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4.10.16

Museu da África e da Escravidão no cais do Valongo

Quando a prefeitura lançou o site Visão Rio 500 anos, lancei essa proposta lá. Foi a mais votada do site. Não passou pela peneira dos "técnicos" da prefeitura. Então repito aqui, a proposta e o programa expositivo, na esperança de que alguém lhe dê atenção.
Carta aberta às autoridades públicas e empresários do Rio de Janeiro: pela construção de um museu da Escravidão e da África no cais do Valongo.



Por que no Valongo? Porque tanto simbolismo quanto conveniência ali convergem. O cais do Valongo, recentemente escavado, foi a instalação única pela qual passaram mais pés de escravos no planeta (mais de meio milhão de pessoas, entre 1811 e 1850). E o armazém defronte, um dos primeiros armazéns “modernos” do porto do Rio, foi projetado por André Rebouças, ele mesmo negro, neto de escravos, e abolicionista, um dos maiores engenheiros do Império, que proibiu a utilização de escravos como mão de obra na sua execução (em 1871, quase vinte anos antes da escravidão ser abolida no Brasil), homenageado junto com seu irmão no maior túnel da cidade (mas quantos por ali passam saberão ligar o nome à pessoa?). Não é uma instalação qualquer, em um lugar qualquer: é um memorial de importãncia, sem falsa modéstia, planetária. Instalação que, aliás, foi ela mesma uma tentativa, por estranho que pareça a nossos ouvidos ouvir isso, de apagar o passado colonial e andrajoso fazendo instalações científicas e higiênicas para o tráfico de ePor que um Museu da Escravidão e da Africa no Valongo?

Em primeiro lugar, por causa da importância simbólica daquele lugar. Lá desembarcou o maior número de africanos escravizados em toda a história. A importância da escravidão atlântica para formação da sociedade brasileira e para a construção do mundo moderno exige que se preserve aquele lugar. Nessa história de muita dor e sofrimento, o Rio de Janeiro desempenhou papel fundamental. Além de ter o maior porto receptor de escravos do mundo, nesta cidade funcionava toda a complexa cadeia de tráfico humano, que ia desde a construção e contratação de navios à contratação e repasse de seguros. Aqui, também, na condição de capital imperial, foram tomadas decisões importantes que mudaram a história do tráfico e da escravidão no Brasil, como por exemplo, a proibição do tráfico negreiro e a definitiva abolição da escravidão em  13 de Maio de 1888, quando nos tornamos o último pais das américas a fazê-lo.

É uma nódoa na história nacional, portanto algo melhor esquecido? Não. Nódoas são para serem lembradas, e a cultura que saiu da escravidão deve ser celebrada. Nem é uma idéia tão original - existem museus da Escravidão em outras cidades, ligadas mais ou menos ao tráfico, como em Liverpool e Nova Iorque. Existem museus do Holocausto, outra grande tragédia da humanidade, como em Berlim ou Washington. Este, aliás, atrai 17 milhões de visitantes por ano, muito mais que qualquer atração turística brasileira. Hoje, o Brasil retoma ligações com a África que em parte se perderam ao longo do Século XX, e um museu que registre o maior laço entre os dois países é também importante. E, finalmente, na parte “África,” sem falar da escravidão, o Rio de Janeiro, com uma população negra bem maior que a de São Paulo, não tem algo da importância do Museu Afro-Brasil, do Ibirapuera.

Acervo não falta - as próprias escavações do porto, por óbvio, retiraram inúmeras peças relevantes à história da escravidão no Brasil, e os arquivos em mãos de diversas instituições públicas na cidade também não são pequenos. Não que a idéia seja um museu “sótão,” à moda antiga. Pelo contrário, o ensino, a celebração e a mem´ da tragédia que foi a escravidão e da riqueza que dela se extraiu, devem incluir seções interativas, devem incluir fac-símile, toda a tecnologia necessária pra que o Museu da África e da Escravidão não seja “mais um museu,” visitado principalmente por colegiais entediados, e sim o que tem potencial para ser - uma atração internacional carioca, no nível do Cristo ou do Pão de Açúcar. (E um centro de pesquisas, igualmente de importância internacional.) Tem, também, o potencial para reforçar e reforjar as relações brasileiras com a África, continente que é hoje o que mais rápido cresce no mundo, e com a diáspora negra em toda a orla do Oceano Atlântico.

scravos, numa prefiguração do genocídio “científico” e industrial que foi o Holocausto.

