1: Missoshiru com tofu e cebolinha
2: Peixe no vapor com legumes
3: Bife grelhado com espinafre na manteiga
4: Salada caprese
5: Costelinha de porco com purê de maçã
6: Salgadinhos em geral
7: Milkshake
8: Poutine
9: Torresmo
10: Deep-fried Mars Bar
Auferre, trucidare, rapere, falsis nominibus imperium; atque, ubi solitudinem faciunt, pacem appellant.
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29.6.12
Horror Vacui
Causou espécie a proibição, pelo prefeito de São Paulo Gilberto Kassab, de que se distribuísse sopa aos moradores de rua. Já está marcado um sopão da gente diferenciada defronte ou à casa do prefeito ou à Praça da Sé, coração simbólico da cidade e pátio dos milagres nas horas vagas. A notícia, entretanto, poderia ser apenas folclórica se fosse isolada. Afinal, Kassab é mesmo o prefeito que - desde antes de ser prefeito, poder-se-ia dizer, já que desde que Serra, de quem era vice, sentou-se na cadeira - tem promovido um festival quase folclórico de proibições, que inclui até bancas de jornal. Se fosse só ele o problema, seria fácil: tire-se ele (e Serra) da prefeitura de São Paulo, e pronto.
O problema, é claro, é que não é só ele. No Rio, um dos atos mais propagandeados da gestão de Eduardo Paes tem sido o "choque de ordem," que seria uma operação de tolerância zero em relação a regras urbanas em geral, incluídos os estacionamentos irregulares, mas por algum motivo estranho sempre acabam se dirigindo a camelôs, moradores de rua, e outros excluídos. É aí que um problema mundial se encontra com um particularmente brasileiro. O mundial é aquele no qual a cidade - a sociedade humana inteira - deve se submeter ao controle, com fronteiras rígidas (mesmo que invisíveis) no tempo e no espaço. "Há hora e lugar pra tudo," e cada vez mais você pode ser preso se estiver no lugar errado na hora errada. E essa ordem não inclui - fora de pontos turísticos - a ocupação da rua para outros fins que não o transporte, a não ser em pontos do tempo pré-determinados e previamente aprovados. A espontaneidade, a bagunça, a vida estão proscritas.
Essa ordem vazia é estranha. Não apenas porque eu, pessoalmente, prefira a bagunça. É que ela parece levar ao extremo a visão das ruas da cidade como apenas um sistema circulatório (Sennet diria à William Harvey), transportando corpúsculos entre os diferentes órgãos, onde toda a vida acontece. Ao deixar as ruas da cidade vazias, entretanto, e paradoxalmente, tendo em vista a paranóia obsessiva com segurança que rege boa parte das justificativas (confessas e inconfessas) para o esvaziamento, torna-se a rua muito mais insegura. Mesmo com todo o aparato de segurança associado, e mais ainda quando se escapa das limitações desse aparato, que afinal de contas não pode cobrir TODO o território urbano de câmeras e policiais, apesar de tentar.
Isso porque a tal da "ordem" deles não é senão o vazio. Não se está pondo algo na rua, uma nova socialização (que teria que ser por linguagem de sinais, imagino), novos usos e atividades. O que se está fazendo é remover o que existe. E, bem, o vácuo não é ordem. Muito pelo contrário, o vácuo é, nas línguas semíticas, indo-européias e turcas mais antigas, bem como nos ideogramas Shang, sinônimo de caos. Pangu e Marduk têm que derrotar o caos-vazio para que haja universo. E é justamente quando se remove o existente que as coisas fogem de controle. Um paralelo, ainda na questão de segurança, é a imbecilidade de se matar traficantes a rodo, mesmo ignorada a moralidade; o efeito não é eliminar o traficante, já que as condições de produção deste continuam lá, mas substituí-lo por outro, mais radical e violento.
Um exemplo disso pôde ser visto na praça Roosevelt. A praça, que era deserta e perigosa, voltou à vida quando se transformou num pólo de teatro alternativo e barzinhos, sem nenhuma ajuda do poder público. Era um lugar relativamente seguro e agradável, aonde milhares de pessoas se reuniam. Aí, em nome da "ordem," foram proibidas as mesas na calçada, foram fechados os bares à meia noite. A praça voltou, por um tempo, a ser um lugar deserto. Um dos que ainda tentavam se aventurar por ali, o dramaturgo Mario Bortolotto, foi baleado numa tentativa de assalto. (Depois disso, eventualmente permitiram em parte a reocupação da praça.)
Não se pratica assaltos à mão armada, em geral, em lugares iluminados, movimentados, e cheios de gente, exatamente o tipo de espaço que Kassab, Paes, e companhia mundo afora estão tentando eliminar. A ordem deles é, no sentido mais puro e original, o caos.
Se esse culto do caos é mundial, no Brasil ele conta com um agravante: a possibilidade da privatização do espaço público. Num país em que o espaço público não é visto como espaço comum mas como terra vazia, em que interiores suntuosos podem conviver com exteriores aos pedaços (invertendo a situação de boa parte da Ásia e Europa), apropriar-se do espaço público é comum. Digo apropriar-se, e não apoderar-se, para fazer a distinção entre uma ocupação do espaço público transitória e negociada e outra em que o uso do espaço por outros é cerceado.
Ora, com o viés fortemente hierárquico da nossa ordem estabelecida (ordem essa que é mantida acima até da lei pelas autoridades), essa apropriação é combatida quando feita pelos pobres - mas nunca quando é feita pelos ricos. Ou seja, não ganhamos, sequer, uma rua vazia mas bonita. A nossa será vazia, mas entupida de carros. Vazia, mas em que seguranças de lojas e condomínios podem controlar a circulação. No vazio, sobrevive o que a sociedade tem de pior: a demofobia, o racismo, a exclusão.
O problema, é claro, é que não é só ele. No Rio, um dos atos mais propagandeados da gestão de Eduardo Paes tem sido o "choque de ordem," que seria uma operação de tolerância zero em relação a regras urbanas em geral, incluídos os estacionamentos irregulares, mas por algum motivo estranho sempre acabam se dirigindo a camelôs, moradores de rua, e outros excluídos. É aí que um problema mundial se encontra com um particularmente brasileiro. O mundial é aquele no qual a cidade - a sociedade humana inteira - deve se submeter ao controle, com fronteiras rígidas (mesmo que invisíveis) no tempo e no espaço. "Há hora e lugar pra tudo," e cada vez mais você pode ser preso se estiver no lugar errado na hora errada. E essa ordem não inclui - fora de pontos turísticos - a ocupação da rua para outros fins que não o transporte, a não ser em pontos do tempo pré-determinados e previamente aprovados. A espontaneidade, a bagunça, a vida estão proscritas.
