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2.5.16

Os milhões da Paulista.

Uma das brincadeiras mais comuns em manifestações (fora o tobogã, a ciranda, e o pula-pirata-no-taser) é a contagem de cabeças. A polícia, costumávamos dizer, invariavelmente dá desconto; hoje sabemos que o desconto ou ágio varia segundo o gosto do freguês. Os números são feéricos, muitas vezes francamente impossíveis - a capacidade máxima do metrô, meio de transporte com mais capacidade de muito longe, significaria umas 80 horas para levar todo o povo alegado no réveillon de Copacabana; as três linhas do metrô de SP que chegam na Paulista demorariam mais de 10 horas para levar o público alegado pela polícia na maior marcha pró-impeachment. O DataFolha tenta chegar a uma medida mais razoável, mas também parece querer agradar o freguês - e mesmo seus números, vistos como ridiculamente baixos por gente acostumada com milhões e milhões, são na verdade contas chutadas bastante pra cima, principalmente quando se trata de clientes agradáveis. Fazendo uma conta mais realista, podemos simplesmente usar os números duma boatchy lotada até a tampa - 2 pessoas por metro quadrado - mais que o dum sistema de transporte público lotado até o nível máximo de conforto - 6 pessoas por metro quadrado - e multiplicar pelo número de metros quadrados dos, chamemo-los assim, palcos da democracia.

Lembrando que o número real sempre estará, mesmo que digamos que tal ou qual manifestação estava lotada, quando muito próximo ou pouco acima do primeiro. Num metrô ninguém se mexe, tem barras e pegadores pra se apoiar. Praças e avenidas têm ruas laterais, mas também tem árvores, bancas, meios-fios, barraquinhas de churrasquinho, postes... e uma pessoa em movimento, que é o que acontece mesmo numa manifestação estática, ocupa mais espaço que uma parada. Perto ou acima de 6 pessoas por metro quadrado, você já está falando duma lotação que só é possível se temos paredes para nos escorar. O metrô de Tóquio, infame pela hiperlotação, chega a 11 pessoas por metro quadrado, e isso já deu em portas com vidros blindados trincados e aço reforçado amassado, para ter ideia da pressão que significa.

E qual é o tamanho, medido diretamente pelo Google Earth e sendo bastante generoso na definição do que é cada área, incluindo praças comunicantes conforme seja o caso, desses tais palcos?

São Paulo:

Av. Paulista, 110.000m2
Anhangabaú, 81.000m2
Praça da Sé, 54.000m2
Largo da Batata, 44.000m2

Rio de Janeiro:

Presidente Vargas, 350.000m2
Av. Atlântica (sem contar a faixa de areia), 330.000m3
Lapa, 39.000m2
Praça XV, 34.000m2

Brasília

Esplanada dos Ministérios, 615.000m2
Praça dos Três Poderes, 62.000m2

Em outras palavras: estando absurdamente lotada, nível parada gay pra cima, a Paulista admite quando muito 350.000 pessoas em seu perímetro, bem longe não apenas dos milhões feéricos anunciados como até do "modesto" total anunciado pelo DataFolha para a passeata antipetista deste março. Para atingir os números alegados pela polícia de São Paulo para a mesma, seria necessário um nível de lotação que não é atingido nem numa orgia ou scrum de rúgbi, no metrô de Tóquio ou numa pirâmide humana. O que se pode concluir daí é que as manifestações desta crise política, importantes como são, mobilizam uma fração muito pequena da população total das metrópoles - e nem há infraestrutura pra manifestações que ultrapassassem essa ordem de coisas, com a exceção flagrante de Brasília, criada para ser Côrte. Comparando a capacidade (falando em 3 pessoas por metro quadrado) dos principais palcos de cada metrópole com sua população total, e arredondando pra cima:

São Paulo: 330.000 pessoas vs 20 milhões - 2%
Rio de Janeiro: 1 milhão vs. 14 milhões  - 7%
Brasília: 2 milhões vs. 4 milhões - 50%

O curioso dessa comparação é que Brasília seria mais típica, na proporção de sua população que cabe num palco, das cidades antigas do que o Rio de Janeiro ou (principalmente) São Paulo. As grandes metrópoles de hoje se metastatizaram, não apenas muito além da escala humana como muito além mesmo da escala da multidão. Imaginemos um palco onde coubesse metade da população de São Paulo: ele seria um descampado muito maior do que o parque do Ibirapuera (que tem 1,3km2). O século XX que foi o século das massas foi o começo do século XX; o século XX tardio e o XXI são os séculos de simulacros de massas. Mesmo que fosse possível mobilizar uma parcela significativa da população, não haveria aonde essa parcela se apresentar, ser um corpo ativo e presente. Talvez, quem sabe, de forma atomizada, distribuída em diversas áreas - mas aí já não é exatamente a multidão singular, já é alguma coisa de outra.


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