Recentemente, fomos surpreendidos pela notícia de que as autoridades públicas pretendem entregar o galpão construído por André Rebouças e hoje utilizado pela ONG Ação da Cidadania a um grupo de empresários para que lá seja feito um empório gastronômico, como parte do projeto de requalificação do Porto, que por sua vez é parte de um projeto de inserção do Rio de Janeiro na rede de cidades globais de negócios. Defendemos, ao invés disso, a alocação desse empório gastronômico em outro espaço (há os armazéns da beira do cais, com sua vista para o mar, há a possibilidade já aventada de reconstruir o Mercado Municipal da Misericórdia, há os galpões da antiga estação Marítima, junto à Cidade do Samba) e a criação no armazém do museu da África e da Escravidão

Mesmo pensando-se apenas na inserção do Rio como cidade de negócios e turismo global, um empório gastronômico sem ligações locais mais fortes não terá a mesma capacidade de atração global que um memorial de importância mundial. Atrações assim desencarnadas dependem de dinheiro e redes de status consolidadas, o que não é o caso do Rio, não numa competição global. Se Tóquio, com PIB comparável ao do Brasil inteiro e suas 200 estrelas Michelin, não virou destino corriqueiro de gastrônomos europeus e americanos, não será um empório no Rio (que não tem 10 das tais estrelas) que o será. E não é como se o galpão de Rebouças fosse a melhor opção para um tal empreendimento; qualquer um dos 18 galpões do cais do porto, no qual a operação comercial está sendo desativada, serviria melhor a um tal propósito, proporcionando aos visitantes as largas vistas da baía da Guanabara.

Reiteramos, portanto: o Rio de Janeiro, o Brasil precisam de um museu e memorial da Escravidão e da África no Valongo, no armazém projetado por André Rebouças, defronte ao cais por onde pisaram milhares de vidas escravizadas. Um resgate da história da cidade, do país, e do mundo, que fará o Porto Maravilha merecer de forma plena seu nome.


Museu da África e da Escravidão no cais do Valongo - programa expositivo

Este programa foi feito apenas como um exemplo do que poderia ser feito, sem ter a ambição de ser uma proposta de curadoria, precisaria da contribuição de diversos especialistas de instituições, no Rio, no Brasil, e no mundo, que lidem com as temáticas da África, do Negro, e da Escravidão, no âmbito de museus históricos e de arte.


Áreas disponíveis apenas no galpão da Ação da Cidadania:

Térreo - 6000m2
2 galerias de 1500m2 cada
(Possibilidade de cavar um subsolo de 1500m2?)

Área disponível no resto do quarteirão: ProMatre: 3300m2. Edifício Importadora Mercantil: 700m2x10 andares Total: (assumindo-se edificação de 2 andares no terreno da Promatre): 13.300m2 ;

Total com quarteirão e subsolo:23.800m2

Cabe ressaltar que há, no local, equipamentos essenciais a serem relocados: a própria Ação da Cidadania, para a qual o armazém de Rebouças é não apenas instalação de uso como também fonte de renda, na forma de aluguel para eventos, e o hospital ProMatre. Além disso, também existe a questão da “relocação” da proposta do governo do estado de empório gastronômico. Felizmente, no atual estado da Região Portuária, boa parte dos terrenos e edificações ainda pertencem à União Federal ou à Caixa, podendo assim ser utilizados na solução.

