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6.9.16

Bicicleta, transporte alternativo ou alternativa de transporte

A idéia da bicicleta como meio de transporte é algo que ganha cada vez mais corpo mundo afora. Em São Paulo, tornou-se controversa com a construção, pelo então prefeito Fernando Haddad, de centenas de quilômetros de ciclofaixas e algumas dezenas de quilômetros de ciclovias; a discussão se orientou por linhas político-partidárias, mas também entre aqueles que acharam absurda a redução do espaço dedicado ao automóvel e os defensores da bicicleta como transporte alternativo. Estes elencam benefícios incontestáveis: além do impacto sobre o meio ambiente ser infinitamente menor do que o de um carro, quem anda de bicicleta vê melhoras na sua saúde física e mental; numa mesma área de rua cabem muito mais bicicletas do que carros; bicicletas podem ser guardadas dentro de casa mesmo.

Se esses benefícios são tão incontestáveis, por que não vemos a bicicleta se massificar? Para além do poder de publicidade das grandes montadoras, acho que boa parte da resposta está na própria ideia de transporte alternativo. "Alternativo" remete a algo que se faz porque é melhor, porque é virtuoso, é certo. Mas bem, sinceramente, ninguém faz o que é certo. Não passamos fio dental todo dia, não fazemos o exercício nem comemos a comida que deveríamos. Alguns fazem, e parabéns - mas isso não altera o transporte em massa. Enquanto a bicicleta for vista como um transporte alternativo, ela não está sendo vista como alternativa de transporte. 

É claro que a bicicleta, sozinha, não é um meio de transporte suficiente para uma metrópole de 20 milhões de pessoas, em que muitos deslocamentos ordinários estão na casa das dezenas de quilômetros, muito menos para uma metrópole construída sobre morros, em que boa parte dos percursos é um sobe-e-desce sem fim, cansativo até para quem está a pé. Mas ela pode, sim, transportar literalmente milhões de pessoas, tirando das ruas milhões de carros, economizando bilhões de reais e milhares de vidas. Oito milhões de carros entopem as artérias da capital paulista; dois terços das viagens que esses carros percorrem estão dentro de um raio de 4km - ou seja, de um raio em que a bicicleta é superior ao carro em tempo de percurso. 

Para quem percorre grandes distâncias, por outro lado, uma das chaves para considerar a bicicleta uma alternativa de transporte de massa, e não apenas um transporte alternativo está na última perna, ou última milha, combinada com os grandes troncos de transporte ferroviário (e, em menor escala busãoviário). A bicicleta não vai conduzir muita gente de Itaquera à Paulista, mas ela pode fazer com que muito mais gente esteja "ao lado" das estações de metrô respectivas, ampliando a área coberta por esses troncos e aliviando a lotação dos ônibus alimentadores. 

O efeito não é pouca coisa. Vamos supor que o raio em que se está a uma distância conveniente de andar até uma estação é de uns 600m, o equivalente a fazer com que pessoas andem até um quilômetro para pegar o metrô. E vamos imaginar que o raio equivalente, de bicicleta, seja de uns 3km. Parecem suposições razoáveis; uma pessoa normal pedala umas quatro ou cinco vezes mais rápido do que anda, com o mesmo esforço.Em ambos os casos, você está falando de menos de vinte minutos. 

 No primeiro raio, em volta da estação Itaquera, moram 12.025 pessoas. No segundo, 313.801. Pensar nas pessoas chegando ao trem de bicicleta, ao invés de a pé, aumentou em 25x a quantidade de gente que pode chegar na estação, convenientemente e sem depender de uma rede de ônibus. Para todo o metrô (sem contar a CPTM) , passamos de 1,3 milhões de pessoas a menos de 600m de uma estação para 5 milhões de pessoas que podem alcançá-lo de bicicleta - e na CPTM, em que a distância entre as estações é maior e não há sobreposição, essa conta é ainda maior. Ao todo, a menos de 3km de uma estação ferroviária moram 12,4 milhões de pessoas, mais da metade de todos os habitantes da região metropolitana de São Paulo. 

E não é só o trajeto casa-estação que seria afetado pela massificação da bicicleta como extensão dos trilhos. Olhemos os dois maiores parques da cidade, o Ibirapuera e o Parque do Carmo. O segundo está a pouco menos de quatro quilômetros do metrô, o primeiro a pouco mais de três. Meia hora, quarenta minutos, talvez até uma hora para um pedestre um pouco mais lento ir até o Carmo. Mas dez, quinze, talvez vinte minutos de bicicleta. Dentro do centro expandido, não há lugar nenhum em que não se possa chegar ao metrô pedalando. E a bicicleta é o jeito mais barato de conseguir essa penetração, tanto diretamente quanto em termos de impactos; os impactos da bicicleta na vida das pessoas são positivos ao invés de negativos, e o custo de cosntrução da infraestrutura é bem menor do que aquele para implantar corredores de ônibus (e muito menor ainda do que o de construir metrô, especialmente subterrâneo). 

Se nos parágrafos acima nós vemos que a bicicleta teria potencial para substituir milhões de carros e de ônibus locais, por que isso não acontece, hoje? Porque não é barato, como exige a categoria de "transporte alternativo." Não na escala metropolitana. Essa é, afinal, das diferenças entre algo ser encarado como transporte alternativo, da paz, legal, e alternativa de transporte real: a escala dos gastos e ações envolvidas. É muito mais barato fazer ciclovia do que metrô, mas para fazer a infraestrutura cicloviária ser alternativa de transporte, ainda temos que falar em gastos vultosos, sim. Os gastos atuais, apesar de toda a controvérsia, ainda são periféricos, ainda são uma coisinha que a prefeitura toca de lado. Um hobby, e não trabalho. (Não é de se espantar que muita ciclovia viva cheia de gente correndo para ficar com o cooper feito.) Para não falar, claro, do automóvel particular: a mera manutenção do asfalto paulistano recebeu um investimento da casa dos 6 bilhões.

O principal: você teria de ter ciclovias e ciclofaixas seguras para o uso de uma grande quantidade de pessoas, inclusive pessoas que não estão particularmente dispostas a correr riscos. Isso não é verdade quanto ao sistema atual, em que a maioria das ciclovias se assemelha a um jogo de super mario brothers, com pulos e obstáculos, enquanto as ciclofaixas têm metade de sua largura ocupada por sarjetas fundas; pistas para ultrapassagem são algo de que não se ouve falar, e mesmo a mera passagem segura em direções opostas frequentemente não existe, fora os casos extremos - mas ocupando pontos críticos - como o da ciclovia da Rebouças, mais estreita que um guidão. 

Teriam que ser reformulados, também, os sistemas de bicicleta pública. Os dois sistemas (incompatíveis entre si) usados em São Paulo, juntos, não chegam a ter 250 estações, com menos de duas mil bicicletas no total. Imaginando uma rotatividade perfeita, com as bicicletas sendo usadas o dia inteiro por quinze minutos de cada vez, isso dá pra transportar 150.000 pessoas. Menos de um terço da quantidade de gente que mora entre 0,6 e 3 quilômetros da estação Consolação. A título de comparação, em Bruxelas, que tem três milhões de habitantes, são 5000 bicicletas em 346 estações. Em Paris, com metade da população de São Paulo, são 18.000 bicicletas em 1230 estações. Em Hangzhou, com mais ou menos a mesma população que a terra da Garoa, são 78000 bicicletas em 2950 estações.  E nenhuma dessas cidades está saturada. Em todas elas há planos de expansão. 

O sistema de bicicletas públicas não tem que ser apenas expandido. Tem que ser reformulado; além das estações espalhadas pelos bairros mais ricos de maneira quase aleatória (respondendo ao interesse do patrocinador em ter sua marca anunciada), deveria haver grandes estações, com centenas de pontos, junto às estações do metrô e CPTM nos bairros centrais, de modo que você já pudesse sair do metrô e pegar sua bicicleta. E estações médias, com pelo menos 20-70 bicicletas, em locais de grande atração - shoppings, grandes prédios de escritório, faculdades, etc. Sim, ao contrário do modelo atual, financiado e pautado por anúncios, isso exigiria investimento da prefeitura e do estado - mas continuaria sendo uma opção barata de transporte. 

Além das bicicletas públicas, seria necessária a construção de grandes bicicletários, em todas as estações possíveis, especialmente na outra ponta, na periferia, em que as bicicletas públicas veriam menos uso e mais gente está saindo de casa para a estação. De novo, não estamos falando de meia dúzia de postes, e sim de centenas de milhares de pontos de estacionamento. De novo, isso é dinheiro de verdade para ser investido pelo poder público, mesmo sendo mais barato do que outros modos. Nem é trivial falar em adicionar ainda mais gente para os troncos, muitos dos quais já estão bastante cheios. 

A topografia da cidade, tão citada pelos opositores, é um problema, verdade (lembrando: não estamos falando de gente que "anda de bicicleta," que dirá que rápido você se acostuma), e puxa soluções que vão das óbvias e caras (bicicletas elétricas, como as que já estão sendo testadas em sistemas de bicicleta pública aqui e acolá, inclusive em Lima, no Peru, para ficar em uma cidade quase vizinha e mais pobre que SP). 

Toda essa infraestrutura é, talvez, mais importante do que as próprias ciclovias, na medida em que ajuda a gerar massa crítica. Quando o número de bicicletas é grande o bastante, o trânsito se acostuma a elas de tal modo que elas podem ocupar as ruas sem problemas (aliás, ajudando a reduzir velocidades máximas e acidentes no trânsito em geral), e a própria ciclovia se torna quase desnecessária. 

De novo: a bicicleta pode ser uma das alternativas de transporte mais baratas de se implantar numa cidade, tanto no momento da implantação quanto, eventualmente, pelas economias relacionadas à poluição e à manutenção das vias. Mas para tal, é preciso que ela abandone as vestes de transporte alternativo. Não é a bicicleta do ciclista que tem potencial pra retomar (sim, retomar; bicicletas são mais antigas que o automóvel, afinal, e já foram o principal meio de transporte urbano) as ruas, mas sim a bicicletinha de vó, a caloi ceci, a mama-chan. E para que ela seja alternativa de transporte, tem que ser tratada como tal pelos governos, não como hobby, não como algo virtuoso a se fazer com o que sobra, enquanto o grosso das verbas vai para os transportes motorizados.