Causou espécie a proibição, pelo prefeito de São Paulo Gilberto Kassab, de que se distribuísse sopa aos moradores de rua. Já está marcado um sopão da gente diferenciada defronte ou à casa do prefeito ou à Praça da Sé, coração simbólico da cidade e pátio dos milagres nas horas vagas. A notícia, entretanto, poderia ser apenas folclórica se fosse isolada. Afinal, Kassab é mesmo o prefeito que - desde antes de ser prefeito, poder-se-ia dizer, já que desde que Serra, de quem era vice, sentou-se na cadeira - tem promovido um festival quase folclórico de proibições, que inclui até bancas de jornal. Se fosse só ele o problema, seria fácil: tire-se ele (e Serra) da prefeitura de São Paulo, e pronto.
O problema, é claro, é que não é só ele. No Rio, um dos atos mais propagandeados da gestão de Eduardo Paes tem sido o "choque de ordem," que seria uma operação de tolerância zero em relação a regras urbanas em geral, incluídos os estacionamentos irregulares, mas por algum motivo estranho sempre acabam se dirigindo a camelôs, moradores de rua, e outros excluídos. É aí que um problema mundial se encontra com um particularmente brasileiro. O mundial é aquele no qual a cidade - a sociedade humana inteira - deve se submeter ao controle, com fronteiras rígidas (mesmo que invisíveis) no tempo e no espaço. "Há hora e lugar pra tudo," e cada vez mais você pode ser preso se estiver no lugar errado na hora errada. E essa ordem não inclui - fora de pontos turísticos - a ocupação da rua para outros fins que não o transporte, a não ser em pontos do tempo pré-determinados e previamente aprovados. A espontaneidade, a bagunça, a vida estão proscritas.
Essa ordem vazia é estranha. Não apenas porque eu, pessoalmente, prefira a bagunça. É que ela parece levar ao extremo a visão das ruas da cidade como apenas um sistema circulatório (Sennet diria à William Harvey), transportando corpúsculos entre os diferentes órgãos, onde toda a vida acontece. Ao deixar as ruas da cidade vazias, entretanto, e paradoxalmente, tendo em vista a paranóia obsessiva com segurança que rege boa parte das justificativas (confessas e inconfessas) para o esvaziamento, torna-se a rua muito mais insegura. Mesmo com todo o aparato de segurança associado, e mais ainda quando se escapa das limitações desse aparato, que afinal de contas não pode cobrir TODO o território urbano de câmeras e policiais, apesar de tentar.
Isso porque a tal da "ordem" deles não é senão o vazio. Não se está pondo algo na rua, uma nova socialização (que teria que ser por linguagem de sinais, imagino), novos usos e atividades. O que se está fazendo é remover o que existe. E, bem, o vácuo não é ordem. Muito pelo contrário, o vácuo é, nas línguas semíticas, indo-européias e turcas mais antigas, bem como nos ideogramas Shang, sinônimo de caos. Pangu e Marduk têm que derrotar o caos-vazio para que haja universo. E é justamente quando se remove o existente que as coisas fogem de controle. Um paralelo, ainda na questão de segurança, é a imbecilidade de se matar traficantes a rodo, mesmo ignorada a moralidade; o efeito não é eliminar o traficante, já que as condições de produção deste continuam lá, mas substituí-lo por outro, mais radical e violento.
Um exemplo disso pôde ser visto na praça Roosevelt. A praça, que era deserta e perigosa, voltou à vida quando se transformou num pólo de teatro alternativo e barzinhos, sem nenhuma ajuda do poder público. Era um lugar relativamente seguro e agradável, aonde milhares de pessoas se reuniam. Aí, em nome da "ordem," foram proibidas as mesas na calçada, foram fechados os bares à meia noite. A praça voltou, por um tempo, a ser um lugar deserto. Um dos que ainda tentavam se aventurar por ali, o dramaturgo Mario Bortolotto, foi baleado numa tentativa de assalto. (Depois disso, eventualmente permitiram em parte a reocupação da praça.)
Não se pratica assaltos à mão armada, em geral, em lugares iluminados, movimentados, e cheios de gente, exatamente o tipo de espaço que Kassab, Paes, e companhia mundo afora estão tentando eliminar. A ordem deles é, no sentido mais puro e original, o caos.
Se esse culto do caos é mundial, no Brasil ele conta com um agravante: a possibilidade da privatização do espaço público. Num país em que o espaço público não é visto como espaço comum mas como terra vazia, em que interiores suntuosos podem conviver com exteriores aos pedaços (invertendo a situação de boa parte da Ásia e Europa), apropriar-se do espaço público é comum. Digo apropriar-se, e não apoderar-se, para fazer a distinção entre uma ocupação do espaço público transitória e negociada e outra em que o uso do espaço por outros é cerceado.
Ora, com o viés fortemente hierárquico da nossa ordem estabelecida (ordem essa que é mantida acima até da lei pelas autoridades), essa apropriação é combatida quando feita pelos pobres - mas nunca quando é feita pelos ricos. Ou seja, não ganhamos, sequer, uma rua vazia mas bonita. A nossa será vazia, mas entupida de carros. Vazia, mas em que seguranças de lojas e condomínios podem controlar a circulação. No vazio, sobrevive o que a sociedade tem de pior: a demofobia, o racismo, a exclusão.
Um comentário:
Perfeito o texto, Tiago. Exatamente isso.
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