Pesquisar este blog

14.6.12

A infraestrutura das células adiposas

Uma epidemia de obesidade assola o planeta. Não é exagero - pelo menos se nos ativermos à definição técnica de epidemia, que fala de uma quantidade considerável da população afetada. São centenas de milhões, quiçá já chegando nos bilhões, de obesos. Só nos EUA são mais de 120 milhões. México e Reino Unido, em particular, permitem que se passe dos duzentos milhões sem sair da OCDE. A OMS já conta mais mortes em excesso da obesidade do que de conflitos armados. (Nestes não estão incluídos os assassinatos comuns, admita-se.)

Os culpados apontados para a epidemia são muitos (fora aqueles países, como os da polinésia, em que a genética pode ser apontada como um deles). O problema é que eles frequentemente passam por uma moralidade que não o é menos daninha por ser laica. Mesmo quando critica-se a propaganda das comidas gordas, essa crítica também significa que o incauto comeu a comida gorda, não se exercitou, não teve a força moral e os bagos necessários para enfrentar as tentações do mundo.

Uma crítica mais estrutural fala do papel do automóvel. Afinal, aqueles que não tem a força moral de preferirem o transporte público estão entupindo as ruas de automóveis... menos ironicamente, é óbvio que os automóveis moldaram a própria forma de nossas cidades; aqueles que se utilizam do transporte público, em sua vasta maioria, não o fazem por escolha, mas por necessidade. Não custa lembrar que uma avenida de 14m de largura podia ser considerada uma rua monumental. Um cardo maximus romano de uma capital provincial como Jerusalém ou Antioquia, por exemplo, tinha 12m de largura carroçável mais as calçadas cobertas de uns 5m cada. Ora, a rua defronte ao meu apartamento, uma rua secundária "estreita," tem 10m de largura, obscurecidos pelo fato de carros estacionarem ao longo de ambos os lados. (E pelo inexplicável gosto paulistano pela mão dupla.) As calçadas, bem entendido, não chegam perto de 5m de largura; mesmo assim a distância entre fachadas é de uns 15m.

Vivemos, graças ao carro, em cidades enormes - e não estou nem falando das cidades planejadas como Brasília, Le Havre, ou Chandigarh, filhas do modernismo gernsbackiano do Congresso de Atenas. A densidade comum no mundo pré-automóvel era superior aos 20.000 habitantes por km2 da Paris hodierna; hoje, Paris (e mais ainda lugares como Copacabana ou os bairros insulares de Hong Kong, com 40 a 80 mil habitantes por quilômetro) é uma rara exceção até na região metropolitana de Paris, que tem uns 800hab/km2. Para a mesma população, 25 vezes mais área, a quase totalidade dela cheia de asfalto e concreto. Cidades enormes que, paradoxalmente, reduzem nossos deslocamentos pedonais; anda-se de carro ou de transporte público, mas não a pé. E de carro, sempre que possível, até porque o transporte público é, hoje, em muitos lugares pior do que era há 100 ou 50 anos. Assim, ninguém anda, e por isso todos são gordos.

Todos? O problema dessa análise, por mais que ela seja verossímil e apele para meus próprios gostos e preconceitos (por mim proibia-se todos os carros) é que ela ignora completamente que a gordura é, com o perdão do palavrão, uma questão de classe. Não são todos que estão ficando obesos, não são a classe média que se mata na academia e na dieta nem os plutocratas que continuam como sempre foram: são as classes trabalhadoras, aquelas que antigamente eram famélicas, e (nos países mais ricos) os lumpens, fazendo render seu magro welfare o máximo possível - e sim, coca tem mais calorias, e portanto mais satisfação, do que algo que seria um melhor "rendimento" nutricional. Nem todo mundo, afinal, tem a disciplina férrea de comer como um nutricionista. (Nem os nutricionistas.)

E aí está outro problema: os trabalhadores famélicos de outrora eram associados a um valor espiritualmente positivo, da negação da carne. A fome é espiritual. Ascetas são magros. Hoje em dia, os trabalhadores são associados, cada vez mais, à gordura. O proletariado é gordo, e portanto incontinente, fraco de espírito. À pobreza se soma a ignomínia.  Claro que não mudaram, na realidade, as qualidades espirituais de pobres e ricos, o que mudou foram suas ocupações e a disponibilidade de comida. Antigamente, o lumpen era magro - porque famélico, o trabalhador forte - porque fazia trabalho braçal e comia pouco, o burguês gordo - porque comia bem e trabalhava antes com as mãos ou a boca do que com os braços e costas, e o aristocrata magro ou gordo, conforme fosse, mas forte dos esportes e da alimentação. Ora, hoje, ocupacionalmente, ergonomicamente, em termos de exercício, a maioria dos proletários é burguês. E comida - não boa, mas comida - há para todos.

Mudaram as ocupações, e um operador de call center não gasta tanta energia quanto um lavrador. (Aliás, nem um lavrador, sentado na colheitadeira, gasta tanto quanto aquele que seguia o boi  e seu arado.) Mas não mudaram as associações mentais e estereótipos, e o operador gordo de call center é associado à indolência, mesmo que entre trabalho e transporte mal veja a própria casa antes de desabar no leito. Não deixa de ser, de certa forma, o pior dos mundos possíveis: os pobres continuam pobres, mas sem os sinais exteriores de pobreza, não merecem mais sequer respeito. E o que é pior: se a epidemia de obesidade é algo infraestrutural do próprio sistema capitalista avançado, e não algo que derive de problemas estruturais de segunda ordem, sanáveis dentro desse sistema, nenhuma iniciativa de educação, provisão de alimentos saudáveis, ou "cidades ambulatórias" vai adiantar para freá-la.

Nenhum comentário: