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17.11.14

Welcome to the jungle

Nos próximos dias, os paulistanos começaremos a beber água do 2º volume morto. Parêntese: O que é o volume morto, e por que a expressão correta é segundo volume morto, e não segunda cota do volume morto? Ora, "segunda cota" implicaria, como reza a propaganda oficial, numa reserva técnica, cujo uso só é restrito por um protocolo, uma autorização da ANA para captar mais um pouco duma reserva singular. Não é o caso. Uma represa é um vale que foi inundado; o volume morto, a área desse vale que fica abaixo das comportas de captação, é deixada lá por três principais motivos, que depois da construção viram três motivos para se mantê-lo sempre: 1) Pela geografia da represa, é difícil simplesmente situar as comportas o mais baixo possível. Este é só contingente, e corresponderia à idéia da "cota." Só que... abaixo do volume morto, o vale não é uma tigela oval e uniforme. São vários pequenos lagos que se formam; frequentemente, o nível da comporta é o mesmo que o nível mais baixo em que se pode falar de um único lago da represa. Por isso, para captar cada volume morto, são necessárias obras de terraplanagem. 2) Pela absorção de água do solo ser menos previsível do que a subida de água num reservatório, uma gradação que mantenha o solo saturado de água torna as coisas mais previsíveis; observe-se que o nível da Cantareira continua baixando mesmo com chuva.  3) Pela manutenção da qualidade da água, filtrando os poluentes carreados pela chuva seja pela decantação no fundo, seja pelo ecossistema funcionando.

Relacionada a esta última função, de todas as preocupações quanto à crise do sistema de abastecimento de água a que mais encontra eco é aquela que fala dos riscos de se beber a água. Curiosamente, também é das menos imediatas; os níveis de poluentes observados na água do volume morto são acima do ideal, mas ainda abaixo do limiar de risco, pelo menos por enquanto; ao contrário das represas do lado sul da metrópole paulistana, ou do vale do Paraíba, as represas da Cantareira estão majoritariamente em áreas rurais e pouco adensadas, com poucas fontes poluidoras. Sequer é a qualidade da água do volume morto o principal problema de qualidade da água da Sabesp; muito pior é a pressão intermitente diária, que permite que poluentes e micróbios do chão entrem nos canos subterrâneos (dos quais eram bloqueados pela alta pressão) e sejam, diariamente, varridos e levados às torneiras.

Vão muito abaixo na hierarquia de preocupações, os efeitos, muito mais graves, sobre o meio ambiente, a economia, ou o abastecimento futuro; precisamos preservar nossos preciosos fluidos corpóreos. Essa prioridade está longe de ser jabuticaba paulistana; é comum mundo afora. Fale que brinquedos chineses destinados a crianças americanas são produzidos em laogai, campos de trabalho prisioneiro-escravo, e a indiferença (ou aquela indignação de internet que é seu sinônimo mais estridente) será a regra; fale que os brinquedos chineses feitos em campos de trabalho escravo contém alguma substância tóxica, e governos se movimentarão, pessoas serão presas, a Justiça se pronunciará altissonante e divina.

Um dos casos mais tristemente hilários desse fenômeno ocorreu com o escritor americano Upton Sinclair. No auge da pujança industrial de Chicago, aquela que Carl Sandburg chamava de City of Big Shoulders*, Upton escreveu The  Jungle, um livro que poderia traquilamente ombrear-se com os clássicos da literatura americana (na Amazon perde feio, é só o 4,966º mais vendido, vs. o 136º lugar de To Kill a Mockingbird). A idéia dele era antes de tudo denunciar as condições horrorosas a que eram submetidos os imigrantes que trabalhavam em todos os abatedouros que fizeram de Chicago a 2ª Cidade dos EUA, com seu protagonista Jurgis que, do alto de seus dois metros de altura e nome gutural, enfrenta cada um dos muitos reveses que o destino lhe atira com a frase "trabalharei mais duro," até morrer de tanto trabalhar. Jurgis sofre assédio moral no trabalho perigoso, mal pago, e sem assistência o tempo todo; sua mulher é estuprada seguidamente pelo chefe e morre no parto; o filho morre afogado brincando na rua-valão... e aí por diante; a força do livro está justamente  em conseguir ligar o instinto de olhar acidente no leitor, de modo que a sucessão de horrores prende ao invés de cansar. The Jungle era uma denúncia, e todo montado em cima de uma descrição vívida e realista do horror da revolução industrial. Causou, como queriam Upton e seus companheiros no jornal socialista Apelo à Razão, um pusta escândalo. Só que... ao invés de se indignar com a vida levada por Jurgis e Ona, as pessoas se indignaram com as nojeiras descritas, e a possibilidade de contaminação dos alimentos. Nossos preciosos fluidos corpóreos. O livro foi indiretamente responsável por criar a FDA; 108 anos depois, boa parte dos americanos ainda têm um Direito ao Trabalho.






*In full:


Hog Butcher for the World,
   Tool Maker, Stacker of Wheat,
   Player with Railroads and the Nation's Freight Handler;
   Stormy, husky, brawling,
   City of the Big Shoulders:

They tell me you are wicked and I believe them, for I have seen your painted women under the gas lamps luring the farm boys.
And they tell me you are crooked and I answer: Yes, it is true I have seen the gunman kill and go free to kill again.
And they tell me you are brutal and my reply is: On the faces of women and children I have seen the marks of wanton hunger.
And having answered so I turn once more to those who sneer at this my city, and I give them back the sneer and say to them:
Come and show me another city with lifted head singing so proud to be alive and coarse and strong and cunning.
Flinging magnetic curses amid the toil of piling job on job, here is a tall bold slugger set vivid against the little soft cities;
Fierce as a dog with tongue lapping for action, cunning as a savage pitted against the wilderness,
   Bareheaded,
   Shoveling,
   Wrecking,
   Planning,
   Building, breaking, rebuilding,
Under the smoke, dust all over his mouth, laughing with white teeth,
Under the terrible burden of destiny laughing as a young man laughs,
Laughing even as an ignorant fighter laughs who has never lost a battle,
Bragging and laughing that under his wrist is the pulse, and under his ribs the heart of the people,
                   Laughing!
Laughing the stormy, husky, brawling laughter of Youth, half-naked, sweating, proud to be Hog Butcher, Tool Maker, Stacker of Wheat, Player with Railroads and Freight Handler to the Nation.


Um comentário:

Marcus Pessoa disse...

Essa história sobre a reação ao livro do Upton Sinclair me lembrou alguns comentários que surgiram na época em que se mostrou as condições em que eram fabricadas as roupas da Zara.

Muita dondoca se preocupou mais se as roupas não estavam contaminadas pelos péssimos ambientes onde era costuradas...