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3.10.14

Os paladinos e seus martelos

A cooperação entre países que alhures se enfrentam usando os cadáveres dos outros  contra o Estado Islâmico da Síria e do Levante, ou Daesh, não deixa de ser impressionante. Os mesmos EUA que patrocinam o governo da Ucrânia contra os rebeldes patrocinados pela Rússia se alia à Rússia contra esses fundamentalistas. A mesma Rússia que patrocina o governo da Síria contra os rebeldes patrocinados pelos EUA se alia aos EUA contra eles. A própria Síria também coopera com os EUA que abertamente procuram eliminar seu governo. A Europa amotinada corre pra ajudar, seja ela conservadora ou socialista. Cá na remota província, a idéia de que bombardear não resolva, aventada pela presidenta, foi criticada como absurdo. É um tal nível de unanimidade na idéia de que é necessário um ataque vingador, uma bomba defensora, contra o Mal que se levanta, que parece que voltamos à cooperação dos Aliados contra o mal apocalíptico do nazismo. (E sim, apocalíptico cabe bem ao nazismo. Às vezes nenhum exagero é possível nem necessário.)


De que os vilões da vez são mesmo horrorosos, não resta dúvida. O grupo de fundamentalistas iraques que megalomanicamente se autointitula Estado Islâmico (tendo deixado de lado a especificação "do Iraque e do Levante" para anunciar suas pretensões universais) tem colecionado, além de triunfos contra o mequetrefe exército do governo de Bagdá, atrocidades de todo o tipo. Cheios de armas, doadas pelos EUA e Arábia Saudita com a intenção de derrubar o presidente-ditador hereditário da Síria, deram uma de gênio da garrafa e não se contentaram com os desejos de seus financiadores; numa espécie de inversão do dito de Marx, são a versão mais a sério da Talibã, num país mais rico, mais educado, e mais antigo do que o Afeganistão. Se no Afeganistão tribal e inóspito foram derrubados os budas de Banyan e conviviam shows de meninos-moça com o fundamentalismo, na Síria e no Iraque o número de patrimônios da humanidade destruídos pela iconoclastia wahabita (sem contar aqueles rebentados pelos azares da guerra em geral) já atinge proporções quase sauditas, e o mundo vai ficando mais estranho e pobre pela derrubada de obras de arte e pelo genocídio de grupos que sobreviviam, nas sombras e dobras da história, há séculos ou milênios.

Um desses grupos, e dos mais proeminentes no noticiário recentemente, o dos iázides, provavelmente seria mais familiar para nossos avós e bisavós que nos dias de hoje, e pelo mesmo motivo que os leva a ser objeto de especial ódio dos fundamentalistas do Daesh. É que a mitologia deles, uma das milhares de seitas gnósticas e neognósticas e antignósticas que surgiram no Oriente Médio no primeiro milênio (duas delas se chamam cristianismo e islã), inverte a narrativa islâmica da queda de Iblis-Lúcifer. Assim para os iázidis o demiurgo Melek Taus, rejeitando a ordem de Deus, de se ajoelhar perante sua nova criação, o homem, por muito amá-lo, é premiado ao invés de punido; essa diferença, mais todos os preceitos de pureza e isolamento comuns às tradições gnósticas, foram o bastante para que fossem considerados adoradores do demônio, e assim os Iázidis percorreram as páginas e telas de romances de aventura do começo do século passado. Fizeram figuração nas aventuras de Khlit, o Cossaco, que serviram de inspiração pro Conan e Cecil B. De Mille, em dúzias de pulps de menor nome... nas revistinhas, mais recentemente e até por isso menos distorcidamente, apareceram nas páginas do Corto Maltese (na Casa Dourada de Samarkand) e do Top 10 do Alan Moore. Sempre por conta desse mito de que são adoradores do demônio, seja o mito reproduzido ou explicado. Além de torná-los alvos para tudo que é fanático religioso, a religião deles também torna muito mais difícil safar-se através da diáspora, aliás; os preceitos estritos de pureza e contaminação são muito mais difíceis de seguir por indivíduos isolados num meio urbano multicultural do que quando se vive nas próprias aldeias; a tragédia do fim dos iázidis pode já ser fato consumado.