Uma solução possível é a da utilização dos galpões da antiga estação marítima, recentemente restaurados. Os galpões estão inseridos na vila olímpica da Gamboa, defronte à cidade do Samba, sem que haja uso definido. Cada um deles tem 4500m2, somando uma área equivalente à do armazém de Rebouças, com uma área entre eles de outros 6000m2. A área interna dos galpões tem plano aberto e pé direito alto, se prestando a diversas soluções que preservariam, como nas instalações atuais, o uso duplo pela ong. Um pouco mais longe, mas com acesso fácil pelas redes de metrô e ônibus, há o terreno da expansão nunca realizada da Estação Barão de Mauá, hoje ocupado pela fábrica de aduelas das obras de expansão do metrô; o terreno tem mais de 30.000m2. Outra possibilidade é a utilização de armazéns do cais do porto; nenhum dos armazéns do cais de 1910, todos tombados, se presta à movimentação portuária moderna, e diversos deles tendem a ficar sem uso no futuro próximo, e cada um tem 4.000m2, com características similares aos já citados galpões da Marítima. Os armazéns do Porto também serviriam para as instalações do pretendido empório gastronômico, com direito a mesas no cais - o oceano certamente é uma vista mais agradável do que uma praça com algumas pedras, e definitivamente do que comer bem lembrando da tragédia humana que aquelas pedras testemunharam.  Finalmente, a ProMatre pode ser instalada em algum terreno próximo, tendo requerimentos de espaço mais flexíveis; logo ao lado, há o estacionamento das Lojas Americanas. Também há uma área de estacionamento grande do Hospital dos Servidores, o que levaria inclusive a uma sinergia entre os dois hospitais.


Plano expositivo do próprio museu:

Temas:

A escravidão atlântica e o tráfico negreiro, dividido em 2

1 - o tráfico:
  • Origens nas ilhas atlânticas
  • Os principais fluxos (telão interativo com mapas de origens e destinos em cada século)
  • A experiência dos escravos no tráfico - do Sudão às Minas Gerais. Os comedores de gente. ( reconstituição de porão negreiro)
  • A importância da acumulação de capital na Europa - comerciantes e estaleiros no Rio colonial (as primeiras naus em Salvador e no Rio, a expedição a Angola, o açúcar e as minas)
  • A formação dos estados caçadores de gente na África (mapas, armas e correntes)
  • O cais do Valongo e seus antecessores no Rio de Janeiro; outros portos de escravos mundo afora.
  • O panfleto do Brooks, abolicionismo, e abolição do tráfico. Os esquadrões ingleses.

2 - A escravidão nas Américas

  • A experiência dos escravos, de eito e de casa
  • A importância econômica da escravidão
  • Pretos livres e não tão livres. Reapresamento.
  • Resistência individual e quilombola; mistura com índios
  • A escravidão indígena; as bandeiras e as missões
  • A abolição nas américas. Haiti e repúblicas hispânicas. Guerra civil americana.
  • A abolição no Brasil e os quilombos urbanos
  • O legado da escravidão - desigualdade e racismo. Decreto de 98. “Embranquecimento”
  • Quilombos hoje
  • O Rio dos escravos (maquete(s? uma por século?) interativa(s) com localização de pontos relevantes - atracadouros de navios tumbeiros, casas de leilão, irmandades religiosas de pretos, clubes, quilombos urbanos)
  • Resultados ligados à escravidão de escavações arqueológicas no Porto - conexão com o cemitério dos pretos.


3 -  A escravidão mundo afora

  • Tipos de escravidão. Escravidão familiar, estamental, de mercado
  • Escravidão antiga; as minas helênicas e persas. Os latifundia romanos.
  • Relação de sociedades escravistas vs. sociedades com escravidão. (galeria de horrores - escravos russos com rosto marcado a ferro, chapéus costurados coreanos, galés mediterrâneas,
  • Os fluxos de escravos radanitas na Europa da alta idade média e a palavra escravo.
  • Diferentes escravidões (de mercado, da gleba, pessoal)
  • Depois da abolição: os cules asiáticos
  • A escravidão árabe nos séculos XIX-XX.
  • A escravidão ilegal hoje

4 - A África ocidental

  • Origem dos imigrantes forçados no Brasil e no Rio.
  • História das sociedades das áreas emissoras. Fluxos bidirecionais Brasil-África.
  • Arte e cultura clássica idem (bronzes do Benin, panos da costa, objetos de culto fon e iorubá, a influência islâmica)
  • Contemporâneas ibidem (mostras temporárias de artistas convidados)
  • Religiões de matriz africana no Brasil (umbanda criada em São Gonçalo, relação de terreiros, diferenças entre as religiões, perseguição oficial e extraoficial)
  • Imigrantes negros de hoje no Brasil (Haiti, Nigéria, Angola, Senegal, Cabo Verde)

5 - Áreas não expositivas

  • Administração, pesquisa, e reserva (áreas restritas)
  • Biblioteca
  • Lojinha
  • Café/restaurante


Por que o subsolo? Pra conseguir mais área, e para fazer uma “experiência de navio negreiro,” como no Imperial War Museum de Londres se tem uma experiência de trincheira da Grande Guerra.  Com um subsolo de 1500m2, poder-se-ia dar igual área para cada uma das grandes seções, talvez um pouco mais para a escravidão americana - 2000m2. Assim, sobrariam 4000m2 para as áreas não-expositivas.