Essa ordem vazia é estranha. Não apenas porque eu, pessoalmente, prefira a bagunça. É que ela parece levar ao extremo a visão das ruas da cidade como apenas um sistema circulatório (Sennet diria à William Harvey), transportando corpúsculos entre os diferentes órgãos, onde toda a vida acontece. Ao deixar as ruas da cidade vazias, entretanto, e paradoxalmente, tendo em vista a paranóia obsessiva com segurança que rege boa parte das justificativas (confessas e inconfessas) para o esvaziamento, torna-se a rua muito mais insegura. Mesmo com todo o aparato de segurança associado, e mais ainda quando se escapa das limitações desse aparato, que afinal de contas não pode cobrir TODO o território urbano de câmeras e policiais, apesar de tentar.
Isso porque a tal da "ordem" deles não é senão o vazio. Não se está pondo algo na rua, uma nova socialização (que teria que ser por linguagem de sinais, imagino), novos usos e atividades. O que se está fazendo é remover o que existe. E, bem, o vácuo não é ordem. Muito pelo contrário, o vácuo é, nas línguas semíticas, indo-européias e turcas mais antigas, bem como nos ideogramas Shang, sinônimo de caos. Pangu e Marduk têm que derrotar o caos-vazio para que haja universo. E é justamente quando se remove o existente que as coisas fogem de controle. Um paralelo, ainda na questão de segurança, é a imbecilidade de se matar traficantes a rodo, mesmo ignorada a moralidade; o efeito não é eliminar o traficante, já que as condições de produção deste continuam lá, mas substituí-lo por outro, mais radical e violento.
Um exemplo disso pôde ser visto na praça Roosevelt. A praça, que era deserta e perigosa, voltou à vida quando se transformou num pólo de teatro alternativo e barzinhos, sem nenhuma ajuda do poder público. Era um lugar relativamente seguro e agradável, aonde milhares de pessoas se reuniam. Aí, em nome da "ordem," foram proibidas as mesas na calçada, foram fechados os bares à meia noite. A praça voltou, por um tempo, a ser um lugar deserto. Um dos que ainda tentavam se aventurar por ali, o dramaturgo Mario Bortolotto, foi baleado numa tentativa de assalto. (Depois disso, eventualmente permitiram em parte a reocupação da praça.)
Não se pratica assaltos à mão armada, em geral, em lugares iluminados, movimentados, e cheios de gente, exatamente o tipo de espaço que Kassab, Paes, e companhia mundo afora estão tentando eliminar. A ordem deles é, no sentido mais puro e original, o caos.
Se esse culto do caos é mundial, no Brasil ele conta com um agravante: a possibilidade da privatização do espaço público. Num país em que o espaço público não é visto como espaço comum mas como terra vazia, em que interiores suntuosos podem conviver com exteriores aos pedaços (invertendo a situação de boa parte da Ásia e Europa), apropriar-se do espaço público é comum. Digo apropriar-se, e não apoderar-se, para fazer a distinção entre uma ocupação do espaço público transitória e negociada e outra em que o uso do espaço por outros é cerceado.
Ora, com o viés fortemente hierárquico da nossa ordem estabelecida (ordem essa que é mantida acima até da lei pelas autoridades), essa apropriação é combatida quando feita pelos pobres - mas nunca quando é feita pelos ricos. Ou seja, não ganhamos, sequer, uma rua vazia mas bonita. A nossa será vazia, mas entupida de carros. Vazia, mas em que seguranças de lojas e condomínios podem controlar a circulação. No vazio, sobrevive o que a sociedade tem de pior: a demofobia, o racismo, a exclusão.
28.6.12
Mini manual do ciclista que não é xingado
Está crescendo no Brasil a percepção das vantagens do uso da bicicleta como transporte, em boa parte por conta do ativismo de gente que insiste em andar de bicicleta mesmo em cidades que ainda não estão preparadas para isso. Mas um problema recorrente na percepção pública dessas pessoas é que elas são frequentemente vistas como hipsters, ou melhor, como playboyzinhos - já que hipster é uma palavra de playboyzinho. A percepção não está inteiramente divorciada da realidade: a maioria dos cicloativistas pertence ao quinto mais rico da população mesmo. Ainda assim, existe uma diferença entre a realidade e o estereótipo e convém, no seu ativismo, não reforçar o estereótipo. Caso contrário, é um tiro no pé da própria causa, assim como fazem aqueles alunos que ocupam reitorias e fumam maconha lá: tudo a favor tanto de fumar quanto de ocupar reitoria, mas fazendo os dois juntos só se reforça a imagem de que a ocupação foi coisa de "playboys maconheiros indolentes." Não é a república livre do Fiume e você não é o D'Annunzio, é um ato de luta e propaganda.
Do mesmo jeito, o comportamento no dia a dia de muita gente que anda por aí de bicicleta reforça a idéia da "classe média que quer mais direitos e caga e anda para o resto do mundo." Por isso, resolvi fazer este mini-manual para quem quer andar de bicicleta de um canto pro outro (eu, quando morava no Rio, até compras no supermercado fazia de bicicleta, com ajuda de uma mochila de lona).
1) Você está num veículo, previsto no código de trânsito. Comporte-se como tal. Isso é : não andar na calçada, que é local de pedestre (a não ser que você esteja em velocidades pedestres - menos de 6km/h, aquela velocidade em que já é complicado se equilibrar); quando na rua, andar no sentido do tráfego e respeitar sinais de trânsito (pode ultrapassar um pouco a faixa contínua para não ser atropelado); não andar à noite se não tiver lanterna e farolete; usar uma pista e não o meio fio, mesmo que tenha um mala resfolegando o motor atrás.
2) Use as vias apropriadas, que são, além das ciclovias, as ruas secundárias. Avenidas como a Paulista não são lugares para se andar de bicicleta, a não ser que você queira mesmo viver perigosamente. Sim elas deveriam ser acompanhadas de ciclovias no mesmo trajeto, mas enquanto não estão, desvie-se um pouco e use vias locais paralelas. E se avenidas não são apropriadas para bicicletas, muito menos o são autopistas urbanas como a 23 de Maio ou o Aterro do Flamengo. Vamos explicar assim: a 23 de Maio prevê um tráfego de até 15.000 veículos/hora/sentido. Isso dá mais de quatro carros por segundo (4,17, pra ser exato). Você realmente quer compartilhar um espaço com quatro carros por segundo a 100 por hora?
