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17.5.16

Ajuste sinistro

Convencionou-se, no Brasil, que responsabilidade fiscal é um tema "de direita." Soluciona-se todos os problemas do Brasil seja com a eliminação da corrupção e incompetência (tema que irmana todos que não são, naquele momento, governo), seja com a "auditoria da dívida," que depende de não entender como funciona uma dívida pública e achar que foi um contrato de dívida emitido lá atrás pelo FH ou pelo JK que ainda está sendo pago.

E no entanto, dá pra fazer o ajuste fiscal tão sonhado pelos economistas de direita de uma forma bastante diferente da normalmente assumida. O Brasil - já é quase consenso - é um país em que os impostos indiretos, que pesam mais sobre os mais pobres e atrapalham a economia, são os principais, enquanto os diretos, que pesam sobre renda e patrimônio e portanto sobre os mais ricos, são acessórios. Para inverter essa lógica E fazer o ajuste nas contas públicas, é só

1) Aumentar impostos diretos (IRPFITRITDIPTU (estes últimos subnacionais)). O ITR hoje não morde nem um bilhãozinho; é menor do que o IPTU arrecadado por São Paulo ou pelo Rio. O IRPF para alguém entre os 5% mais ricos não vale 17% (contra 34% nos EUA, que não são exatamente comunistas). O ITD tem alíquota máxima de 8%, vs., de novo nos EUA, 40%. O IGF, que ainda não existe fora da constituição, renderia mais uns trocados. Aumentar o preço da gasolina, sim, que transporte individual motorizado não precisa de subsídio público. Transformar a CIDE numa taxa de carbono, e razoavelmente pesada. 

2) Quando o ajuste tiver sido feito desse jeito, e a necessidade de segurar as pontas tiver passado, cortar os impostos indiretos federais o máximo possível, e incentivar que estados e municípios façam o mesmo. Com sorte, extinguir o IPI, pelo menos, quiçá o ISS, diminuir bastante o ICMS (e unificá-lo num IVA nacional, sempre cobrado no destino). Pode-se até estabelecer a regra de redução dos impostos indiretos já na legislação que aumenta os progressivos. Coisa do tipo "a cada ano, deverão ser feitas desonerações permanentes em tais e tais impostos, equivalente à média do aumento real de arrecadação dos últimos três anos."

Presto: Ajuste nas contas públicas feito com bônus estrutural. 

O bônus não é pequeno. Noves fora a diminuição dos indiretos aumentar a competitividade da economia brasileira, a desigualdade, que se reduziu com a implantação dos benefícios sociais e o crescimento maior de regiões mais pobres (boa parte da desigualdade brasileira é a desigualdade regional), parou de descer nos últimos anos, devido aos limites dessa política. Ora, nos EUA a diferença entre a desigualdade pré e pós impostos é de 0,11 Gini. Isso é 0,11 de diferença a mais do que no Brasil. Sim, os impostos brasileiros não fazem diferença alguma na desigualdade. Admita-se que é um mal continental... reparem no gráfico: a desigualdade latinoamericanaé maior "no mercado" realmente, mas ela fica muito maior depois que os impostos progressivos e benefícios idem fizeram a sua parte na Europa.



A longo prazo, aliás, a redução da desigualdade também é um projeto de responsabilidade fiscal.  E o aumento do ITR pode servir como instrumento de reforma agrária.

É claro, pode ser perguntado, como faz o Ciro Gomes, se isso "dá bilhão." E a resposta é, muito claramente, sim. Vamos fazer umas continhas:

O ITR, hoje, não dá nem um mísero bilhão, cobrado sobre propriedades que valem um trilhão de reais. Se aumentarmos a alíquota média pra 1,5%, estamos falando de 15 bilhões de reais. Para 3% (em linha com o fato da maioria das terras estarem hoje com latifúndios), 30bn.