Caso além do galpão seja possível incorporar o quarteirão a norte, poderia-se deixar todas as áreas não-expositivas nessa área, e usar o galpão apenas para as exposições. Nesse caso, pode ser feita uma dança das cadeiras de subtemas, para deslocar mais deles para o piso térreo.

1 - Subsolo - o tráfico:

  • A experiência dos escravos no tráfico - do Sudão às Minas Gerais. Os comedores de gente.
  • A importância da acumulação de capital na Europa - comerciantes e estaleiros no Rio colonial
  • A formação dos estados caçadores de gente na África
  • O cais do Valongo e seus antecessores no Rio de Janeiro; outros portos de escravos mundo afora.
  • O panfleto do Brooks, abolicionismo, e abolição do tráfico. Os esquadrões ingleses.
  • A escravidão árabe nos séculos XIX-XX.

2 - Térreo - A escravidão na América

  • Os principais fluxos
  • A experiência dos escravos, de eito e de casa
  • A importância econômica da escravidão
  • Pretos livres e não tão livres. Reapresamento.
  • Resistência individual e quilombola; mistura com índios
  • A escravidão indígena; as bandeiras e as missões
  • A abolição nas américas. Haiti e repúblicas hispânicas. Guerra civil americana.
  • A abolição no Brasil e os quilombos urbanos
  • O legado da escravidão - desigualdade e racismo. Decreto de 98. “Embranquecimento.” Jim Crow. Direitos civis e movimentos negros.
  • Quilombos hoje
  • Origem dos imigrantes forçados no Brasil e no Rio.

3 -  Galeria - A escravidão mundo afora

  • Escravidão antiga; as minas helênicas e persas. Os latifundia romanos.
  • Relação de sociedades escravistas vs. sociedades com escravidão.
  • Os fluxos de escravos radanitas na Europa da alta idade média e a palavra escravo.
  • Diferentes escravidões (de mercado, da gleba, pessoal)
  • Depois da abolição: os cules asiáticos
  • A escravidão ilegal hoje

4 - Galeria - A África ocidental


  • História das sociedades das áreas emissoras.
  • Arte e cultura clássica idem
  • Religiões de matriz africana no Brasil
  • Imigrantes africanos de hoje no Brasil

5 - Edifício importadora Mercantil (retrofit e adaptação)

  • Administração, ensino, e divulgação.
  • Reserva
  • Biblioteca
  • Lojinha
  • Café/restaurante
  • Auditórios
  • Exposição (último andar) sobre a história do porto do Rio de Janeiro

6 - Pro Matre (destruída e feito novo edifício, que articulasse os edifícios do armazém de Rebouças e da Importadora Mercantil)

  • Pesquisa
  • Reserva
  • Exposições contemporâneas? (Obras de arte contemporâneas tendem a ser grandotas.)
  • Estacionamentos subterrâneos? (com 3 andares, teria-se 10.000m2, o bastante para 400 carros)
  • Grande auditório?





Fontes de acervo/instituições a cooperar:

Memorial dos Pretos Novos http://www.museusdorio.com.br/joomla/index.php?option=com_k2&view=item&id=83:memorial-dos-pretos-novos
Centro Cultural José Bonifácio
Museu histórico nacional
Museu nacional
Museu afro-brasil
Biblioteca nacional
Arquivo histórico nacional
Banco do Brasil
www.slavevoyages.org (The Transatlantic Slave Trade Database)
Arquivo nacional do Reino Unido
Arquivos municipais da cidade de Marselha
Arquivo nacional da torre do Tombo


Bibliografia

Slavery and Social Death
O Trato dos Viventes
Visões da Liberdade
O Rio de Janeiro do Século XVIII
Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue
O Navio Negreiro (Rediker)
The Many-Headed Hydra

Um comentário:

Unknown disse...

Chego aqui com dois anos de atraso, mas para te informar que há o Museu da Abolição na Madalena, Recife.

Legal teu blog.