3) À noite, além da lanterna, use roupas claras, ou arrume uma faixa refletora.
4) Bicicletas rebaixadas são cool pra caramba, cansam menos, mas não são pro trânsito.
Pronto. Rápido, né? Ah sim, e 5) Se ouvir alguém falar em Thor, não espere pra ver se é algum nerd ou fã de filmes de ação. Largue a bicicleta imediatamente e saia correndo.
Do mesmo jeito, o comportamento no dia a dia de muita gente que anda por aí de bicicleta reforça a idéia da "classe média que quer mais direitos e caga e anda para o resto do mundo." Por isso, resolvi fazer este mini-manual para quem quer andar de bicicleta de um canto pro outro (eu, quando morava no Rio, até compras no supermercado fazia de bicicleta, com ajuda de uma mochila de lona).
1) Você está num veículo, previsto no código de trânsito. Comporte-se como tal. Isso é : não andar na calçada, que é local de pedestre (a não ser que você esteja em velocidades pedestres - menos de 6km/h, aquela velocidade em que já é complicado se equilibrar); quando na rua, andar no sentido do tráfego e respeitar sinais de trânsito (pode ultrapassar um pouco a faixa contínua para não ser atropelado); não andar à noite se não tiver lanterna e farolete; usar uma pista e não o meio fio, mesmo que tenha um mala resfolegando o motor atrás.
2) Use as vias apropriadas, que são, além das ciclovias, as ruas secundárias. Avenidas como a Paulista não são lugares para se andar de bicicleta, a não ser que você queira mesmo viver perigosamente. Sim elas deveriam ser acompanhadas de ciclovias no mesmo trajeto, mas enquanto não estão, desvie-se um pouco e use vias locais paralelas. E se avenidas não são apropriadas para bicicletas, muito menos o são autopistas urbanas como a 23 de Maio ou o Aterro do Flamengo. Vamos explicar assim: a 23 de Maio prevê um tráfego de até 15.000 veículos/hora/sentido. Isso dá mais de quatro carros por segundo (4,17, pra ser exato). Você realmente quer compartilhar um espaço com quatro carros por segundo a 100 por hora?
3) À noite, além da lanterna, use roupas claras, ou arrume uma faixa refletora.
4) Bicicletas rebaixadas são cool pra caramba, cansam menos, mas não são pro trânsito.
Pronto. Rápido, né? Ah sim, e 5) Se ouvir alguém falar em Thor, não espere pra ver se é algum nerd ou fã de filmes de ação. Largue a bicicleta imediatamente e saia correndo.
14.6.12
A infraestrutura das células adiposas
Uma epidemia de obesidade assola o planeta. Não é exagero - pelo menos se nos ativermos à definição técnica de epidemia, que fala de uma quantidade considerável da população afetada. São centenas de milhões, quiçá já chegando nos bilhões, de obesos. Só nos EUA são mais de 120 milhões. México e Reino Unido, em particular, permitem que se passe dos duzentos milhões sem sair da OCDE. A OMS já conta mais mortes em excesso da obesidade do que de conflitos armados. (Nestes não estão incluídos os assassinatos comuns, admita-se.)
Os culpados apontados para a epidemia são muitos (fora aqueles países, como os da polinésia, em que a genética pode ser apontada como um deles). O problema é que eles frequentemente passam por uma moralidade que não o é menos daninha por ser laica. Mesmo quando critica-se a propaganda das comidas gordas, essa crítica também significa que o incauto comeu a comida gorda, não se exercitou, não teve a força moral e os bagos necessários para enfrentar as tentações do mundo.
Uma crítica mais estrutural fala do papel do automóvel. Afinal, aqueles que não tem a força moral de preferirem o transporte público estão entupindo as ruas de automóveis... menos ironicamente, é óbvio que os automóveis moldaram a própria forma de nossas cidades; aqueles que se utilizam do transporte público, em sua vasta maioria, não o fazem por escolha, mas por necessidade. Não custa lembrar que uma avenida de 14m de largura podia ser considerada uma rua monumental. Um cardo maximus romano de uma capital provincial como Jerusalém ou Antioquia, por exemplo, tinha 12m de largura carroçável mais as calçadas cobertas de uns 5m cada. Ora, a rua defronte ao meu apartamento, uma rua secundária "estreita," tem 10m de largura, obscurecidos pelo fato de carros estacionarem ao longo de ambos os lados. (E pelo inexplicável gosto paulistano pela mão dupla.) As calçadas, bem entendido, não chegam perto de 5m de largura; mesmo assim a distância entre fachadas é de uns 15m.
Vivemos, graças ao carro, em cidades enormes - e não estou nem falando das cidades planejadas como Brasília, Le Havre, ou Chandigarh, filhas do modernismo gernsbackiano do Congresso de Atenas. A densidade comum no mundo pré-automóvel era superior aos 20.000 habitantes por km2 da Paris hodierna; hoje, Paris (e mais ainda lugares como Copacabana ou os bairros insulares de Hong Kong, com 40 a 80 mil habitantes por quilômetro) é uma rara exceção até na região metropolitana de Paris, que tem uns 800hab/km2. Para a mesma população, 25 vezes mais área, a quase totalidade dela cheia de asfalto e concreto. Cidades enormes que, paradoxalmente, reduzem nossos deslocamentos pedonais; anda-se de carro ou de transporte público, mas não a pé. E de carro, sempre que possível, até porque o transporte público é, hoje, em muitos lugares pior do que era há 100 ou 50 anos. Assim, ninguém anda, e por isso todos são gordos.
Todos? O problema dessa análise, por mais que ela seja verossímil e apele para meus próprios gostos e preconceitos (por mim proibia-se todos os carros) é que ela ignora completamente que a gordura é, com o perdão do palavrão, uma questão de classe. Não são todos que estão ficando obesos, não são a classe média que se mata na academia e na dieta nem os plutocratas que continuam como sempre foram: são as classes trabalhadoras, aquelas que antigamente eram famélicas, e (nos países mais ricos) os lumpens, fazendo render seu magro welfare o máximo possível - e sim, coca tem mais calorias, e portanto mais satisfação, do que algo que seria um melhor "rendimento" nutricional. Nem todo mundo, afinal, tem a disciplina férrea de comer como um nutricionista. (Nem os nutricionistas.)
