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19.1.16

Desenhando o racismo

A essa altura, acho que nem o Ali Kamel deveria acreditar de verdade que não existe racismo no Brasil. É uma noção que já foi mais popular, tanto que a ONU um dia mandou fazer estudo para reproduzir essa falta de racismo pelo mundo, mas hoje em dia largamente desacreditada. O problema é que a discussão sobre isso geralmente descamba para o lado anedotal, para o lado do "troféu Ali Kamel" cada vez que rola um ato mais flagrante de racismo. E bem, esse não é um assunto subjetivo apenas. Há dados, e eles mostram que há sim racismo no Brasil, e permitem até comparar o racismo brasileiro com outros - e o que esses dados mostram é mais complexo do que a negação ou afirmação do racismo, ou de que ele seja melhor do que alhures. (Ou pior, como quer a tradição inspirada no Abdias do Nascimento, que via nos EUA um modelo.) Então este artigo tenta transformar alguns desses dados em imagens, pra tentar tornar a compreensão deles mais fácil

Primeiro de mais nada: quem é negro, quem sofre racismo, no Brasil e alhures. O critério do IBGE, da autodeclaração, é o único possível tanto ética quanto estatisticamente pra isso. Eticamente, porque algum tipo de "olheiro racial" seria algo que remexeria bastante o lodo nazista. Estatisticamente, porque esses olheiros raciais, em larga escala, não seriam mais confiáveis do que os autodeclarantes. Até menos. (E sim, apesar do critério ser a autodeclaração, de facto existem entre os agentes do censo aqueles que tacam o que acham que viram ao invés da autodeclaração.) É possível, sim, averiguar o quanto de ascendência africana uma pessoa tem - mas isso não é necessariamente uma boa medida, já que o preconceito que atinge as pessoas depende mais da aparência externa do que da genética. Isso não apenas aqui, país em que sempre se falou do "preconceito de cor," em contraposição ao "preconceito de raça ou etnia" americano. Nos próprios EUA e África do Sul, mais de um estudo já verificou que sim, entre pessoas igualmente classificadas como negras, aquelas com pele mais escura sofrem mais os efeitos do racismo. 

Note que o mesmo processo acontecer mundo afora não significa que acontece da mesma maneira. Inclusive, quantos são os negros de cada país vai variar de acordo com o critério, se genético ou autodeclaratório - e essa variação vai indicar o quanto houve, no passado, uma mistura mais ou menos livre entre pretos e brancos pra ter filhos. O gráfico abaixo tenta mostrar essa diferença, com o tamanho da população afrodescendente versus o tamanho da população que se autodefine como negra em cada país: 


Na escala horizontal, a proporção da população do país que descende em boa parte (pelo menos 15% da ascendência) de africanos. Na vertical, a proporção que se autodefine como negra. A bola indica o tamanho da população descendente de africanos. Pode-se ver no gráfico, por exemplo, a diferença entre uma proporção e outra - ou seja, o quanto alguém vai ser considerado descendente de africanos por ser descendente de africanos. Reparem que não existe absolutamente nenhum país acima da linha do 1 pra 1... e que o Brasil é aquele em que a desproporção é maior. 

Também é interessante fazer essa distinção por outro motivo. É que se você reparar na posição do Brasil na escala horizontal (perto da África do Sul), o Brasil é basicamente um país negro e mulato, em termos de ascendência. Acontece que na escala nativa brasileira boa parte desses mulatos é branco. Não "se considera," já que branco e mulato são características sociais, que dependem da ordem social, mas é branco - no Brasil. Muitos deles descobrem, chocados, que não são tão brancos assim no Atlântico Norte. Ou seja, de certa forma, o Brasil, que se considera branco amestiçado com negro - nas famosas palavras de Gilberto Freyre, o brasileiro se misturou com o negro e com o índio (ie, é diferente deles) pode ser considerado, como um todo, como um país negro. Não sei se ajuda a entender essa distinção entre afrodescendente e negro, mas vá lá: no Haiti, como em todos os países do Atlântico, o racismo pós-escravidão é um problema real e palpável. Lá, os mulatos dominam a vida econômica e social do país - a ponto do termo ser sinônimo com burguesia, sendo entretanto em geral excluídos dos cargos principais políticos, pela resistência dos negros. Ora, a olhos brasileiros, é bem difícil distinguir esses dois grupos perfeitamente distintos aos olhos haitianos. A mesma coisa acontece com os pretos, pardos, e brancos brasileiros. Gradações raciais são inventadas e peculiares a cada sociedade, mas por isso mesmo incrivelmente sutis. De acordo com essas sutilezas, o Brasil pode ser considerado um país heterogêneo, em que negros são uma minoria discriminada (o modelo americano) ou, o que raramente vejo, um país negro, dominado por uma elite branca e mestiça clara. Como na África do Sul do Apartheid, isso não significa que todo branco é rico e influente. Mas admita-se que é um modo de enxergar um pouco diferente...

Primeiro parêntese de cautela ao ler gráficos: a proporção de 15% para chamar alguém de "afrodescendente" é, obviamente, arbitrária. Não foi tirada do nada; é a utilizada por muitos desses estudos genéticos, e corresponde mais ou menos, no Code Noire francês, à última categoria de mulato, o "oitrão."  Mas o gráfico acima poderia ficar muito diferente se se utilizasse dez, cinco, ou cinquenta como "nota de corte." Isso não quer dizer, por outro lado, que pode-se dizer qualquer coisa com gráficos; as proporções podem mudar, mas as posições relativas dos países - quem está acima ou abaixo de quem - mudam bem menos. Outro caveat é que estamos comparando um número atingido por um censo nacional que, com todas as falhas, é uma tentativa de recolher a totalidade da população, com pesquisas feitas com voluntários que, por mais que tenham usado técnicas até sofisticadas para tentar se adequar ao que sabemos via os censos, têm um fator variável muito maior envolvido.  Então tomem este gráfico, como qualquer outro gráfico ou número, com uma pitada de sal.

