Já dizia James Scott Fitzgerald que os muito ricos são muito diferentes de nós, de outra espécie. Ao longo do século XX, em alguns países, isso se tornou um pouco menos verdade, sob o peso de ideologias igualitárias e impostos de renda altos, ambos oriundos do medo do comunismo. Chegou-se a pensar que se tratava de uma progressão natural; do fim dos privilégios estatutários da aristocracia ao fim dos privilégios consuetudinários a um eventual e utópico fim dos privilégios. (E o melhor, sem o caminho difícil precognizado pela teleologia marxista.) A crença no fim da aristocracia era tão grande que uma aristocrata, Karen von Blixen-Finecke, pôs na boca de sua personagem Babette, cozinheira que participa da Comuna de Paris e foge da repressão, um lamento pelos monstros que torturaram seus amigos, porque seriam os últimos "capazes de entender sua arte, criados desde criança para isso e não para o trabalho."
Pois bem, com o fim da ameaça comunista, anterior mesmo ao fim da URSS, com a détente entre esta e a OTAN, essa progressão rumo ao Espírito provou o quanto tinha de inexorável - nada. Impostos de renda em toda a OCDE caíram drasticamente (ainda são, por supuesto, muito maiores que os brasileiros). A vergonha de ostentar derreteu mais rápido que um cubo de gelo no Saara, substituída pela vergonha propalada em verso e prosa, de fazer com que os ricos contribuam mais. E assim a década da exuberância irracional dos anos 90*, bem como a quase-década só um pouco menos próspera que se lhe seguiu, não viram aumentos significativos na renda mediana dos países ricos. Alguns casos viram até uma redução, como nos EUA. Paradoxo: com a crise econômica japonesa, pós-bolha, a evolução da renda mediana japonesa e americana foi igual. Quem ficou mais rico foram os americanos mais ricos.
Não apenas os Toms e Daisies do Fitzgerald, claro. A classe média, esse nome engraçado que deram aos 20-30% mais ricos logo abaixo dos muito ricos, também viu sua renda crescer, apenas para ser imediatamente consumida por cartões de crédito e hipotecas. Mas os muito ricos viram um crescimento muito maior. A curva de apropriação do crescimento de renda é parabólica pra cima e, pior, transgeneracional, já que das taxas que mais diminuíram - mais até do que o imposto de renda - foram aquelas sobre ganhos de capital e transmissão de herança. Os muito ricos, cada vez mais, são realmente uma casta separada, aonde para entrar não basta ter sucesso. Até aqui, acho que só tô repisando o que todo mundo sabe, mas o fim da ameaça comunista também deu razão ao marido da Zelda na discussão com o Hemingway, que dizia que a única diferença entre os ricos e nós é que eles têm mais dinheiro. E um bom sinal disso são as hordas de VIPs dos grandes eventos esportivos.
Nas Olimpíadas, os VIPs provocaram revolta: como têm assentos reservados em todos os eventos, e o número absoluto desses assentos não mudam, os VIPs que não vão ao estádio não ocupam uma proporção tão grande dele, mas os VIPs que não vão a eventos menores deixam todos os melhores lugares vazios, enquanto os hoi polloi que pagaram caro por um ingresso atrás da coluna, ou nem conseguiram fazer isso, assistem de longe. Para chocar um pouco menos o povo, que ainda não se acostumou à volta da velha ordem mundial, o príncipe Potemkin, perdão o primeiro ministro Cameron, mandou que soldados esquentassem o assento para os VIPs. O único evento em que VIPs de fato compareceram aos assentos reservados para eles foi o aristocrático - literalmente - hipismo.
Na Copa do Mundo (perdão de novo, na Copa do Mundo da FIFAtm), os VIPs não precisarão se preocupar com isso. Divididos em duas categorias, VIPs e VVIPs, estarão a salvo dos olhares curiosos, quer se disponham a assistir algum jogo, quer não. Para isso que fizeram tantos camarotes - e acessos isolados da multidão - que tiveram que desfigurar o Maracanã por dentro e por fora, eliminando o oval para compensar parcialmente a perda de assentos por conta dos camarotes, e adicionando quatro caixas de sapato para que VIPs não tivessem que sentir o cheiro da racaille. Dá até pra imaginar novas leis suntuárias, dessa vez baseadas numa (pretensa ou sincera) preocupação ambiental; afinal, qualquer avaliação razoável da situação do planeta dirá que não podemos continuar consumindo o que consumimos, e a resposta de que todos devemos consumir menos não é a única possível.
Os novos sans-culottes são gordos, não famélicos. Visualmente, pelo menos, dá pra imaginar a próxima revolução francesa se repetindo como farsa.
*Bizarramente descrita por aqueles que tentam defender o governo FHC como "tempo de crises ao contrário da bonança encontrada por Lula."