Seguindo os passos de seu antecessor César Maia, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, pôs nos ombros da Baixada Fluminense a culpa pela superlotação nos hospitais da capital. Menos alucinado e mais político do que Maia, Paes teve o cuidado de falar mal dos prefeitos (et pourtant, todos seus aliados), ao invés de num povo que "mentiria sobre o próprio endereço" sabe-se lá por quê, mas a essência é a mesma: os hospitais da cidade central atendem uma proporção grande de pacientes da região metropolitana, e isso é injusto. É este corolário que é problemático.
A alegação de Paes é comum em tudo que é região metropolitana no mundo, mas no Brasil ela é particularmente enviesada. Isso porque, ao contrário da maior parte do mundo, o imposto sobre terras é a principal fonte de recursos municipais; em outras palavras, a idéia de que "nós estamos pagando esses hospitais que os outros usam," conquanto moralmente condenável, pelo menos faz sentido lógico. Num lugar em que o imposto do próprio município construiu um hospital e paga seus médicos, é compreensível reclamar de que outros utilizem-se desses serviços.
Não é o caso do Brasil. O IPTU não apenas não responde pela maior parte da receita municipal, como é bem menor, in toto, do que o ISS, pago em qualquer transação dentro do município - e este também é pago pelos cidadãos dos municípios suburbanos que estão na capital. Sendo esses subúrbios, como são, em maior ou menor grau cidades dormitório, seus habitantes gastam e ganham boa parte de seu dinheiro na cidade central, o que faz com que paguem impostos à prefeitura central, e não àquelas aonde moram. Em outras palavras, é bem possível que a proporção dos pacientes da região metropolitana nos hospitais do Rio (um pouco menos de um quinto) seja próxima à proporção dos impostos cariocas que saíram de seus bolsos. Sem nem levar em consideração o dinheiro vindo do SUS (nesse caso, a proporção paga pelo Grande Rio é maior do que os 18%). A reclamação de Maia e Paes é falsa como uma nota de três dólares.
Não que de qualquer jeito fosse razoável, mesmo em situações em que realmente o município está gastando dinheiro dos habitantes centrais pra atender os periféricos. E não estamos falando de um imperativo moral da caridade unilateral, mas de uma troca. Mesmo que não fossem os seus impostos a pagar pelo hospital, o trabalho e o consumo dos habitantes da periferia movem a economia da capital. As cidades centrais, beneficiárias da fragmentação metropolitana, têm o dever de ajudar suas vizinhas, em interesse próprio. Ao contrário, o que foi feito no Rio e em outras capitais foi um processo de competição intensa e desleal (com, por exemplo, a criação do polo de Santa Cruz, para desviar a instalação de indústrias na Baixada Fluminense).
Sim, interesse próprio: alguém duvida que seria de interesse do Rio uma maior oferta de empregos e opções culturais nas cidades da periferia, aliviando a intensidade dos deslocamentos e gerando mais oportunidades para todos? E o mesmo pode-se dizer, em outra escala, do comportamento dos governos estaduais, todos engalfinhados num jogo de soma zero; até 2003, os estados mais pobres transferiam renda via governo para os mais ricos. Mesmo hoje, o nível de transferência dos estados mais ricos para os mais pobres é pífio - bem menor do que o americano, por exemplo (não deixa de ser uma ironia que os estados democratas financiem os estados vermelhos "antigoverno," é verdade). Levando com isso a brutais desigualdades regionais, que não beneficiam a ninguém. O homem lobo do homem hobbesiano pode nunca ter existido naqueles termos, mas está vivo nos prefeitos e governadores brasileiros.
PS Não, essa não é apenas uma tentativa de justificar meu desejo pela transferência do Rio-Zôo para a Granja da Marinha de Caxias. :P
3 comentários:
O Paes só conhece um lado do contrato social.
Antes fosse só o Paes, ou mesmo só a direita. A idéia do "Farinha pouca meu pirão primeiro" (do meu município/estado) é generalizada.
Quando morei 1 ano em Vila Isabel, após ter vivido 20 e tantos na Zona Sul, percebi com ainda mais clareza que quase tudo no Rio se divide em dois. Bala perdida em Vila Isabel só vira notícia se cair do céu em garotinhas, mas cada assalto no Leblon ganha seu espaço no jornal.
Claro que isso ocorre em todo lugar, mas no Rio a divisão é mais evidente, uma "fronteira invisível", acho que fica em algum lugar do Rebolças...
Postar um comentário