A alíquota média do IRPF para os 5% mais ricos está abaixo de 20%. Se aumentarmos para 30%, em linha com o IRPF cobrado pelo governo federal americano (muitos estados americanos também dão sua mordida), a arrecadação adicional pode ser de 60bn. Se além disso acabarmos com a isenção sobre dividendos, coisa em que o Brasil é quase único no mundo, são outros 60bn.

Comparado a esses números, o imposto sobre grandes fortunas é até modesto - seriam por volta de 6bn.

Para resolver a penúria estadual, ao invés de enfiar bizarros juros simples retroativos na União, a proposta (até modesta, comparada com a maioria dos países) de aumento do ITCMD renderia 20bn.

Estamos falando de um ajuste de no mínimo, dando um desconto de 30% em todas as previsões acima, 120bn. Bem mais do que o ajuste proposto pelo governo interino, e sem afetar a imensa maioria da população.

"E não vai cortar nada?" Bem, primeiro acho uma falácia falar em cortar gastos (assim, de baciada; aumentar a eficiência do gasto público sempre é bom) "pelo ajuste." Um gasto público deve ser cortado se for desnecessário, com ou sem ajuste, e se é necessário não pode ser cortado, com ou sem ajuste; usar o ajuste de desculpa para cortar os gastos que você queria cortar de qualquer jeito é hipocrisia. Mas pode deixar que tem uns gastoszinhos que, bem, eu cortaria com a desculpa do ajuste:

O ministério da Defesa gasta 81bn; é um dos maiores orçamentos de defesa do mundo, maior que o de Israel. E em troca temos forças armadas er... não tão boas quanto as de Israel, digamos. O principal dos problemas é o enorme gasto de pessoal, inchado pelas pensões e pelo oficialato, e portanto difícil de resolver de chofre - mas o fim do alistamento obrigatório e a redução do contingente grande de recrutas pra metade dessa quantidade de militares profissionais já ajudaria. Uma revisão do oficialato também - o Brasil tem 29 generais e almirantes, contra 39 dos Estados Unidos. Nos EUA, um vice-almirante comanda uma esquadra; aqui, há 18 vice-almirantes, e não há 18 navios de combate principais na marinha brasileira. (São oito fragatas mais o porta-aviões que mal sai do cais.)  E o problema do muito cacique pra pouco índio continua quando se desce a escada. É difícil dizer quanto seria poupado pela revisão, mas 20bn (deixando dez para o aumento do investimento e custeio) tá de bom tamanho. Além disso, para o ajuste emergencial, daria para vender as vastas áreas militares já inúteis para a defesa nacional e encravadas em áreas caras das capitais. Só o campo de futebol do forte de Copacabana ou o forte da Urca já dariam bilhão. Cada. Isso tudo, claro, assumindo que as forças armadas são mesmo necessárias, num nível melhor que o de hoje. Se você considerar que não há nenhum cenário de invasão plausível, e mal há possível, pode cortar logo 60bn, mantendo só uma força de autodefesa básica, com princípios baseados em defesa antiaérea, bateria de costeira, e treinamento de guerrilha, ao invés de tanques e porta aviões que ninguém sabe pra que serviriam. E ainda diminui o golpismo.

O governo também segue subsidiando hidrocarbonetos, sob a desculpa do estímulo à atividade econômica e aos transportes. Ora, é um subsídio pra lá de mal focado: se queremos subsidiar atividade econômica, subsidie-se aquela área específica.  São outros 30bn por ano...

Ok, temos 210bn de ajuste, à sinistra. Nada disso é indiscutível, claro - mas seria interessante se fosse mais discutido pela esquerda, ao invés desta defender que responsabilidade fiscal é besteira. Até porque tudo isso é, ou talvez devesse ser, para a esquerda bem-em-si. 

Um comentário:

Anônimo disse...

Esse texto merecia uma repostagem, dado que agora estamos, de fato, em meio a um ajuste fiscal mais ou menos rigoroso.