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26.3.12

Somos todos ménilboneanos

Um dos temas recorrentes da ficção científica e da fantasia é a possibilidade de se moldar a natureza humana através da ciência, criando novos estratos da humanidade, seja de maneira utilitária (são os varnas do Admirável Mundo Novo do Huxley, dos Epsilons idiotas à elite Alfa), seja por motivos estéticos. No segundo caso, em particular, isso tem sido apresentado como (caso se trate de modificações impostas, e não de automodificação) uma expressão particularmente perversa de uma elite decadente. No começo, a questão levantada pende para o lado da decana da ficção científica, Mary Shelley, e do seu monstro de Frankenstein. A própria Mary Shelley falava da blasfêmia de criar vida, mas é claro que essa blasfêmia era ainda maior porque a vida criada era a do próprio ser humano.

Eventualmente, entretanto - e até pelo fato do Frankenstein ser praticamente o tratamento definitivo da questão com que lida - se foi além, falando do horror da criação finalística de seres humanos, e, eventualmente, de seres biológicos conscientes de modo geral. Biológicos, sim, porque devido a algum, chamemo-lo de biochauvinismo, o tratamento dado a inteligências artificiais nem sempre levantou o mesmo tipo de questionamento ético; da enorme produção dos Contos de Robôs de Asimov, só uma minoria o faz, enquanto outros assumem aprioristicamente que os robôs-escravos, felizes com sua condição, só têm problemas com humanos maus. (Se você acaba de imaginar o Asimov vestido de coroné do antebellum americano, problema seu.)

Eventualmente, o questionamento da ética de se tratar robôs migrou, conforme foi se deixando de lado a noção pré-concebida de que haveria algo único e irreplicável em nossa arquitetura biológica de inteligência, do tratamento de quase-animais (ainda que poderosos ou idiots savants) para o tratamento de deuses encarnados. Mas vamos ficar com os animais, e sair um pouco da ficção científica: o movimento dos direitos dos animais, iniciado no final dos anos 70, com gente como Peter Singer, tem aumentado de popularidade. Em linhas gerais, o questionamento do movimento estende essa preocupação da ficção científica para além do humano ou do inteligente para todo ser capaz de sentir - apesar de essa não ser uma definição óbvia ou natural. Uma consequência natural desse movimento é o veganismo; uma luta dele, aquela contra as formas de crueldade mais absurdas pelas quais passam animais, tais como as fazendas industriais ou esportes de sangue. Uma menos natural, mas ainda lógica, para alguns de seus exponentes, como o Peter Singer aí, é a defesa da zoofilia...

A complicação é que a versão vulgar da defesa dos animais parece pautada, acima de tudo, pela aparência e pelo sentimento. Assim, é mais comum que se veja pessoas opostas às corridas de touros do que a comer carne - e não falo de comer carne criada em fazendas industriais, coisa que a maioria das pessoas admite que não é uma coisa muito legal, mas comeríamos carne orgânica se estivesse disponível a preço módico. Mesmo um boi "orgânico" sofre tratamento similar ao longo de toda sua vida - com amarras, ferros em brasa, eletrochoques, castração a frio, e outras crueldades - ao que o touro de lida sofre num único dia. Qualquer bife é milhares de vezes mais cruel do que uma tourada. Mas ok, essa atitude díspar, que não sei se pode ser chamada exatamente de hipocrisia, não é exatamente peculiar à espécie bovina, e seres humanos também se preocupam muito mais com sofrimentos espetaculares e únicos do que com aqueles recorrentes, com os que não lhes dizem respeito do que com os que lhes dão prazer. (O prazer, e não a necessidade alimentícia, é responsável pelo consumo de carne, já que outras proteínas poderiam substituir a dita-cuja.)

Que as duas questões éticas - animais como sujeitos de direitos e os direitos daqueles que são diferentes do humano mas ainda sujeitos de direito - não ultrapassaram os salões das faculdades de filosofia, entretanto, pode ser visto com ainda maior intensidade no que compete aos animais de estimação. Afinal, vamos lá: se animais têm direitos comparáveis aos direitos humanos, o quão ética poderia ser a criação e manipulação genética deliberada deles, para fins estético-recreativos? Não estou questionando a própria instituição da posse de animais, já que é legítimo pensar que o direito a não ser escravo é um direito específico da humanidade, derivado da consciência e não da capacidade de sentir. Mas é difícil pensar em uma violação de um indivíduo mais essencial do que a manipulação da sua própria natureza - que é o que acontece com todas as raças de animais, por definição. Et pourtant, o não é muito grande o número de defensores dos animais que advogam pela proibição de criadores e raças (e pela castração das raças tão deformadas que seu nascimento inicia uma vida de sofrimento, como buldogues e pinschers). As necessidades afetivas das pessoas em terem animais de estimação, isoladas do prazer em formas e características distintas e padronizadas, podem perfeitamente ser satisfeitas com vira-latas, afinal.

(Este não é o argumento ecológico contra criadouros felinos e caninos, defendido neste blog há um tempo atrás. Mas aquele também vale.)

Um comentário:

Biúnil disse...

É interessante mesmo mapear como a ficção científica trata esses temas éticos importantes no porvir (ou o que imaginamos como tal) da nossa sociedade. Com certeza um tema quente para os historiadores do futuro.

Mas sobre comer animais: eu sou fã, e não vejo um grande problema. Na verdade, não vejo porque animais deviam ter direito a não serem comidos após mortos. Claro que sou contra o tratamento cruel aos mesmos; conheço quase nada da realidade pecuarista no Brasil e no mundo, mas já vi alguns avanços importantes nesse sentido.

Inclusive, muitas espécies que existem hoje seriam extintas se não as criássemos para fins alimentícios ou outros (um boi é praticamente um bife ambulante). E vice-versa: roubando ideia do Italo Calvino, gosto de nos ver como um mutualismo humano-bovino. É claro que os homens estão em posição superior na relação, mas me parece bastante claro que sem o mutualismo, nenhuma das duas espécies teria nem perto do espalhamento que possuem pelo globo.