Ou, por que não gosto do lacradorismo, e por que ele veio pra ficar.
Antes de mais nada, confesso que tenho problema com a própria palavra, ou melhor, por seu uso nas redes sociais. Tô aguardando pra ouvir que o broto lacrou, bicho. "Lacrar" é uma gíria jovem e gay. Se espalhou entre jovens em geral a partir de um par de vídeos de um youtuber falando sobre divas pop, em fins de 2013. Apropriação cultural é um treco horroroso quando feito por grandes corporações cheias de poder; quando é feito por outros, é só ridículo. Luciana Genro, uma senhora de meia idade, imitando isso, é uma pérola do tiosukitismo. Soa tão autêntico e natural quanto se o Maluf falasse que era gamer. O ápice da vergonha alheia foi Babá postando um discurso de Babá e escrevendo, em maiúsculas, LACROU!!!!!!!!!!
Mas para além disso, e falando não só da palavra, mas de toda a atitude que a orbita. Lacrar é pôr aquelazinha no seu lugar. É um discurso de autoridade, de cima pra baixo. É só reparar como os verbos que vão junto estão, geralmente, no imperativo (feita a conjugação no português castiço ou não). Seje menas. Apenas pare. Se desconstrua. Faça. Obedeça. É um discurso que se dedica a combater opressões de todo tipo, especialmente as de gênero e sexualidade, mas se você pensar apenas na forma do discurso, ele não é muito diferente do das senhoras de Santana. São pessoas sérias, olhando de cima pra baixo e vaticinando sobre a imoralidade daquela criatura inferior. Tut tut. E disso faz parte, também, o escracho, o bullying, virtual ou não.
Pra além de qualquer problema psicológico pessoal meu com bullying ou discursos de autoridade, ou de qualquer resistência conceitual, de princípios, contra discursos de autoridade, isso é problemático, e não é por alguma questão ideológica de que discursos opressivos não podem gerar liberdade. É mais simples: o discurso de autoridade só funciona se você tem autoridade. Não adianta de nada falar pro Bolsonaro SEJE MENAS. Imagine-se falando pro delegado machista enquanto faz um BO "apenas pare." Não funciona. Não é que discurso de autoridade não funcione pra combater autoridade por alguma questão espiritual, não funciona porque, a princípio, ele só funciona pra reforçar autoridade existente, não pra derrubá-la. Não é à toa que boa parte das "lacrações" narradas na internet são fanfics, são wishful thinking. "Ah se eu falasse poucas e boas eles se humilhariam a meus pés." Porque na realidade o Outro - não só o outro opressor mas qualquer diferente - não costuma ser prostrado pela Verdade quando ela é Falada na Cara. Pelo contrário, o resultado costumeiro de boa parte das fanfics que se vê por aí seria um caso de agressão.
Digo a princípio, e não por definição, porque sendo a humanidade um bicho esquisito, um discurso de autoridade convincente o bastante pode ser tomado como autoridade mesmo que não a tivesse antes. Que o digam todos os falsos Dimitris, Stroheins, e Castañedas da história. Mas não creio que seja esse o caso de "seje menas." É um pouco pior do que nada, na verdade: o discurso de autoridade só é realmente aceito se ele vier de uma autoridade vista como legítima. Se essa autoridade for vista como ilegítima, vai causar ressentimento, mesmo que obedecido. (E se não for nenhum dos dois, não vai ser obedecido E vai causar repulsa e ressentimento.)
Ah, mas não estou aqui pra dar biscoito pra macho opressor. Só que não é só "macho opressor" que não aceita o discurso de autoridade progressista. Sarah Winter está bem longe de ser a única mulher que rejeita o feminismo, e situações semelhantes podem ser vistas em todas as causas progressistas. Convencer aqueles que pensam diferentes de nós é uma necessidade real, pra pessoas que querem ver triunfar ideais que, hoje, convencem uma minoria da população. Especialmente se não têm a força das armas, da mídia, ou do capital por trás de si - e, se alguns dos discursos progressistas, os identitários, podem trazer pra si algumas dessas forças, isso não é verdade pra outros. E mesmo praqueles que podem ter o capital do seu lado, isso pode dar numa situação meio faustiana.
O outro lado, é claro, é que se discursos de autoridade não funcionam muito bem contra o poder, eles funcionam muito bem para solidificar o poder num espaço em que se tem, sim, autoridade. Isso significa que a mesma característica que torna o lacradorismo inócuo contra o Bolsonaro torna ele muito forte contra alguém que discorde dele dentro dos espaços de esquerda - do mesmo modo como uma Senhora de Santana teria poder pra "pôr no seu lugar" uma sobrinha que falasse palavrão, mas seria só uma velha ridícula se tentasse admoestar um grande empresário. O bully é mau guerreiro, mas é ótimo capataz.