É curioso, então, que a reação, principalmente de esquerda, ao editorial, ao invés de comentar suas fraquezas, questionar seus pressupostos e metodologia bem falhos, comparar com os prós e contras de processos similares ou opostos mundo afora... seguiu linhas de argumento que pareciam as dos opositores às cotas - para falar de outra defesa de privilégios em universidades públicas brasileiras. Sim, privilégio. Quem estuda em universidades públicas está, em termos de capital educacional (o do Bourdieu), nos 3% mais privilegiados da população brasileira. Outros 9% estudam em universidades particulares, dos quais a proporção das PUCs e outras decentes é mínima. Vá, dos 4% mais privilegiados. A Folha quer que 2/3 desses 3% paguem como aquele outro 1%; são os 2% do topo. Quase o 1% do Occupy Wall Street.
"Ah, mas eu não me sinto privilegiado, na verdade eu sou pobre, quando muito classe média, mal dá pra viver" é um discurso que os brancos contra cotas também usam. "Vai criar duas classes de cidadãos" idem. A defesa de um princípio universal como defesa do privilégio - neste caso, a universalização do ensino ao invés do sonho do Martin Luther King - é quase gozada, quando, de novo, 3% da população - e países que cobram mensalidade, simbólica ou não, têm muito mais gente se formando na faculdade. Diacho, a Bolívia tem quase o triplo de universitários, proporcionalmente, que o Brasil, e uma proporção destes em universidades públicas também maior. "Ah, a Folha não sabe, mas tem pobres na USP sim," ué, a Folha sabe, e previu que estes não pagassem a mensalidade. É que nem "ah eu preferia cotas socioeconômicas," um desconhecimento do argumento adversário.*
Mas tem um argumento que foi lançado que é o melhor, e que é o mais relevante, não só sobre o debate acerca do financiamento das universidades públicas em geral, mas sobre o editorial da Folha em particular: por que começar a progressivização (ô palavrão) da tributação brasileira pela universidade? O Brasil tem um IRPF relativamente baixo, tem um ITR que arrecada várias vezes menos do que o IPTU da cidade de SP, que por sua vez arrecada menos que o ISS. Tem dos menores impostos sobre a herança do mundo. Não tem o imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição. Então por que começar pelo aluno da universidade? A resposta parece ser porque a idéia não é a justiça social, apesar de esta ser invocada como reforço, mas sim o estado pago pelo serviço. Taxa de água, de luz, de lixo, mensalidade universitária, pagamento direto como o de qualquer serviço privado, e não a partir de um imposto universal. E com, obviamente, uma progressividade muito mais restrita; todo mundo com renda maior do que 7600 pagaria o mesmo valor para a mensalidade da USP, nem mais nem menos. Nem sequer a mesma alíquota, o mesmo valor. É uma visão profundamente privatizante,** neoliberal (usado aqui no seu sentido próprio, e não como sinônimo de reaça) do Estado e da sociedade. Não quero dizer que eles querem privatizar a USP, mas sim que a visão é a do Estado como um fornecedor de serviço - e do valor da universidade apenas como valor direto prestado ao estudante que tem x% mais renda esperada, ou no registro de patentes no caso da pesquisa. Aliás, a Folha continua sendo contra cotas, raciais ou socioeconômicas, para as universidades estaduais paulistas, chegando a chamar o Alckmin de populista, pra deixar bem claro que não se preocupa lá muito com a igualdade de condições dos estudantes pobres.
Virando ao outro lado a comparação com os debates contra as cotas, o aluno da USP rico da Folha é primo do branco pobre dos anticotas. Os ricos não pagarem o que devem só é problema na hora de defender a mensalidade (e com isso uma espécie de privatização branca), nunca na hora de defender impostos (pelo contrário, a Folha denunciou até a revisão de IPTU do aliado Kassab), assim como o branco pobre, quando não é um preterido pelas cotas raciais, é um vagabundo que faz filho pra ganhar bolsa-família. Não se trata de negar que os dois existam - no Brasil, a maior parte da população branca, ou quase-branca, é pobre, e conheci vários alunos da UFRJ que reclamavam de não poderem estacionar seus carros no campus. É que os que os invocam como retórica, como a Folha, nunca lembram deles no resto do tempo.
Ou isso ou houve um golpe na redação da Folha, que se tornou um jornal socialista ou pelo menos social-democrata, e logo veremos uma defesa de IGF, aumento de ITD, aumento de IPTU, de IRPF, e de toda a sopa de letrinhas. (Fazendo minha própria conta de guardanapo, um aumento do imposto sobre a herança paulista para níveis similares ao do imposto sobre a herança federal americano custearia a USP, sozinho.***) E uma defesa das cotas.
*As cotas raciais no Brasil (ao contrário da Índia, por exemplo) só existem dentro das cotas socioeconômicas. Na UERJ, a primeira a instituir o sistema, são 45% das vagas, e você precisa ter renda familiar per capita inferior a R$960, E ( ser negro (20%) OU estudante de escola pública (20%) OU filho de policial, bombeiro, ou agente penitenciário (5%)).
**Tem também a teoria de conspiração segundo a qual a desgraça da gestão do Rodas foi, como as das estatais federais na época em que Serra foi ministro do Planejamento, deliberada, pra justificar a privatização literal. Mas não precisa ser malícia, mera incompetência, etc...
*** Hoje, a 4% de máximo, arrecada 1,2bn. O ITD federal americano (a maioria dos estados adiciona o seu próprio, o que lá não é considerado dupla tributação) tem limite de 40%. Sendo pessimista, 6bn por ano com o aumento. No Rio, segundo estado mais rico, são 400M todo ano atualmente, com os mesmos 4%. 2bn seria o dobro da Uerj...
*As cotas raciais no Brasil (ao contrário da Índia, por exemplo) só existem dentro das cotas socioeconômicas. Na UERJ, a primeira a instituir o sistema, são 45% das vagas, e você precisa ter renda familiar per capita inferior a R$960, E ( ser negro (20%) OU estudante de escola pública (20%) OU filho de policial, bombeiro, ou agente penitenciário (5%)).
**Tem também a teoria de conspiração segundo a qual a desgraça da gestão do Rodas foi, como as das estatais federais na época em que Serra foi ministro do Planejamento, deliberada, pra justificar a privatização literal. Mas não precisa ser malícia, mera incompetência, etc...
*** Hoje, a 4% de máximo, arrecada 1,2bn. O ITD federal americano (a maioria dos estados adiciona o seu próprio, o que lá não é considerado dupla tributação) tem limite de 40%. Sendo pessimista, 6bn por ano com o aumento. No Rio, segundo estado mais rico, são 400M todo ano atualmente, com os mesmos 4%. 2bn seria o dobro da Uerj...
Nenhum comentário:
Postar um comentário