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11.7.14

Triumph des sambens

A se julgar por parte dos comentários que circulam pelas bocas e teclas em torno da Copa, cada resultado de partida de futebol - aziago ou alvissareiro - seria a representação das qualidades essenciais do povo representado, sejam elas suas virtude e força ou o contrário. Se James fez mais gols que Neymar, é porque o povo colombiano tem uma paixão alegre e saudável pelo futebol, ao contrário do Brasil corrupto e assassino. Se a Argentina foi à final, é porque a raça, a garra, a determinação de um país cujo zagueiro dá o cu pela pátria brilharam. Se a Holanda massacrou a Espanha, é a vitória da alegre e maconheira Holanda sobre o vetusto império espanhol. Se o Brasil venceu Camarões, é porque os africanos - sim, os africanos, é um país só - são crianças inconsequentes, e talvez não seja inteiramente fortuito que o único exemplo pró-brasileiro que achei ter tido do outro lado um time africano. E por aí além, num festival de essencialização, de metonímia, de investimento simbólico, que deve ter rendido sorrisos a Leni Riefenstahl no inferno. Sim, até o inferno tem folga em dias de jogo da Copa.

Até aí, é do jogo, com o perdão do trocadilho. O esporte coletivo internacional tem sido visto por esse prisma desde os seus primórdios, e mesmo o doméstico; Barcelona catalã contra Real Madrid franquista, Flamengo favelado contra Fluminense pó de arroz... a lista é grande. Mas uma dessas manifestações do triunfo da vontade, e uma que deixaria Leni Riefenstahl particularmente sorridente, é a que reza que a vitória acachapante da Alemanha sobre o Brasil seria o triunfo da "seriedade alemã contra a malandragem brasileira." Não difere do resto na sua essencialização de um fato passageiro; afinal, mesmo que acreditássemos que os resultados no futebol demonstram a força de um povo, o Brasil ainda tem cinco copas contra três da Alemanha, que até Domingo quando muito diminui a liderança. Nem a maior população explica tudo, já que o Brasil só superou a Alemanha nesse quesito em 1965, sem nem levar em conta o dinheiro. Também não difere da maioria das outras na hierarquia de povos presente nessas essencializações. Mas talvez seja particularmente forte como triunfo do estereótipo sobre a realidade.

A idéia de uma América do Sul lúdica e uma Europa operosa não resiste às estatísticas de trabalho. Fora as horas trabalhadas - que sempre foram muitas -a América do Sul é cada vez mais operária, e a Europa cada vez menos; um continente industrializa-se e o outro se transforma numa economia de serviços. Mas deixemos isso pra lá, que falar em quem tem mais "seriedade" é coisa pra quem acredita naquelas essências nacionais todas. Vamos reduzir o campo de visão e olhar só para os times. Alguém vê na Alemanha um time sério e vetusto e no Brasil um alegre e festeiro? Eu vejo o contrário, uma Alemanha caindo na gandaia tanto dentro quanto fora do campo, numa ilha tropical, cantando hino do Bahia, fazendo amizade com meio mundo. E um Brasil sisudo, concentrado na fria Teresópolis, sem festa, sem sexo na concentração (e não estou falando do David Luiz não querer, mas de a ninguém ser permitido), sem brincadeira. Um Brasil felipônico, mortalmente sério, que não estava ali pra brincadeira nem dentro nem fora do gramado. Batalhador, com vontade de vencer e não de jogar bonito. Aliás, insuspeito de jogar bonito. Se alguém ganhou, foi justamente a malandragem alemã contra a seriedade brasileira, até em termos bem práticos - o excesso de peso dado à partida, de pressão, resultou no pânico brasileiro. E talvez essa derrota devesse levar ao questionamento da sisudez como da CBF. Sonho, eu sei.

No futebol, claro, essa idéia do vencer e pra isso deixar de lado a alegria vem do acaso de 1982; fora dele, ignoro. Quem sabe veio do futebol mesmo. Mas difunde-se cada vez mais o par de idéias que exalta os vencedores e a seriedade, como se só o que importasse na vida fossem a seriedade e a vitória, como se elas tivessem um valor moral próprio, e esse valor é um valor do peso, da densidade, que rechaça a leveza como leviandade, que significa levar tudo a sério, que vê em cada adversário inimigos a serem derrotados com choro e ranger de dentes. No fundo, tanto o vencedorismo quanto a sisudez são facetas de uma apologética do peso, vitoriana, quase o contrário da leveza com que sonhava Ítalo Calvino em suas Seis Propostas Para o Próximo Milênio. Vitoriana ou stalinista, tanto faz. E estridente, infinitamente estridente. Engana-se quem pensa em vitorianos calados; é a grande era do jornalismo no Tennessee, das jeremíadas, da indignação... o peso só é calado nas próprias fantasias de gravitas romana, a pedra de moinho guincha mais que a roda de brincar. E a alegria - como ser alegre, num mundo de tanta desgraça? Como admitir a alegria, se há coisas importantes em jogo? A alegria é um pecado, um aleijão moral, que nos atrapalha na corrida rumo à sonhada vitória, rumo à utopia, ao paraíso (e ao gozo de ver os inimigos no inferno). O reino de meu pai é outro, mas pelo menos o cristianismo sempre teve festas; hoje o feriado atrapalha o faturamento da Fecomércio em dois ponto quarenta e oito bilhões de bruzudangas.

Se Paolo Rossi em 1982 realmente impulsionou essa corrida ao peso, desconheço. Mas tomara que os sambantes - e vitoriosos -  Klose, Kroos, Özil, Schweinsteiger, Neue, Götze, Gmbh tenham conseguido deixar a lição oposta.


PS Orlando - no livro da Virginia Woolf - via no século XX a libertação dos grilhões vitorianos. A segunda é de lei?

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