E aí está outro problema: os trabalhadores famélicos de outrora eram associados a um valor espiritualmente positivo, da negação da carne. A fome é espiritual. Ascetas são magros. Hoje em dia, os trabalhadores são associados, cada vez mais, à gordura. O proletariado é gordo, e portanto incontinente, fraco de espírito. À pobreza se soma a ignomínia. Claro que não mudaram, na realidade, as qualidades espirituais de pobres e ricos, o que mudou foram suas ocupações e a disponibilidade de comida. Antigamente, o lumpen era magro - porque famélico, o trabalhador forte - porque fazia trabalho braçal e comia pouco, o burguês gordo - porque comia bem e trabalhava antes com as mãos ou a boca do que com os braços e costas, e o aristocrata magro ou gordo, conforme fosse, mas forte dos esportes e da alimentação. Ora, hoje, ocupacionalmente, ergonomicamente, em termos de exercício, a maioria dos proletários é burguês. E comida - não boa, mas comida - há para todos.
Mudaram as ocupações, e um operador de call center não gasta tanta energia quanto um lavrador. (Aliás, nem um lavrador, sentado na colheitadeira, gasta tanto quanto aquele que seguia o boi e seu arado.) Mas não mudaram as associações mentais e estereótipos, e o operador gordo de call center é associado à indolência, mesmo que entre trabalho e transporte mal veja a própria casa antes de desabar no leito. Não deixa de ser, de certa forma, o pior dos mundos possíveis: os pobres continuam pobres, mas sem os sinais exteriores de pobreza, não merecem mais sequer respeito. E o que é pior: se a epidemia de obesidade é algo infraestrutural do próprio sistema capitalista avançado, e não algo que derive de problemas estruturais de segunda ordem, sanáveis dentro desse sistema, nenhuma iniciativa de educação, provisão de alimentos saudáveis, ou "cidades ambulatórias" vai adiantar para freá-la.
Os culpados apontados para a epidemia são muitos (fora aqueles países, como os da polinésia, em que a genética pode ser apontada como um deles). O problema é que eles frequentemente passam por uma moralidade que não o é menos daninha por ser laica. Mesmo quando critica-se a propaganda das comidas gordas, essa crítica também significa que o incauto comeu a comida gorda, não se exercitou, não teve a força moral e os bagos necessários para enfrentar as tentações do mundo.
Uma crítica mais estrutural fala do papel do automóvel. Afinal, aqueles que não tem a força moral de preferirem o transporte público estão entupindo as ruas de automóveis... menos ironicamente, é óbvio que os automóveis moldaram a própria forma de nossas cidades; aqueles que se utilizam do transporte público, em sua vasta maioria, não o fazem por escolha, mas por necessidade. Não custa lembrar que uma avenida de 14m de largura podia ser considerada uma rua monumental. Um cardo maximus romano de uma capital provincial como Jerusalém ou Antioquia, por exemplo, tinha 12m de largura carroçável mais as calçadas cobertas de uns 5m cada. Ora, a rua defronte ao meu apartamento, uma rua secundária "estreita," tem 10m de largura, obscurecidos pelo fato de carros estacionarem ao longo de ambos os lados. (E pelo inexplicável gosto paulistano pela mão dupla.) As calçadas, bem entendido, não chegam perto de 5m de largura; mesmo assim a distância entre fachadas é de uns 15m.
Vivemos, graças ao carro, em cidades enormes - e não estou nem falando das cidades planejadas como Brasília, Le Havre, ou Chandigarh, filhas do modernismo gernsbackiano do Congresso de Atenas. A densidade comum no mundo pré-automóvel era superior aos 20.000 habitantes por km2 da Paris hodierna; hoje, Paris (e mais ainda lugares como Copacabana ou os bairros insulares de Hong Kong, com 40 a 80 mil habitantes por quilômetro) é uma rara exceção até na região metropolitana de Paris, que tem uns 800hab/km2. Para a mesma população, 25 vezes mais área, a quase totalidade dela cheia de asfalto e concreto. Cidades enormes que, paradoxalmente, reduzem nossos deslocamentos pedonais; anda-se de carro ou de transporte público, mas não a pé. E de carro, sempre que possível, até porque o transporte público é, hoje, em muitos lugares pior do que era há 100 ou 50 anos. Assim, ninguém anda, e por isso todos são gordos.
Todos? O problema dessa análise, por mais que ela seja verossímil e apele para meus próprios gostos e preconceitos (por mim proibia-se todos os carros) é que ela ignora completamente que a gordura é, com o perdão do palavrão, uma questão de classe. Não são todos que estão ficando obesos, não são a classe média que se mata na academia e na dieta nem os plutocratas que continuam como sempre foram: são as classes trabalhadoras, aquelas que antigamente eram famélicas, e (nos países mais ricos) os lumpens, fazendo render seu magro welfare o máximo possível - e sim, coca tem mais calorias, e portanto mais satisfação, do que algo que seria um melhor "rendimento" nutricional. Nem todo mundo, afinal, tem a disciplina férrea de comer como um nutricionista. (Nem os nutricionistas.)
E aí está outro problema: os trabalhadores famélicos de outrora eram associados a um valor espiritualmente positivo, da negação da carne. A fome é espiritual. Ascetas são magros. Hoje em dia, os trabalhadores são associados, cada vez mais, à gordura. O proletariado é gordo, e portanto incontinente, fraco de espírito. À pobreza se soma a ignomínia. Claro que não mudaram, na realidade, as qualidades espirituais de pobres e ricos, o que mudou foram suas ocupações e a disponibilidade de comida. Antigamente, o lumpen era magro - porque famélico, o trabalhador forte - porque fazia trabalho braçal e comia pouco, o burguês gordo - porque comia bem e trabalhava antes com as mãos ou a boca do que com os braços e costas, e o aristocrata magro ou gordo, conforme fosse, mas forte dos esportes e da alimentação. Ora, hoje, ocupacionalmente, ergonomicamente, em termos de exercício, a maioria dos proletários é burguês. E comida - não boa, mas comida - há para todos.
Mudaram as ocupações, e um operador de call center não gasta tanta energia quanto um lavrador. (Aliás, nem um lavrador, sentado na colheitadeira, gasta tanto quanto aquele que seguia o boi e seu arado.) Mas não mudaram as associações mentais e estereótipos, e o operador gordo de call center é associado à indolência, mesmo que entre trabalho e transporte mal veja a própria casa antes de desabar no leito. Não deixa de ser, de certa forma, o pior dos mundos possíveis: os pobres continuam pobres, mas sem os sinais exteriores de pobreza, não merecem mais sequer respeito. E o que é pior: se a epidemia de obesidade é algo infraestrutural do próprio sistema capitalista avançado, e não algo que derive de problemas estruturais de segunda ordem, sanáveis dentro desse sistema, nenhuma iniciativa de educação, provisão de alimentos saudáveis, ou "cidades ambulatórias" vai adiantar para freá-la.
