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15.4.16

A semântica e a matemática do impeachment

Morte em duelo do matemático Evariste Galois


Um dos muitos cabos de guerra em curso no Brasil refere-se à nomenclatura do processo de impeachment. É golpe, dizem os contrários; não é golpe, dizem os favoráveis ao impeachment. É uma batalha, claro, semântica. Nada "é" algo assim, naturalmente, como se numa língua adâmica pré-torre de Babel. E o processo de impeachment ora em curso no Brasil tem bons motivos para se utilizar como para não se utilizar a palavra "golpe" - mas esses motivos são secundários à utilização política das conotações associadas. Ninguém quer ser chamado de golpista. Para além dessa resistência pelos agentes ativos do impeachment, as (muitas) pessoas entre os que resistem em se associar a qualquer dos lados (ou que preferem apenas torcer, ficando de fora do embate direto) poderiam ser influenciados por uma nomenclatura mais inequívoca; ninguém pode ficar indiferente a um golpe, como a uma revolução.

Os que dizem que não é golpe, primeiro: alegam que todas (ou pelo menos a maioria) das formas da lei estão sendo cumpridas; que o Congresso tem a legitimidade democrática para tal; e que não será instaurada uma ditadura ou qualquer outra forma de governo distinta da de hoje; em suma, que o processo é similar ao do impeachment de Fernando Collor, que ninguém chamou de golpe. Os que dizem que é golpe questionam esses argumentos; alegam que seguir as formas da lei, deturpando-a para seus próprios fins conspiratórios, é golpe.

Não é um debate que vá se resolver de jeito ou de outro; como boa parte dos debates semânticos, no fundo argumentos classificatórios são irrelevantes, e é a posição-afinidade preexistente de cada pessoa que definirá a escolha de palavra. Pode-se fazer referência aos processos semelhantes que ocorreram no Paraguai e em Honduras, com debates semânticos semelhantes, divididos por linhas ideológicas semelhantes, e que restam insolúveis.  Pode-se verificar se os "condicionantes" oferecidos pelos que dizem que não é golpe porque não atende algum critério - digamos, a tomada do poder por militares sem chancela jurídica - estavam presentes em todos, ou na maioria, dos eventos políticos que chamamos de "golpe" na história. Pra nos mirarmos num só, que é mais simples: o golpe de 64 foi chancelado pelo Congresso, e o primeiro presidente após Jango não foi Castello Branco mas, como previa a Constituição, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzili; foi, também, alvo de silêncio sepulcral da parte do STF. Por outro lado, editou em uma semana o Ato Institucional, que basicamente era uma reforma constitucional por decreto, removendo várias liberdades civis e políticas.

Mas o que acho que pode ser dito, entretanto, é que, sendo chamado de golpe ou não, o que está em curso é um abuso da justiça; o uso seletivo e parcial da justiça e das leis para obter seus próprios fins. E a justiça pela metade, longe de ser meio caminho andado, é uma injustiça por inteiro. Uma pequena digressão para ajudar a entender por quê: em Slavery by Another Name, Douglas Blackmon explica como, através de leis severas contra atos banais, como "indecência" e "vagabundagem," o Sul dos Estados Unidos reimplantou gradualmente, no fim do século XIX, a escravidão. Apenas negros eram condenados por essas leis, e eles eram condenados a trabalhos forçados; o Estado, então, alugava prisioneiros para quem quisesse usá-los. Na prática, uma proporção enorme dos homens negros trabalhava de graça e podia ser comprado e vendido nos EUA do começo do século XX.

Esse é o caso reductio ad absurdum de como justiça seletiva não é justiça, acho. Ninguém vai dizer que "pelo menos parte dos vagabundos e indecentes foram presas, melhor seria prender todos, mas isso é melhor do que não prender nenhum." Porque fica patentemente óbvio que o que estava sendo punido não era a vagabundagem e indecência, mas ser preto. Do mesmo modo, Henrique Alves, por exemplo, parece ter a convicção de que o que se pune no Brasil de hoje não é ser corrupto, mas estar ao lado do PT (e desmente, de uma tacada, a ideia de que foro privilegiado, por sua vez, possa ser algo que torne o detentor particularmente imune à condenação).  Falando da Justiça como didática: não se está ensinando a não roubar, e sim a não ser, ou se aliar com, nada que pareça de esquerda. Se aplica à Lava-Jato, se aplica às pedaladas fiscais; se pedaladas são ou não condenáveis como crime de responsabilidade é uma discussão jurídica complexa, creio que definitivamente pedaladas sejam uma conduta reprovável. Mas o importante é que o mesmo Congresso que pretende impedir Dilma pelas pedaladas, na mesma sessão, aliás com o expresso fim de iniciar o processo, aprovou as pedaladas de FHC e Lula. Deixando muito claro, mais uma vez, que o que se está punindo não são as pedaladas. Voltando à didática: deixando claro que roubar e pedalar são OK, para quem não é de esquerda; o efeito é o contrário da justiça.

Essa, a semântica que explica por que acho que o impeachment é um erro. Agora a matemática, para explicar por que ele é certo:

As précondições do impedimento exigem que ele seja aprovado por dois terços da Câmera. Não é pouca coisa, o que faria supor que a defesa começasse em vantagem. Mas essa vantagem some rapidamente, quando se compara o que pode ser oferecido pelos dois lados aos deputados, e em que condições.

As condições importam, porque o valor de uma promessa é resultado duma equação, em que o valor original daquela promessa é multiplicado A) pela probabilidade daquele lado vencer, e B) pelas chances de, vencendo, honrar a promessa.  E tanto para A) quanto para B) Dilma está em maus bocados. A maioria dos congressistas acredita que ela será impichada. E todo esse furdunço começou justamente por conta da tentativa de Dilma de emplacar quadros técnicos no lugar de apaniguados políticos pela administração afora, inclusive em áreas "dadas" a aliados, que descobriram que só as teriam nominalmente. Dilma não é digna de confiança, no olhar de quem procura um cargo.

Outras considerações, menores talvez, mas que também pesam: C) as chances do vencedor se vingar contra quem apoiar o derrotado, e D) a quantidade de cargos que podem ser distribuídos. Aqui, de novo, Temer tem a vantagem. O PT não poderá se dar ao luxo de se vingar contra ninguém (não, nem Cunha. Aliás Pansera continua no ministério), e sacada Dilma ficam liberados os cargos ocupados hoje tanto pelos apaniguados petistas quanto pelos técnicos; isso faz com que o estoque de cargos à disposição de Temer seja quase o dobro do que pode ser oferecido por Dilma. Mais cargos, e o valor corrente de cada um mais valioso pelas razões expostas acima. O resultado final (que assume, é verdade, um Congresso cúpido e assustado) dá no terceiro presidente peemedebista pela via indireta em 30 anos.

PS a conta toda ignorou as chances de alguém - digamos, o Pactual, que bancou palestra com Moro, Marina, e Levy recentemente, ou a Fiesp do exército dos patos, tentar interferir nela. Afinal, ninguém imagina que uma coisa dessas seja possível. Ignorou, também, a outra impossibilidade de a Lava-Jato ser usada como peça de negociação, já que ninguém imagina que ela seja influenciável ou dirigida.

PPS a conta também ignora a possibilidade de deputados votarem segundo seu julgamento objetivo e consciente acerca da existência de crime de responsabilidade a ser punido.

AM1PS tudo vale em igual medida, obviamente, para o Senado.

Um comentário:

Felipe disse...

Mais sobre as regras do impedimento: https://pt.wikipedia.org/wiki/Impedimento