Os lugares estranhos de um a cinco foram, em geral, lugares que escaparam do mundo. John Cluster, um crítico literário inglês, chama um conceito parecido, quando o autor não é Deus, de "pôlder." Frestas na casa do tempo, que escaparam ao diligente espanador de Frau Zeitgeist.
O porto de Gioia Tauro não é nada disso. Aliás, é o contrário. É estranho justamente por encarnar, quase de maneira pura, o tal do espírito do tempo da globalização, é um lugar tão cinza que o cinza se torna uma nova e exótica cor vinda do espaço. Bem, nem tão cinza assim, já que os contêineres coloridos se acumulam tendo como pano de fundo a paisagem de vinícolas e olivais de um dos poucos cantos menos áridos do extremo sul italiano.
Gioia Tauro era uma província rural atrasada quando os tecnocratas do governo central, nos tempos áureos do Grande Planejamento, que na Europa coincidiram com uma tentativa geral de descentralização econômica forçada, decidiram que lá seria construído o V Pólo Siderúrgico. Como hoje em dia os grandes pólos siderúrgicos usam minério importado por mar, a primeira providência tomada foi a escavação, ex nihilo, de um porto enorme no meio da costa. Faz sentido econômico - é muito mais caro do que usar um porto natural, mas depois se gasta menos com dragagem. O problema é que também foi muito mais caro do que o estado italiano podia gastar; depois de pronto o porto, não dava pra fazer a siderúrgica. Muito menos a preços competitivos, e o consumo de aço italiano tinha parado de subir rápido o bastante; uma siderúrgica não competitiva pra exportar aço era burrice demais até pra um Grande Projeto.
Depois de algum tempo matutando o que fazer com o mega-elefante branco, a reorganização do tráfego de cargas deu uma idéia. A noção de "hub-and-spoke," que já é usada desde a segunda guerra pelas companhias aéreas, prevê que a carga (ou passageiro) seja levado até grandes eixos de distribuição, e ali trocada para veículos menores que a levassem até seu destino final. Assim, Atlanta e não Nova Iorque ou Los Angeles é o maior aeroporto americano. Gioia Tauro, com seu calado feito para abrigar navios de minério, sobrava até para os maiores navios de contêineres, e virou rapidamente um "hub" mediterrâneo. Ajudou o fato de que não havia cidade atrás pra impedir a expansão do porto.
O bizarro é que esse enclave da globalização quase em estado puro deixou bem evidente a segregação que é característica da nova globalização, econômica no uso de seres humanos, ao contrário da anterior, que mal ou bem penetrava e alterava o seu entorno. A comuna de Gioia Tauro, ao lado do maior porto do sul da Europa, continua sendo uma comuna agrícola. O porto iluminado vinte e quatro horas, com guindastes do tamanho de arranha-céus, dá lugar quase que imediatamente ao ambiente do Mezzogiorno profundo. É quase a imagem de ficção científica dos colonistas do espaço convivendo em cidades sob domos com selvagens pós-apocalípticos, só que mais estranho ainda - os poucos trabalhadores da cidade das máquinas podem viver em meio aos medievos que lhes circundam.
Um comentário:
Que história incrível. Não conhecia.
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