12.6.12
Fear of small numbers I - mentindo com números
Fear of Small Numbers é o título de um excelente livrinho do Arjun Appadurai, que não tem nada a ver com este post. Mas achei que o título se aplicava.
A Folha de São Paulo causou polêmica ao anunciar que, segundo seu método "científico" de mensuração, a parada gay de São Paulo (provavelmente a maior do mundo) reúne 270.000 pessoas, e não os 4 milhões apregoados. A matéria ainda carrega nas tintas ao falar do lixo e da bebida ilegal apreendida (incríveis 438 latinhas de cerveja - oh!) É uma pérola de como mentir falando a verdade.
Sim, falando a verdade, porque vamos deixar claro: o fantasmagórico número de quatro milhões de frequentadores é absolutamente irreal. A Paulista tem 40 metros de largura, de fachada a fachada, por 2.500m de comprimento, da praça Oswaldo Cruz à Consolação. Dá 100.000m2, o que parece razoável manter descontando obstáculos e somando ruas transversais; se você enfiar um milhão de pessoas - um quarto dos frequentadores de uma parada estarem lá simultaneamente é uma conta razoável - vai ter a lotação do metrô de São Paulo na hora do rush, não algo que dê para se mexer. Sublinhando: do metrô de São Paulo. O metrô do Rio não chega nesse nível de lotação, nem a maioria dos meios de transporte do mundo. 270.000 pessoas, 100.000 simultaneamente, dá uma pessoa por metro quadrado, o equivalente a uma casa noturna bem lotada, com pontos mais e menos lotados ao longo do trajeto.
Qual é a mentira embutida nessa verdade? É que o tempo que o jornal gasta contando quatrocentas e trinta e oito latinhas de cerveja (isso dá o quê? Um ambulante?) poderia ser gasto ao invés disso explicando que outros eventos ao ar livre são igualmente superdimensionados. Eg:
O Bola Preta reuniria, nos (32x1300)= 41.600m2 da Rio Branco 2,3 milhões de pessoas. Como é um bloco de carnaval, vamos dividir por três ao invés de quatro para os simultâneos: 770.000 pessoas. Dá uma lotação de 18,5 pessoas por metro quadrado, o que é fisicamente impossível. O Galo da Madrugada reuniria 2 milhões numa área de 22.000m2 - quase a mesma coisa que o Bola Preta, em metade da área. O reveillon de Copacabana tem mais espaço - são 800.000m2 para dois milhões de pessoas, então é possível que seja de verdade. Mas a virada cultural de 2011 em Piracicaba - a maior do interior - teve alegados 250.000 frequentadores, numa cidade que mal passa dos 350.000 contando velhinhos e crianças de colo. Até os históricos comícios das Diretas são superdimensionados - 1,5 milhão de pessoas em um terço dos 300.000m2 do Anhangabaú dá uns 15 seres humanos por metro quadrado, pra não falar da impossibilidade de uma multidão dessas se escoar pela Rua Direita.
Ao restringir seu questionamento dos grandes números à parada gay e a eventos religiosos, a Folha "torna-se neutra" na disputa entre homofóbicos e igualitários, tirando legitimidade de ambos (como se houvesse neutralidade legítima numa tal disputa), e não deixa claro que a comparação não é entre os 270.000 da parada gay e os 2,3 milhões de um baile de carnaval, mas entre 270 mil da parada gay e prováveis 150.000 do Bola Preta. E só pra deixar claro: esses "míseros" 270.000 são três Maracanãs lotados (para usar a hipérbole futebolística que em outras ocasiões é tão querida do jornal). Ou oito Pacaembus e meio. Ou cinco vezes o que cabe em toda a rede hoteleira da cidade de São Paulo. O quádruplo das multidões de turistas esperadas para a Copa. (Ou seja, por baixo o número de turistas da parada gay é igual ao da copa.)
Infelizmente, a Folha não estendeu sua faina "científica" a conseguir mais dados dos frequentadores, limitando-se a perguntar sobre sua orientação sexual. Seria interessante - e não menos interessante politicamente, já que a imensa micareta há muito deixou de ser primariamente uma marcha política, de reinvindicação de direitos - ver quais são as opiniões, interesses, e mesmo origem desse mundaréu de gente. Que não fica menor porque um número enorme e difícil de se apreender na mente humana foi substituído por outro.
PS Na mesma edição em que a Folha tenta deslegitimar a Parada, a tira de Laerte no caderno de informática faz o contraponto perfeito, com Muriel explicando que a Parada acabou, mas o orgulho não.
A Folha de São Paulo causou polêmica ao anunciar que, segundo seu método "científico" de mensuração, a parada gay de São Paulo (provavelmente a maior do mundo) reúne 270.000 pessoas, e não os 4 milhões apregoados. A matéria ainda carrega nas tintas ao falar do lixo e da bebida ilegal apreendida (incríveis 438 latinhas de cerveja - oh!) É uma pérola de como mentir falando a verdade.
Sim, falando a verdade, porque vamos deixar claro: o fantasmagórico número de quatro milhões de frequentadores é absolutamente irreal. A Paulista tem 40 metros de largura, de fachada a fachada, por 2.500m de comprimento, da praça Oswaldo Cruz à Consolação. Dá 100.000m2, o que parece razoável manter descontando obstáculos e somando ruas transversais; se você enfiar um milhão de pessoas - um quarto dos frequentadores de uma parada estarem lá simultaneamente é uma conta razoável - vai ter a lotação do metrô de São Paulo na hora do rush, não algo que dê para se mexer. Sublinhando: do metrô de São Paulo. O metrô do Rio não chega nesse nível de lotação, nem a maioria dos meios de transporte do mundo. 270.000 pessoas, 100.000 simultaneamente, dá uma pessoa por metro quadrado, o equivalente a uma casa noturna bem lotada, com pontos mais e menos lotados ao longo do trajeto.