Um desses monumentos, curiosamente, é justamente a Igreja Memorial do Genocídio Armênio, o que não deixa de ser uma dupla morte. Os armênios eram boa parte da população do que hoje são a Turquia e o Iraque; foram massacrados, numa prefiguração do Holocausto, por um estado moderno e modernizante, militarizado, presidido por um líder carismático que prometia elevar sua nação acima da nódoa da derrota imperial na Grande Guerra. Eu disse prefiguração do Holocausto? O Hitler concorda comigo. Nas palavras do monstro, Unsere Stärke ist unsere Schnelligkeit und unsere Brutalität. Dschingis Khan hat Millionen Frauen und Kinder in den Tod gejagt, bewußt und fröhlichen Herzens. Die Geschichte sieht in ihm nur den großen Staatengründer. Was die schwache westeuropäische Zivilisation über mich behauptet, ist gleichgültig. Ich habe den Befehl gegeben – und ich lasse jeden füsilieren, der auch nur ein Wort der Kritik äußert – daß das Kriegsziel nicht im Erreichen von bestimmten Linien, sondern in der physischen Vernichtung des Gegners besteht. So habe ich, einstweilen nur im Osten, meine Totenkopfverbände bereitgestellt mit dem Befehl, unbarmherzig und mitleidslos Mann, Weib und Kind polnischer Abstammung und Sprache in den Tod zu schicken. Nur so gewinnen wir den Lebensraum, den wir brauchen. Wer redet heute noch von der Vernichtung der Armenier? (Nossa força está na nossa velocidade e na nossa brutalidade. Gengis Cã levou milhões de mulheres e crianças à morte, de coração ligeiro, mas hoje é lembrado pela História apenas como o fundador de um grande país. Não me importa se uma débil civilização ocidental me condenará. Dei a ordem - e mandarei fuzilar quem solte um pio de crítica - no sentido de que nosso objetivo na guerra não é atingir tal ou qual linha, mas a aniquilação física do inimigo. Assim deixei de sobreaviso minhas formações Caveira - por enquanto apenas no Leste - com ordens para levar à morte sem misericórdia e sem compaixão homens, mulheres, e crianças de extração e língua polonesa. Apenas assim conseguiremos o espaço vital de que precisamos. Quem, afinal, fala hoje da aniquilação dos armênios?)

Então, se há gente tão má no mundo, nada mais natural que as nações da terra se esqueçam por um momento do ódio de sua guerra e se juntem para dar fim aos monstros, não? Bem, não exatamente. Pra início de conversa, se eu disse que a relação entre o Daesh e a Talibã reverte o aforisma de Marx, por outro lado a comparação entre a Arábia Saudita e a Talibã deixa aquelas palavras do 18 Brumário bem no lugar de sempre. A Arábia Saudita, afinal, foi o primeiro resultado moderno da mistura de fundamentalismo islâmico e patrocínio por grandes potências estrangeiras - com o ingrediente adicional explosivo do imenso oceano de petróleo sob o Golfo Pérsico (o campo de Ghawar, em particular, seria sozinho o oitavo país com as maiores reservas do mundo; a usina de processamento de Abqaiq é maior do que a capacidade total do Reino Unido). Assim como os budas de Banyan ou a tumba do profeta Jonas, milhares de sítios históricos foram destruídos pelos sauditas, inclusive no Iraque, mas principalmente em Meca, desde o começo do reino até os dias de hoje, sendo que hoje em dia o fanatismo se mistura ao comercialismo, e vê-se shopping centers se erguerem sobre as ruínas de mesquitas "heréticas." Assim como o Daesh e a Talibã, a Arábia Saudita continua curtindo muito cortar umas cabeças de inimigos da fé em público. É bem verdade, a Arábia Saudita já cometeu seus genocídios no passado e não comete nenhum no momento. Bem, não diretamente. Acontece que a casa de ibn Saud não é apenas a precursora de todos os grupos fundamentalistas wahabbis no mundo, ela lhes patrocina, direta ou indiretamente, é a fonte ideológica e monetária. É dinheiro saudita que financia a pregação de ódio e intolerância da Nigéria à Indonésia, do Marrocos às Filipinas, E, claro, do Afeganistão ao Iraque.

