A FIESP fala ao Valor em ao invés de racionamento deixar as empresas
formularem projetos de economia. Fio, era pra ter feito ano passado. A combinação do apreço ideológico com o autointeresse de visão curta fez
a FIESP acreditar na óbvia mentira de que não tinha crise de água? Aliás, como a FIESP, e a CNI também, não se prepararam pra crise de água na megalópole? Sim, porque a crise já ultrapassou em muito o sistema cantareira; afeta ou afetará de Campinas ao Rio de Janeiro, uma região em que moram mais de um quinto dos brasileros e que responde por quase metade do PIB.
E sim, óbvia mentira e obfuscação; o estranho é que gente inteligente, com recursos e biblioteca à mão, tenha caído tão completamente na esparrela. Mais estranho ainda que a FIESP é o caso da própria Sabesp.
A crise da água na Macrometrópole Paulista é uma cebola em que os erros se aninham e acavalam faz
décadas e continuando hoje. Tanto de longo quanto de curto prazo.
De longo prazo:
1, permitir depauperação das margens dos reservatórios, o que corta em pelo menos30% a capacidade, e se for plantação de eucalipto em até 75%. Ao invés da mata nativa que protegeria a represa, nas margens do sistema Cantareira tem fazenda de gado, plantação de eucalipto, condomínio, e até clube de golfe.
Reparem que isso não é que nem a situação ao sul da metrópole, na Guarapiranga, em que as margens foram ocupadas por favelas, que é uma coisa difícil social e financeiramente de se impedir ou corrigir, são represas em áreas rurais. Fazenda de gado. Compra-se, põe-se cerca. O preço nem é tão alto, uma fração do custo do sistema planejado para buscar água a 100km de distância. Admita-se, aqui, que este erro, ao contrário de outros aqui listados, não é algo particular à Cantareira; a maioria dos reservatórios de água pra beber no Brasil, e muitos dos de hidrelétricas, também não tem mata ciliar. (Alguns têm - em Itaipu, por exemplo, cada prefeitura vizinha pode escolher um único ponto de acesso ao lago.)
2 não fazer mais interligação entre os reservatórios, aumentando a capacidade da Guarapiranga ou da Rio Grande de escorar a Cantareira (ou, hipoteticamente, vice-versa), como foi feito com o sistema Alto Tietê. As represas da Serra do Mar, na Zona Sul, estão ainda bem confortáveis, com mais de 40% de água; parte disso poderia ter sido usado no lugar do volume morto. A interligação, inclusive, não é muito mais complexa do que a proposta de Alckmin de fazer uma ligação com o rio Paraíba do Sul, com todos os seus problemas políticos e ambientais - o Paraíba, que também abastece as cidades de seu vale e, pela transposição do Guandu, o Rio de Janeiro, já chega às vezes com menos de 60% de seu volume original na foz. Isso está, inclusive, destruindo a cidadezinha de Atafona, invadida pelo mar e suas dunas.
3 incentivar consumo Não, eu não disse não incentivar economia. Disse incentivar consumo. Até maio, dava desconto pra os grandes clientes (grande é mais de 500m3/mês) que consumissem muito, progressivo. A lógica, que é fazer frente à competição de poços artesianos e caminhões pipa, é explicada aqui. Isso também, claro, é um problema para uma empresa mista listada na
Bovespa, que precisa ter lucro e precisa ter perspectiva de vender mais
do seu produto, não menos - e aí se pode inclusive questionar o quanto
para empresas de administração de bens públicos, universais, e escassos o
modelo de empresa pública/privada presta. Não é uma Petrobrás ou Vale
em que o recurso é escasso globalmente e se fala de novos paradigmas
econômicos da humanidade, mas um recurso localmente escasso, no caso,
que já acabou. Não tô falando que estatal é sempre melhor, apenas que neste caso específico o conflito entre shareholders e stakeholders é muito maior. E a Sabesp tem agido mais no modo norte-americano que no renano, com o DAEE só chancelando tudo, sendo quase redundante, e a ANA chantageada ou até ignorada inteiramente. Falei capitalismo americano? A atitude de Alckmin hoje perante a ANA é a do Andrew Jackson, 7º presidente americano, quando ignorou uma decisão da Suprema Corte protegendo a nação de índios Cherokee com as palavras "Mr Jackson has made his decision. Now let him enforce it." (O Sr. Jackson fez seu julgamento; que ele o imponha.)