Qual é a mentira embutida nessa verdade? É que o tempo que o jornal gasta contando quatrocentas e trinta e oito latinhas de cerveja (isso dá o quê? Um ambulante?) poderia ser gasto ao invés disso explicando que outros eventos ao ar livre são igualmente superdimensionados. Eg:
O Bola Preta reuniria, nos (32x1300)= 41.600m2 da Rio Branco 2,3 milhões de pessoas. Como é um bloco de carnaval, vamos dividir por três ao invés de quatro para os simultâneos: 770.000 pessoas. Dá uma lotação de 18,5 pessoas por metro quadrado, o que é fisicamente impossível. O Galo da Madrugada reuniria 2 milhões numa área de 22.000m2 - quase a mesma coisa que o Bola Preta, em metade da área. O reveillon de Copacabana tem mais espaço - são 800.000m2 para dois milhões de pessoas, então é possível que seja de verdade. Mas a virada cultural de 2011 em Piracicaba - a maior do interior - teve alegados 250.000 frequentadores, numa cidade que mal passa dos 350.000 contando velhinhos e crianças de colo. Até os históricos comícios das Diretas são superdimensionados - 1,5 milhão de pessoas em um terço dos 300.000m2 do Anhangabaú dá uns 15 seres humanos por metro quadrado, pra não falar da impossibilidade de uma multidão dessas se escoar pela Rua Direita.
Ao restringir seu questionamento dos grandes números à parada gay e a eventos religiosos, a Folha "torna-se neutra" na disputa entre homofóbicos e igualitários, tirando legitimidade de ambos (como se houvesse neutralidade legítima numa tal disputa), e não deixa claro que a comparação não é entre os 270.000 da parada gay e os 2,3 milhões de um baile de carnaval, mas entre 270 mil da parada gay e prováveis 150.000 do Bola Preta. E só pra deixar claro: esses "míseros" 270.000 são três Maracanãs lotados (para usar a hipérbole futebolística que em outras ocasiões é tão querida do jornal). Ou oito Pacaembus e meio. Ou cinco vezes o que cabe em toda a rede hoteleira da cidade de São Paulo. O quádruplo das multidões de turistas esperadas para a Copa. (Ou seja, por baixo o número de turistas da parada gay é igual ao da copa.)
Infelizmente, a Folha não estendeu sua faina "científica" a conseguir mais dados dos frequentadores, limitando-se a perguntar sobre sua orientação sexual. Seria interessante - e não menos interessante politicamente, já que a imensa micareta há muito deixou de ser primariamente uma marcha política, de reinvindicação de direitos - ver quais são as opiniões, interesses, e mesmo origem desse mundaréu de gente. Que não fica menor porque um número enorme e difícil de se apreender na mente humana foi substituído por outro.
PS Na mesma edição em que a Folha tenta deslegitimar a Parada, a tira de Laerte no caderno de informática faz o contraponto perfeito, com Muriel explicando que a Parada acabou, mas o orgulho não.
6.6.12
O tamanho do fosso
Um lugar-comum nas análises econômicas e sociais brasileiras hoje em dia é a ascensão de dezenas de milhões de brasileiros à classe C, ou melhor, à "nova classe média." O lugar-comum gera sentimentos mistos de exaltação (nos governistas), preconceito (na massa cheirosa), e confusão - este em todo mundo. Sim, porque a classe C não é, em hipótese alguma, algo que dê para confundir com a classe média propriamente dita. Esta é uma definição que não fala de renda, mas função: são aqueles que, sem serem burgueses (donos dos meios de produção), tampouco podem ser chamados de proletários. São profissionais liberais, funcionários públicos graduados, professores universitários, e outros cujo capital é frequentemente superior ao da pequena burguesia; se fôssemos nos ater à funcionalidade estrita, mesmo um CEO de uma transnacional, sendo ele empregado e não dono, mereceria constar dela.
Já a classe C é o fundo, o primeiro degrau da escada do mercado de consumo, o que é apropriado, já que a divisão por classes alfabéticas, antes de ser feita por faixa de renda pelo IBGE, foi feita pelo IBOPE baseada em classes de consumo, a pedido da Associação Brasileira de Anunciantes. A classe C não é a que está incomodando o Xexéo no avião; estes são os que ascenderam à classe A ou à B mesmo. São definições diferentes de classe, mas a "classe média" da classe C está definitivamente abaixo da "classe média" como o termo é tradicionalmente empregado. Não que se trate de algum embuste da parte do IBGE: é que este trabalha com a média de renda nacional, num país que é caracterizado tanto por uma renda média não tão alta (uns R$1.000, contando benefícios, por pessoa por mês) quanto por uma desigualdade muito alta.
A noção do que seria a classe C, como a de muitos integrantes da classe média tradicional de que eles são pobres (e pagam impostos demais) é parte de um desconhecimento do tamanho do fosso social no Brasil. Todos sabem que somos dos países mais desiguais do mundo, mas mesmo assim subestimam o tamanho dessa desigualdade. Já comentei que quem paga imposto de renda está entre os 20% mais ricos, por definição, mas vamos lá, para reforçar. A renda média mensal (já incorporado 13º, vale-transporte, e vale-refeição) por faixa dos rendimentos, nas seis maiores capitais (portanto, maior do que a média nacional):
1% mais ricos: 21.030
próximos 9%: 5.775
segundo decil: 2.633
terceiro decil: 1.744
4º : 1.334
5º : 1.077
6º : 906 (sim, se você ganha mais de 1.000 reais, você está acima da mediana de renda nas seis maiores capitais)
7º : 752
8º : 684
9º : 496
10º : 205
Vejam que a curva não é exatamente linear. Ela ganha velocidade em ambas as pontas, como toda curva de Lorenz - esse é o nome da curva que acabamos de olhar, que reduzida a um índice (pelo tamanho da área que fica embaixo de um quadrado por ela cortado como proporção de metade do quadrado) é o tal índice de Gini, fórmula mais usada para calcular desigualdades.
Reparem também que os 1% que ganham em média 21.030 reais não são os responsáveis por esse índice de Gini. (Falando de matemática, não de moral ou política.) A desigualdade brasileira que é uma das maiores do mundo não é a desigualdade entre você e o Eike Batista, é a desigualdade entre alguém que ganha entre 1500 e 7.000 reais e o grosso da população, ou, pela outra expressão comum da desigualdade, a da comparação entre o primeiro e o último quintis ou decis, entre quem ganha entre 2500 e 10.000 reais e quem ganha de 0 a 500. (A rigor, nem os 1% mais ricos são o Eike Batista - são um contingente de 2 milhões de pessoas, afinal.)