Assim, é curioso que um dos aliados árabes dos EUA na nobre empreitada de bombardear esses monstros do Daesh é... a Arábia Saudita. Aliás, nossos amigos sauditas. Não apenas porque a comparação sabota a narrativa que opõe os nossos paladinos aos sarracenos deles, isso poderia ser confrontado com a simples explicação de que às vezes se precisa da aliança com um monstro para enfrentar outro; afinal, o mundo livre não se aliou a Stalin para enfrentar Hitler e acabar com o Holocausto? Bem, assim como naquela época, não exatamente. Na Segunda Guerra, nenhum dos aliados ligava para o Holocausto; a proposta de bombardear as linhas de trem que levavam seres humanos para Auschwitz foi rejeitada, apesar de demandar apenas meia dúzia dos milhares de bombardeios diários sobre a Alemanha. Enfrentaram Hitler porque este foi quem lhes declarou guerra. E hoje, a apresentação da urgência de se enfrentar o Daesh, e por que, é contraditória, com direito a nomes talvez inventados. Mais do que por também ser um vilão, a contradição inerente no apoio à Arábia Saudita é que ela é a fonte. Seria como se guerrear no Vietnã e ser aliado da União Soviética a comparação histórica mais apropriada. Ou, talvez, como ser anticomunista e se aliar à China para patrocinar o Khmer Vermelho contra o Vietnã. Se os EUA estivessem interessados em diminuir a quantidade de cadáveres produzidos pelo fundamentalismo islâmico, poderiam começar retirando o status de supermelhoramiguinho da Arábia Saudita. Quiçá até ameaçar-lhe com sanções se não parasse a brincadeira (o tamanho do reino no mapa do petróleo não deve ser problema se sanções simultâneas à Rússia e ao Irã são tranqs). No caso do Daesh, mais imediatamente, poderiam parar de armar e financiar a oposição na guerra civil síria, patrocinada desde o começo pelos EUA e de onde saiu o grupo. (E turbinada pelo aquecimento global.)

É claro, o problema disso é que não envolve bombas, e explosões, e decisões duras feitas por homens duros. Não é uma resposta forte, viril, heróica. Não utiliza todo o reluzente armamento que 700bn de dólares ao ano compram. Quando se tem um martelo desses, qualquer coisa mesmo vai começar a parecer um prego. Admita-se que a minha "solução" não é uma solução imediata; não vai ajudar muito as vítimas do presente, só as do futuro. Mas tampouco se tem lá tanta certeza de que os bombardeios sejam uma solução. Fazer ALGUMA COISA porque é um horror, tem que se fazer alguma coisa, é a teoria do martelo; ora, se eu estiver com uma dor de cabeça e sem aspirina à mão, prefiro continuar do que já chamei aqui de teriomania, afinal, convive muito bem com a realpolitik realmente real. Aquela em que o ataque ao Daesh pode dar uma esticadinha no Assad, em que pesquisas de opinião sorriem para presidentes guerreiros, em que ações de financiadoras de campanha sobem quando seus produtos estão em alta. Afinal de contas, paladinos também precisam comer, não?
com a dor de cabeça do que levar uma martelada. Isso tudo assumindo-se, claro, a melhor das intenções e que a Casa Branca e seus aliados realmente se preocupam com a sorte dos iázidis e outras minorias no norte do Iraque e na Síria, o que não é necessariamente verdade. A realpolitik do fetichismo pelo sacrifício,

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