumento do IRPF, do imposto sobre a herança, do IPTU, não são apenas jeitos de se arrecadar mais dinheiro para o governo, mas jeitos de fazer esse dinheiro render mais.