E essa curva - já grotesca - apresentada aqui não revela toda a desigualdade brasileira. Afinal, os salários nessas seis capitais são 80% maiores do que a média nacional; nossa desigualdade regional também é bem maior do que a da maioria dos países (se menor do que a argentina.) Além disso, renda do trabalho não é toda a renda; é apenas uns 63% do PIB. O resto do PIB é a renda do capital - que, de novo, não é apenas o Eike Batista. Se você tem uma aplicação financeira qualquer, de ações na bolsa à humilde poupança, você se beneficia da renda do capital. (E, se investe em renda fixa, dos juros pagos pelo governo sobre sua dívida.) Não apresento aqui a curva de Lorenz da renda do capital porque ela se assemelha a um traço.
Mas pera, tem mais: renda e riqueza não são a mesma coisa. Afinal, alguém que usa sua renda para pagar aluguel e curso universitário não está na mesma situação que alguém que cursa uma universidade pública e mora sem aperto na casa paterna. Vendo-se a distribuição da riqueza líquida no Brasil, o "traço" da renda do capital é reproduzido (pra ser exato, no que se refere apenas à propriedade fundiária, que é a melhor documentada, um Gini de 0,856). No Brasil, temos vertigens sobre vertigens de fossos de renda; é de fazer o Fausto do Pessoa perder a razão.
Esses fossos, a bem da verdade, vêm se reduzindo paulatinamente a partir do momento em que foram sendo redirecionados os gastos do governo por classe de renda, primeiro sob FH com as restrições a aposentadorias e pensões, e depois, e de forma não só mais positiva como muito mais forte, sob Lula, com o Fome Zero e a política de aumento do salário mínimo. Não se pode ignorar isso em qualquer análise do mérito dos governos petistas: o índice de Gini brasileiro caiu de forma expressiva, e a participação do trabalho na renda nacional vem subindo desde 2005; a desigualdade ainda é gritante, mas começou a cair, e o quanto isso significa em redução do sofrimento é difícil de exagerar. O lema do governo Dilma, "país rico é país sem pobreza," que a princípio parece uma tautologia, não é na verdade tão óbvio assim: o Brasil poderia ver seu PIB dobrar, se equiparando ao de Portugal e, mantida a distribuição a mediana de salários nacional ainda estaria por volta de mil reais. Poderia triplicar, e não chegaria a dois mil. Se o Brasil tivesse a renda per capita do Japão, mas não o Gini daquele país, um quinto dos ocupados ganharia menos de 900 reais e metade menos de 1500.
Tampouco, claro, essa redução serve, como quer o governo, para ignorar questões de direitos humanos e ambientais. Até por um motivo: as tais variáveis de direitos humanos e ambientais, especialmente estas últimas, longe de ser firula, resultam em impactos positivos para a sacrossanta riqueza material - e é esta, e não a renda, que é entrada bruta de dinheiro sem considerar a saída, o objetivo mesmo de quem se restringe única e exclusivamente ao bem-estar material. Uma situação de direitos humanos - LGBT, femininos, raciais, o que seja - estável significa cidadãos mais produtivos. Recursos naturais provêem serviços naturais importantes. Não são penduricalhos que atrapalham a máquina do progresso.
PS Se o governo agora gasta um pouco mais com os mais pobres, continua ignorando a possibilidade de taxar mais aos mais ricos. Pelo contrário, não apenas o imposto de renda do trabalho continua congelado, como sob o governo Lula foram reduzidos os impostos sobre aplicações financeiras.
Já a classe C é o fundo, o primeiro degrau da escada do mercado de consumo, o que é apropriado, já que a divisão por classes alfabéticas, antes de ser feita por faixa de renda pelo IBGE, foi feita pelo IBOPE baseada em classes de consumo, a pedido da Associação Brasileira de Anunciantes. A classe C não é a que está incomodando o Xexéo no avião; estes são os que ascenderam à classe A ou à B mesmo. São definições diferentes de classe, mas a "classe média" da classe C está definitivamente abaixo da "classe média" como o termo é tradicionalmente empregado. Não que se trate de algum embuste da parte do IBGE: é que este trabalha com a média de renda nacional, num país que é caracterizado tanto por uma renda média não tão alta (uns R$1.000, contando benefícios, por pessoa por mês) quanto por uma desigualdade muito alta.
A noção do que seria a classe C, como a de muitos integrantes da classe média tradicional de que eles são pobres (e pagam impostos demais) é parte de um desconhecimento do tamanho do fosso social no Brasil. Todos sabem que somos dos países mais desiguais do mundo, mas mesmo assim subestimam o tamanho dessa desigualdade. Já comentei que quem paga imposto de renda está entre os 20% mais ricos, por definição, mas vamos lá, para reforçar. A renda média mensal (já incorporado 13º, vale-transporte, e vale-refeição) por faixa dos rendimentos, nas seis maiores capitais (portanto, maior do que a média nacional):
1% mais ricos: 21.030
próximos 9%: 5.775
segundo decil: 2.633
terceiro decil: 1.744
4º : 1.334
5º : 1.077
6º : 906 (sim, se você ganha mais de 1.000 reais, você está acima da mediana de renda nas seis maiores capitais)
7º : 752
8º : 684
9º : 496
10º : 205
Vejam que a curva não é exatamente linear. Ela ganha velocidade em ambas as pontas, como toda curva de Lorenz - esse é o nome da curva que acabamos de olhar, que reduzida a um índice (pelo tamanho da área que fica embaixo de um quadrado por ela cortado como proporção de metade do quadrado) é o tal índice de Gini, fórmula mais usada para calcular desigualdades.
Reparem também que os 1% que ganham em média 21.030 reais não são os responsáveis por esse índice de Gini. (Falando de matemática, não de moral ou política.) A desigualdade brasileira que é uma das maiores do mundo não é a desigualdade entre você e o Eike Batista, é a desigualdade entre alguém que ganha entre 1500 e 7.000 reais e o grosso da população, ou, pela outra expressão comum da desigualdade, a da comparação entre o primeiro e o último quintis ou decis, entre quem ganha entre 2500 e 10.000 reais e quem ganha de 0 a 500. (A rigor, nem os 1% mais ricos são o Eike Batista - são um contingente de 2 milhões de pessoas, afinal.)
E essa curva - já grotesca - apresentada aqui não revela toda a desigualdade brasileira. Afinal, os salários nessas seis capitais são 80% maiores do que a média nacional; nossa desigualdade regional também é bem maior do que a da maioria dos países (se menor do que a argentina.) Além disso, renda do trabalho não é toda a renda; é apenas uns 63% do PIB. O resto do PIB é a renda do capital - que, de novo, não é apenas o Eike Batista. Se você tem uma aplicação financeira qualquer, de ações na bolsa à humilde poupança, você se beneficia da renda do capital. (E, se investe em renda fixa, dos juros pagos pelo governo sobre sua dívida.) Não apresento aqui a curva de Lorenz da renda do capital porque ela se assemelha a um traço.
