Veja que quando digo "o meu problema com," não estou, como poderia ser óbvio, atacando a idéia. Muito pelo contrário; tô falando de coisas que eu apóio. No caso das cotas, o meu problema com elas é a ideologia que pressupõem. Não, como a maioria dos anti-cotas ressalvaria, a "noção do Brasil como uma sociedade racista." Essa eu assino embaixo, em gênero número e grau. Pelo contrário, o que eu critico é justamente a noção, compartilhada pelos defensores e opositores das cotas, de que se possa separar preconceito racial e social assim tão facilmente; tanto a opção pelo primeiro nos EUA quanto a pelo segundo aqui são formas de se minimizar o problema. Nem poderia ser de outro jeito, já que, a não ser que você seja um mangusto e veja uma cobra, o preconceito racial não é senão uma forma de preconceito social, dirigido a membros da mesma sociedade (não-xenofóbico, portanto).
A ideologia que me incomoda é a do multiculturalismo; a que vê a sociedade como composta, não de indivíduos com matrizes culturais complexas e de difícil definição, mas de "culturas" algo essencializadas, das quais os indivíduos são integrantes mais ou menos plenos. Ela não está ligada necessariamente à noção de cotas raciais, não mais pelo menos do que a pergunta do IBGE sobre a cor dos brasileiros (suspensa, pela mesma alegação de "racismo," pela ditadura militar). O que acontece é que os movimentos negros brasileiros, que têm mais ligações externas do que "grassroots," (e nisso se assemelham aos movimentos nacionalistas de várias eras), maiores proponentes do sistema de cotas, assimilaram também a ideologia do multiculturalismo. Os dois estão juntos de maneira eletiva, mas não parece que a ninguém (a começar pelo governo e sua secretaria de igualdade racial) divorciá-los.
Não é inerentemente errado que as pessoas sejam consideradas de diferentes "etnias" à moda americana, ao invés de primariamente cidadãos de seus países. Por outro lado, o argumento de que essa identidade comunitária poderia dar-lhes forças para melhorar seu status coletivamente esbarra nas evidências; além disso, a identidade étnico-racial não é a única identidade coletiva possível. Pelo contrário, de nordestinos a favelados existem várias identidades coletivas marginalizadas no Brasil. A maioria delas dotadas de maior coesão interna e ritos e símbolos em comum do que a "negritude." Pra quê a Kwanzaa, pra quem tem o Carnaval? O fato dessas identidades não serem de confronto, acusado pelos movimentos negros, não é nem inteiramente verdade nem necessariamente ruim - a não ser que você não considere o próprio conflito ou a guetização males-em-si.
Eu volto aqui a falar da sugestão que dou há tempos sempre que converso com alguém sobre as cotas: cotas geográficas. Atendem aos critérios de imparcialidade e impessoalidade do Estado, ajudam as pessoas prejudicadas pelo preconceito, e mudam a cor das universidades brasileiras. Sem acusações de engenharia racial ou "racismo reverso"(sic). Mas além disso, outra sugestão: que o arcaico sistema de cores do IBGE (preto, pardo, branco, amarelo, vermelho) seja trocado por um em que as tais "etnias" brasileiras - favelado, paraíba/baiano, etc - sejam contempladas. (Além da sugestão que não é só minha, de um sistema em que aparecessem os termos raciais mais comuns no Brasil, como morena, mulata, etc.)
Referências(agora essa budega vai ter referências - chique, né?)
Revista USP - número especial Racismo, I e II
Livio Sansone - Negritude sem Etnicidade
Nenhum comentário:
Postar um comentário