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3.6.14

O primo rico e o primo pobre

A Folha de São Paulo fez uma reportagem, ou antes um editorial camuflado de reportagem, sobre como muitos dos alunos da USP poderiam sim pagar mensalidade. Pelos planos do jornal, bem básicos (quase conta de guardanapo),  37% dos alunos continuariam sem pagar nada, 18% pagariam meia mensalidade ("receberiam bolsa," diz o jornal), e 45% pagariam a mensalidade integral. Curiosamente, essas proporções se mantêm nas duas opções de valor da mensalidade propostas pelo jornal, apesar de serem derivadas da renda familiar; não fica claro como alguém que ganha 5 salários mínimos, ou 3800 reais, pagaria a meia mensalidade "para custear a USP só com mensalidade," que seria de 2950.  E esse é só o ponto mais bizarro do editorial, que no geral é bem fraco.

É curioso, então, que a reação, principalmente de esquerda, ao editorial, ao invés de comentar suas fraquezas, questionar seus pressupostos e metodologia bem falhos, comparar com os prós e contras de processos similares ou opostos mundo afora... seguiu linhas de argumento que pareciam as dos opositores às cotas - para falar de outra defesa de privilégios em universidades públicas brasileiras. Sim, privilégio. Quem estuda em universidades públicas está, em termos de capital educacional (o do Bourdieu), nos 3% mais privilegiados da população brasileira. Outros 9% estudam em universidades particulares, dos quais a proporção das PUCs e outras decentes é mínima. Vá, dos 4% mais privilegiados. A Folha quer que 2/3 desses 3% paguem como aquele outro 1%; são os 2% do topo. Quase o 1% do Occupy Wall Street. 

"Ah, mas eu não me sinto privilegiado, na verdade eu sou pobre, quando muito classe média, mal dá pra viver" é um discurso que os brancos contra cotas também usam. "Vai criar duas classes de cidadãos" idem. A defesa de um princípio universal como defesa do privilégio - neste caso, a universalização do ensino ao invés do sonho do Martin Luther King - é quase gozada, quando, de novo, 3% da população - e países que cobram mensalidade, simbólica ou não, têm muito mais gente se formando na faculdade. Diacho, a Bolívia tem quase o triplo de universitários, proporcionalmente, que o Brasil, e uma proporção destes em universidades públicas também maior. "Ah, a Folha não sabe, mas tem pobres na USP sim," ué, a Folha sabe, e previu que estes não pagassem a mensalidade. É que nem "ah eu preferia cotas socioeconômicas," um desconhecimento do argumento adversário.*

Mas tem um argumento que foi lançado que é o melhor, e que é o mais relevante, não só sobre o debate acerca do financiamento das universidades públicas em geral, mas sobre o editorial da Folha em particular: por que começar a progressivização (ô palavrão) da tributação brasileira pela universidade? O Brasil tem um IRPF relativamente baixo, tem um ITR que arrecada várias vezes menos do que o IPTU da cidade de SP, que por sua vez arrecada menos que o ISS. Tem dos menores impostos sobre a herança do mundo. Não tem o imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição. Então por que começar pelo aluno da universidade? A resposta parece ser porque a idéia não é a justiça social, apesar de esta ser invocada como reforço, mas sim o estado pago pelo serviço. Taxa de água, de luz, de lixo, mensalidade universitária, pagamento direto como o de qualquer serviço privado, e não a partir de um imposto universal. E com, obviamente, uma progressividade muito mais restrita; todo mundo com renda maior do que 7600 pagaria o mesmo valor para a mensalidade da USP, nem mais nem menos. Nem sequer a mesma alíquota, o mesmo valor. É uma visão profundamente privatizante,** neoliberal (usado aqui no seu sentido próprio, e não como sinônimo de reaça) do Estado e da sociedade. Não quero dizer que eles querem privatizar a USP, mas sim que a visão é a do Estado como um fornecedor de serviço - e do valor da universidade apenas como valor direto prestado ao estudante que tem x% mais renda esperada, ou no registro de patentes no caso da pesquisa. Aliás, a Folha continua sendo contra cotas, raciais ou socioeconômicas, para as universidades estaduais paulistas, chegando a chamar o Alckmin de populista, pra deixar bem claro que não se preocupa lá muito com a igualdade de condições dos estudantes pobres. 

Virando ao outro lado a comparação com os debates contra as cotas, o aluno da USP rico da Folha é primo do branco pobre dos anticotas. Os ricos não pagarem o que devem só é problema na hora de defender a mensalidade (e com isso uma espécie de privatização branca), nunca na hora de defender impostos (pelo contrário, a Folha denunciou até a revisão de IPTU do aliado Kassab), assim como o branco pobre, quando não é um preterido pelas cotas raciais, é um vagabundo que faz filho pra ganhar bolsa-família. Não se trata de negar que os dois existam - no Brasil, a maior parte da população branca, ou quase-branca, é pobre, e conheci vários alunos da UFRJ que reclamavam de não poderem estacionar seus carros no campus. É que os que os invocam como retórica, como a Folha, nunca lembram deles no resto do tempo. 

Ou isso ou houve um golpe na redação da Folha, que se tornou um jornal socialista ou pelo menos social-democrata, e logo veremos uma defesa de IGF, aumento de ITD, aumento de IPTU, de IRPF, e de toda a sopa de letrinhas. (Fazendo minha própria conta de guardanapo, um aumento do imposto sobre a herança paulista para níveis similares ao do imposto sobre a herança federal americano custearia a USP, sozinho.***) E uma defesa das cotas.




*As cotas raciais no Brasil (ao contrário da Índia, por exemplo) só existem dentro das cotas socioeconômicas. Na UERJ, a primeira a instituir o sistema, são 45% das vagas, e você precisa ter renda familiar per capita inferior a R$960, E ( ser negro (20%) OU estudante de escola pública (20%) OU filho de policial, bombeiro, ou agente penitenciário (5%)).

**Tem também a teoria de conspiração segundo a qual a desgraça da gestão do Rodas foi, como as das estatais federais na época em que Serra foi ministro do Planejamento, deliberada, pra justificar a privatização literal. Mas não precisa ser malícia, mera incompetência, etc...

*** Hoje, a 4% de máximo, arrecada 1,2bn. O ITD federal americano (a maioria dos estados adiciona o seu próprio, o que lá não é considerado dupla tributação) tem limite de 40%. Sendo pessimista, 6bn por ano com o aumento. No Rio, segundo estado mais rico, são 400M todo ano atualmente, com os mesmos 4%. 2bn seria o dobro da Uerj...

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