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12.6.12

Fear of small numbers I - mentindo com números

Fear of Small Numbers é o título de um excelente livrinho do Arjun Appadurai, que não tem nada a ver com este post. Mas achei que o título se aplicava.

A Folha de São Paulo causou polêmica ao anunciar que, segundo seu método "científico" de mensuração, a parada gay de São Paulo (provavelmente a maior do mundo) reúne 270.000 pessoas, e não os 4 milhões apregoados. A matéria ainda carrega nas tintas ao falar do lixo e da bebida ilegal apreendida (incríveis 438 latinhas de cerveja - oh!) É uma pérola de como mentir falando a verdade.

 Sim, falando a verdade, porque vamos deixar claro: o fantasmagórico número de quatro milhões de frequentadores é absolutamente irreal. A Paulista tem 40 metros de largura, de fachada a fachada, por 2.500m de comprimento, da praça Oswaldo Cruz à Consolação. Dá 100.000m2, o que parece razoável manter descontando obstáculos e somando ruas transversais; se você enfiar um milhão de pessoas - um quarto dos frequentadores de uma parada estarem lá simultaneamente é uma conta razoável - vai ter a lotação do metrô de São Paulo na hora do rush, não algo que dê para se mexer. Sublinhando: do metrô de São Paulo. O metrô do Rio não chega nesse nível de lotação, nem a maioria dos meios de transporte do mundo. 270.000 pessoas, 100.000 simultaneamente, dá uma pessoa por metro quadrado, o equivalente a uma casa noturna bem lotada, com pontos mais e menos lotados ao longo do trajeto.

Qual é a mentira embutida nessa verdade? É que o tempo que o jornal gasta contando quatrocentas e trinta e oito latinhas de cerveja (isso dá o quê? Um ambulante?) poderia ser gasto ao invés disso explicando que outros eventos ao ar livre são igualmente superdimensionados. Eg:

O Bola Preta reuniria, nos (32x1300)= 41.600m2 da Rio Branco 2,3 milhões de pessoas. Como é um bloco de carnaval, vamos dividir por três ao invés de quatro para os simultâneos: 770.000 pessoas. Dá uma lotação de 18,5 pessoas por metro quadrado, o que é fisicamente impossível. O Galo da Madrugada reuniria 2 milhões numa área de 22.000m2 - quase a mesma coisa que o Bola Preta, em metade da área.  O reveillon de Copacabana tem mais espaço - são 800.000m2 para dois milhões de pessoas, então é possível que seja de verdade. Mas a virada cultural de 2011 em Piracicaba - a maior do interior - teve alegados 250.000 frequentadores, numa cidade que mal passa dos 350.000 contando velhinhos e crianças de colo. Até os históricos comícios das Diretas são superdimensionados - 1,5 milhão de pessoas em um terço dos 300.000m2 do Anhangabaú dá uns 15 seres humanos por metro quadrado, pra não falar da impossibilidade de uma multidão dessas se escoar pela Rua Direita.

Ao restringir seu questionamento dos grandes números à parada gay e a eventos religiosos, a Folha "torna-se neutra" na disputa entre homofóbicos e igualitários, tirando legitimidade de ambos (como se houvesse neutralidade legítima numa tal disputa), e não deixa claro que a comparação não é entre os 270.000 da parada gay e os 2,3 milhões de um baile de carnaval, mas entre 270 mil da parada gay e prováveis 150.000 do Bola Preta. E só pra deixar claro: esses "míseros" 270.000 são três Maracanãs lotados (para usar a hipérbole futebolística que em outras ocasiões é tão querida do jornal). Ou oito Pacaembus e meio. Ou cinco vezes o que cabe em toda a rede hoteleira da cidade de São Paulo. O quádruplo das multidões de turistas esperadas para a Copa. (Ou seja, por baixo o número de turistas da parada gay é igual ao da copa.)

Infelizmente, a Folha não estendeu sua faina "científica" a conseguir mais dados dos frequentadores, limitando-se a perguntar sobre sua orientação sexual. Seria interessante - e não menos interessante politicamente, já que a imensa micareta há muito deixou de ser primariamente uma marcha política, de reinvindicação de direitos -  ver quais são as opiniões, interesses, e mesmo origem desse mundaréu de gente. Que não fica menor porque um número enorme e difícil de se apreender na mente humana foi substituído por outro.

PS Na mesma edição em que a Folha tenta deslegitimar a Parada, a tira de Laerte no caderno de informática faz o contraponto perfeito, com Muriel explicando que a Parada acabou, mas o orgulho não.

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