Mas pera, tem mais: renda e riqueza não são a mesma coisa. Afinal, alguém que usa sua renda para pagar aluguel e curso universitário não está na mesma situação que alguém que cursa uma universidade pública e mora sem aperto na casa paterna. Vendo-se a distribuição da riqueza líquida no Brasil, o "traço" da renda do capital é reproduzido (pra ser exato, no que se refere apenas à propriedade fundiária, que é a melhor documentada, um Gini de 0,856). No Brasil, temos vertigens sobre vertigens de fossos de renda; é de fazer o Fausto do Pessoa perder a razão.
Esses fossos, a bem da verdade, vêm se reduzindo paulatinamente a partir do momento em que foram sendo redirecionados os gastos do governo por classe de renda, primeiro sob FH com as restrições a aposentadorias e pensões, e depois, e de forma não só mais positiva como muito mais forte, sob Lula, com o Fome Zero e a política de aumento do salário mínimo. Não se pode ignorar isso em qualquer análise do mérito dos governos petistas: o índice de Gini brasileiro caiu de forma expressiva, e a participação do trabalho na renda nacional vem subindo desde 2005; a desigualdade ainda é gritante, mas começou a cair, e o quanto isso significa em redução do sofrimento é difícil de exagerar. O lema do governo Dilma, "país rico é país sem pobreza," que a princípio parece uma tautologia, não é na verdade tão óbvio assim: o Brasil poderia ver seu PIB dobrar, se equiparando ao de Portugal e, mantida a distribuição a mediana de salários nacional ainda estaria por volta de mil reais. Poderia triplicar, e não chegaria a dois mil. Se o Brasil tivesse a renda per capita do Japão, mas não o Gini daquele país, um quinto dos ocupados ganharia menos de 900 reais e metade menos de 1500.
Tampouco, claro, essa redução serve, como quer o governo, para ignorar questões de direitos humanos e ambientais. Até por um motivo: as tais variáveis de direitos humanos e ambientais, especialmente estas últimas, longe de ser firula, resultam em impactos positivos para a sacrossanta riqueza material - e é esta, e não a renda, que é entrada bruta de dinheiro sem considerar a saída, o objetivo mesmo de quem se restringe única e exclusivamente ao bem-estar material. Uma situação de direitos humanos - LGBT, femininos, raciais, o que seja - estável significa cidadãos mais produtivos. Recursos naturais provêem serviços naturais importantes. Não são penduricalhos que atrapalham a máquina do progresso.
PS Se o governo agora gasta um pouco mais com os mais pobres, continua ignorando a possibilidade de taxar mais aos mais ricos. Pelo contrário, não apenas o imposto de renda do trabalho continua congelado, como sob o governo Lula foram reduzidos os impostos sobre aplicações financeiras.
1.6.12
O anel do Lanterna
De casamento, seus mente-suja. A DC Comics anunciou, com muito espalhafato, a saída do armário do "Primeiro Lanterna Verde," um personagem importante da revistinha. O estardalhaço levou muita gente a cogitar algum personagem de primeira linha, mas afinal era apenas um homônimo; um lanterna verde que pode ter sido o primeiro na cronologia mas não tem nem de longe a importância ou popularidade do segundo, Hal Jordan. Mal comparando, é como se a Marvel falasse que um personagem de primeira linha seria revelado como gay, e anunciasse que era o Tocha Humana. Não o irmão da Mulher Invisível, mas o robô dos anos 40, vejam bem.
Aliás, é curioso que, até há pouco, a homossexualidade de algum personagem era algo que escritores tinham que desafiar as editoras para introduzir, ou mesmo deixar subentendido - antes ainda, durante a vigência do famigerado Comics Code, era explicitamente proibido mesmo. Hoje, é usada como propaganda de impacto; tanto que a Marvel, com igual espalhafato, anunciou o casamento de seu herói Estrela Polar, oficialmente gay desde os anos 90. Antigamente personagens eram mortos com essa fanfarra; esperemos que a homossexualidade não seja tão facilmente reversível quanto a morte, que nos quadrinhos de heróis tem mais ou menos a gravidade de uma gripe.
Igualmente curioso é que os dois heróis gays mais visíveis da Marvel, Estrela Polar e Mística, ambos revelados como tais nos anos 90, ambos sejam da seara dos X-Men, em que o tema do preconceito, associado geralmente com os judeus, está sempre presente. Ou que a Mística, Mata Hari da Marvel, tenha tido um relacionamento gay de longuíssimo prazo (umas sete décadas) enquanto seduzia marmanjos a torto e a direito.
Ou que, convenhamos, no seu afã de se dizer politicamente correta, a DC apresente o quadrinho da Batmoça - uma ruiva lésbica gostosa. Porque todos sabem que existem grandes chances de nerds rejeitarem uma ruiva lésbica gostosa. Vide a Mística, já mencionada, ou a Willow do seriado Buffy, etc etc etc...
Aliás, é curioso que, até há pouco, a homossexualidade de algum personagem era algo que escritores tinham que desafiar as editoras para introduzir, ou mesmo deixar subentendido - antes ainda, durante a vigência do famigerado Comics Code, era explicitamente proibido mesmo. Hoje, é usada como propaganda de impacto; tanto que a Marvel, com igual espalhafato, anunciou o casamento de seu herói Estrela Polar, oficialmente gay desde os anos 90. Antigamente personagens eram mortos com essa fanfarra; esperemos que a homossexualidade não seja tão facilmente reversível quanto a morte, que nos quadrinhos de heróis tem mais ou menos a gravidade de uma gripe.
Igualmente curioso é que os dois heróis gays mais visíveis da Marvel, Estrela Polar e Mística, ambos revelados como tais nos anos 90, ambos sejam da seara dos X-Men, em que o tema do preconceito, associado geralmente com os judeus, está sempre presente. Ou que a Mística, Mata Hari da Marvel, tenha tido um relacionamento gay de longuíssimo prazo (umas sete décadas) enquanto seduzia marmanjos a torto e a direito.
Ou que, convenhamos, no seu afã de se dizer politicamente correta, a DC apresente o quadrinho da Batmoça - uma ruiva lésbica gostosa. Porque todos sabem que existem grandes chances de nerds rejeitarem uma ruiva lésbica gostosa. Vide a Mística, já mencionada, ou a Willow do seriado Buffy, etc etc etc...
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