Quando os budas de Bamiã foram detonados pela Talibã, eu, e creio que muitos outros, tive uma ligeira crise de consciência. Não pela destruição das estátuas, ou por não ter feito nada para salvá-las (como se algo pudesse ser feito), mas porque, naquele momento, a Talibã já tinha provavelmente chegado nos cinco dígitos de gente morta, muitas vezes de maneiras horríveis. E eu lamentando por um monte de pedras.
Não conheço (vou até perguntar) o estado do debate ético sobre essa questão, de se bens culturais únicos (os budas, as bibliotecas de Alexandria, o grito do Munch, o palácio de verão) valem mais do que seres humanos. Se me perguntarem no abstrato, é claro que vou dizer que não; no concreto não sei. (Bem, vai depender do ser humano - é claro que "indivíduo # 3.567.925.008" não vale o mesmo que "pessoa que amo.")
Nem sei se estamos falando propriamente de bens culturais. O lamento pela extinção, digamos, do boto do Jangzi, não é uma manifestação da mesma atitude? Será que não é em última análise simplesmente o mesmo processo que faz diamantes valerem mais do que água? Afinal, tanta gente morre todo dia...
Por isso que a morte de Nova Orléans, a única cidade com um carnaval decente na América do Norte, que é única de tantos jeitos diferentes, é legal. Porque você pode sentir raiva, indignação ou tristeza ao mesmo tempo pelas pessoas e pela perda cultural.
2 comentários:
Bem, o grande bem cultural da cidade - o French Quarter - saiu ileso. O que ficou detonado foram os subúrbios, recheados com aquelas McHouses horríveis...
A cidade, Nova Orleãs, como um lugar vibrante e em expansão cultural e econômica, atrativo e criativo, mesmo está morta, estava seriamente doente antes do furacão (perdia população, riqueza etc., ano a ano, aos pouquinhos); depois.... para a felicidade dos WASP's (white anglo-saxon protestant) já não existe mais. Cenário bonito, mas sem uma cidade viva em torno que é o que sobrou, pouco vale. Virou uma espécie de Pompéia ou Alcântara-MA. Quanto à discussão sobre o que salvar em caso de incêndio, "um quadro de Rembrandt ou uma criança, ambos em perigo", a questão foi posta nesses exatos termos, por nada mais nada menos que Marcel Proust, em "A Busca... (La Recherche du Temps Perdu), é, por ele, respondida de forma inequívoca (é um dos grandes temas do imenso romance-rio), no sentido de que qualquer ser "humano" digno desse adjetivo tem que escolher a salvação da criança, "no matter what" (dane-se o resto). Eu concordo com ele. Abraços,
Joaquim
joaquim.dantas@uol.com.br
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