De curto prazo, de resposta à crise:
1 Ignorar a crise até a onça começar a não beber água. A Cantareira desce desde 2009, mesmo sem grandes secas. Isso já devia ter soado alarme em 2012, no máximo. Não é muito complicado; um sistema que não é suficiente pra situação normal obviamente não vai ser suficiente pra caso aconteça algum problema; a Sabesp nesse sentido operou como o dono dum carro ou bike com pneu careca - só que sem a opção de ficar em casa em dia de chuva. Melhor: como alguém que, com o pneu da bicicleta careca, não desce para empurrar a bicicleta, mesmo numa ladeira durante um temporal.
2 Ignorar a crise mesmo com a onça não bebendo água. INPE e ANA já avisavam há um ano que 2014/15 ia ser punk e recomendavam racionamento, ignorados sempre, com direito à inacreditável nota em que...diz que não acredita em previsão climática, e trabalha só com média passada. Ao invés disso, até maio
ignorou-se completamente a crise. Em maio, iniciou-se a resposta mas ainda fingindo que era um problema menor; tirou-se os bônus de consumo e implantou-se bônus de economia. Isso era o que devia ter sido feito em 2012, e devia continuar a ser feito até o final dos tempos. Afinal, o único fato em toda a crise que é uma circunstância adversa fruto apenas do acaso histórico, e não de nenhuma besteira feita, é que a cidade de São Paulo e algumas outras metrópoles brasileiras, ao invés de se situar no baixo ou médio cursos de um rio, com fartura de água, está em volta de suas nascentes, aonde a água ainda é escassa. O rio Tietê que se espraiava enorme na foz no Paraná
(hoje é só represa) é ainda, aqui na capital, pouco mais que um córrego que corria por um enorme brejo. A largura que suas margens de concreto têm hoje é para escoar as chuvas de verão sem a ajuda do brejo e dos riachos paralelos que antes havia, sem a floresta, chuva que escorre direto por uma imensa área concretada e impermeabilizada. É muito maior do que a largura do rio "propriamente dito," das suas condições normais. E debaixo da superfície que se avista das marginais, a profundidade até a camada de lixo e lodo, muitas vezes, não é suficiente para afogar uma criança.
3 ao chamar o volume morto de "reserva técnica," acreditar na própria propaganda e tratar como um extra programado, e não como emergência que já era, merecedora de racionamento, campanha diária de esclarecimento, estímulo ao linchamento de quem lava o carro... ok, talvez não o último item. Mas de qualquer jeito; se já se estava puxando o que não era pra puxar, se já se estava cortando na carne, o certo não era dizer "não tem crise, não vai haver racionamento." E hoje, com a drenagem do segundo volume morto, a história, a besteira, se repetem. A consequência - e aí pode ser chamado de erro 4 do curto prazo, da
administração da crise, é que não, as coisas não se resolvem com chuva - outra mentira em que a própria Sabesp pelo visto acabou acreditando. A Cantareira vai entrar na temporada seca de 2015 com 20%, metade deste
ano, e o INPE prevê 2015 seco. E as outras represas entram 2015 com
níveis baixos também, dimnuindo a capacidade delas de absorver a falta da
cantareira. E só pra completar, artesianos não adiantam, porque...
a reposição de água na Grande SP é basicamente perda da Sabesp. Se acabar a água dela, o poço artesiano também seca.