Talvez não inteiramente por coincidência, o Brasil também se aproxima da África do sul no quão tardio o sistema de ação afirmativa é por aqui. Vamos ao gráfico: 



Como pode se ver, ação afirmativa, conceito novo no Brasil, é algo que data do começo do século XX, e se espalhou pelo mundo no pós-guerra, dos dois lados da Cortina de Ferro. Pode-se ver também que, enquanto a ação afirmativa no Brasil atinge basicamente um campo (universidade), e muito parcialmente outro (emprego público), em outros países ela atinge uma variedade enorme de campos. Podem reparar também que a proporção de gente da etnia atingida beneficiada é muito menor no Brasil...

Pegadinha. Todas as afirmações acima são verdadeiras, mas todas elas dependem, muito mais do que no primeiro gráfico, de uma série de pressupostos diferentes no contexto de cada país. Até porque enquanto os países do gráfico anterior dividem uma iteração específica do preconceito entre si (o racismo nascido da lida de seres humanos através do oceano Atlântico para as colônias européias na América, nas suas versões metropolitana, colonial, e (pós-escravidão de jure) imperial), as situações de que trata este são bastante díspares. São todas elas redutíveis à existência de minorias étnicas em desvantagem social, mas em contextos muito diferentes. Nas sociedades asiáticas (e euroasiática) deste gráfico, essas minorias são antes comparáveis aos indígenas brasileiros, e essas medidas de ação afirmativa são inclusive parte de estratégias de assimilação no corpo nacional - não necessariamente, e às vezes inclusive de maneira digna de aplausos, necessariamente no corpo étnico dominante. E mesmo assim há diferenças, como pode ser visto na proporção de gente afetada; enquanto na China é corretíssimo falar de uma minoria quase residual (se enorme em números absolutos), na Índia é o grosso da população do país que pertence às "castas atrasadas."

Comparando apenas com os países mais parelhos, o que se vê é que a ação afirmativa no âmbito do racismo contra negros nos países atlânticos é algo que nasce nos EUA no contexto dos direitos civis do pós-guerra, como reação a uma legislação e uma atitude sociais particularmente virulentos (comparáveis ou até piores do que o Apartheid sul-africano) implantados logo após a guerra de secessão e o fim da escravidão. O mesmo se pode dizer do contexto do pós-apartheid. Só no Brasil é que ela nasce sem esse processo de reparação de feridas étnicas - até porque, inclusive não sem um quinhão de razão, nunca foi reconhecida a existência de uma etnia negra no Brasil, um povo separado, com cultura e tradições separadas. Assim, é graças justamente a ativistas de inspiração americana, que denunciam a propaganda da falta de racismo, que se começa a fazer, alguns anos depois do fim da ditadura militar, o reconhecimento oficial do racismo - e o sistema de ação afirmativa, ainda imperfeito.

Então, com esse atraso todo na ação afirmativa, com essa dominação branca sequer reconhecida, o Brasil pode ser considerado particularmente racista, ou mesmo, como tem gente que afirma, invertendo a inexistência do racismo, o mais racista do mundo? Bem, não exatamente. E sim, dá pra quantificar o racismo. Não perfeitamente - digamos que dê pra ver a sombra na parede da caverna. Já é mais que nada. O último gráfico deste primeiro post, assim, olha pra duas dimensões do racismo; vamos chamá-las de vertical e horizontal. Racismo horizontal é o quanto as pessoas se misturam ou não. Aqui pegamos a segregação residencial, mas ela serve razoavelmente como indicador pra outras segregações que, como essa, se baseiem em negros e brancos (ou quaisquer outros grupos) sendo grupos diferentes, separados. E vertical seria o quanto existem diferenças de renda, que aqui serve como indicador imperfeito de status em geral, entre os grupos.


Como dá pra ver, a diferença salarial entre negros e brancos no Brasil é muito maior do que nos EUA; em compensação, a segregação racial é muito menor. Em outras palavras, o brasileiro negro tem mais chance de ter um vizinho branco, mas menos chance de ser chefe de um branco. Na África do Sul, medo. Só que - ok, este é um post de como gráficos podem ter várias interpretações e dados não são "fatos" autoevidentes tanto quanto sobre racismo - essa diferença não foi "calibrada" pela alta propensão da sociedade brasileira à diferença salarial, de modo geral. Vejamos a diferença entre salários de juízes e guardas de trânsito, duas funções estatais, e dentro mais ou menos da mesma função do Estado, determinados em bloco, ou seja teoricamente sem a influência do racismo:

Feita essa correção, ainda dá pra falar em racismo vertical mais intenso no Brasil que nos EUA? Como nem eu nem ninguém fez essa conta, que seria bastante complexa de fazer (deflacionar pelo índice de gini, comparar com outras diferenças de renda por grupo social, são várias opções possíveis)  vamos ter que voltar pro achismo: eu diria que sim, de olhada, simplesmente porque a diferença é muito grande para atribuir apenas à propensão de diferença, e porque a diferença entre a renda de um homem negro e de uma mulher branca é maior. Mas inda precisa cavoucar mais. Quando conseguir, faço o segundo post. 

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