Mesmo que não fiquemos sem água neste ano ou no próximo, secar um reservatório não é como secar uma garrafa, tem consequências imprevisíveis e complexas, mas na maioria negativas. O volume morto, afinal, não era nem uma reserva de emergência (se fosse, não precisaria ser instalado equipamento e feitas obras de terraplanagem - sem licitação, claro, porque de emergência - para bombeá-lo, o equipamento já estaria lá, ou pelo menos os diques e canos) nem um deslize dos engenheiros que projetaram o sistema. Era algo necessário.
1 a represa não foi feita como uma estrutura em si, mas tendo o peso da água de um lado como componente dela. Os efeitos de drenar a água são imprevisíveis, mas provavelmente pioraram a vida útil dos diques.
2 a água, como o dinheiro, vai para onde já tem água; é um dos principais motivos pelos quais florestas aumentam a disponibilidade de água (o outro é aumentar, com suas raízes, a permeabilidade do solo,). A água que sai da transpiração das plantas todo dia é uma massa considerável, que atrai pra si mais água e faz chover; Ao deixar os reservatórios secarem quase completamente, é provável que chova menos no médio prazo sobre as represas.
3 represas não são vasilhas. Boa parte da água está no chão, e é bem difícil de saber como essa água do lençol freático vai se comportar a partir de agora, já que o próprio lençol freático foi drenado. A conta da água no reservatório da Sabesp, que só leva em conta a água livre, como numa vasilha, subestima o quanto foi drenado.
Parabéns Alckmin. Se reelegeu no 1º turno, às custas de meros vinte anos de pepinos. Até porque, feita a caca, não é simplesmente levar adiante as ações que já deviam ter sido feitas. O replantio das margens, por exemplo, pode até melhorar a capacidade total uma vez a floresta mais ou menos madura - mas durante os 20-30 anos que isso demora pra acontecer, a floresta chupa até 30% da água.
Todas as barbadas na Cantareira são potencializadas por uma situação continental e global adversa, que escapa ao controle do governo estadual, mas também tem causas humanas: o aquecimento global e o desmatamento na América do Sul. Com o aquecimento global, mudam os padrões globais de chuva; as maiores massas d'água evaporadas do oceano caem mais cedo, aumentando a precipitação em lugares próximos aos da geração de água atmosférica no mar e diminuindo a precipitação em locais mais distantes. Como o ciclo de águas no sudeste do Brasil é pautado pela vinda de chuvas do oceano, vai aumentar a queda d'água no baixo vale do Paraná, e diminuir a chuva no mar de morros. Adivinha aonde está São Paulo? Pois é. Já o desmatamento no Brasil e na América do Sul tem duplo efeito: primeiro, no próprio cerrado, diminui a chuva autóctone, aquela mesma já mencionada acima sobre a Cantareira. Segundo, existe um fenômeno na América do Sul chamado de rios voadores: a Amazônia contém tanta água que pode quase ser considerada um mar, e quando a chuva vem do Atlântico cair lá é apenas recarregada, até que os ventos batem nos Andes e vêm para o Sudeste e Sul do Brasil. Por conta desse fenômeno que o Cerrado é muito mais rico do que a Savana africana ou as Great Plains da América do Norte, por conta dele que a vegetação de boa parte do Sudeste era floresta, mesmo estando na sombra orográfica das montanhas da dupla serra do mar e da mantiqueira. Se tem menos Amazônia, esse fenômeno rateia. Só pra constar, o mapa abaixo é apenas do efeito direto do aquecimento global, e não contempla o desmatamento e seus efeitos continentais. Um efeito multiplica o outro...
Não se pode dizer que a seca deste ano, especificamente, é causada por esses grandes processos - nenhum evento isolado pode ser atribuído a um processo gradual assim, inequivocamente - mas pode-se dizer que a probabilidade de secas grandes vai aumentar. Pode-se dizer que a probabilidade de anos de chuva acima da média vai diminuir, e como vimos no gráfico ali em cima, são necessárias chuvas substancialmente acima da média para deixar o Cantareira empatado. O que torna ainda mais temerário o descaso com a questão da água em São Paulo, ao invés de ser desculpa; sabe-se que as coisas vão ficar mais difíceis, não menos.
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