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12.3.14

Semântica

Uma das consequências das redes sociais é o acirramento dos discursos. Não há mais quem discorda civilizadamente, e o adversário corre o risco de virar rapidamente o demônio, caindo na velha lei de Godwin. E se alguém pontua fora da curva, mostra alguma simpatia ou tentativa de entender o outro lado - presto, é um quisling redivivo, um traidor do movimento. Véi. E se reclama-se desse radicalismo, ouve-se que é essencial ser radical, que sem mudanças radicais não se consegue nada, que a radicalidade é uma necessidade. Bem, eu concordaria, só que acho que tem uma pequena confusão semântica, com dois significados bem diferentes de radical sendo empregados, um para defender o outro. Chamemos de radicalidade e radicalismo.

Radicalidade é do que se fala quando se fala em mudanças radicais; é "ir à raiz do problema." Alguém que pense, por exemplo, ser necessária uma revolução socialista é radical. Numa chave menor, alguém que pense em dobrar os impostos pra implantar um estado de bem estar também. Não é privilégio da esquerda, claro - um anarcocapitalista ou defensor de imposto único também são radicais. Radicalidade, portanto, seria uma posição em relação à política ou à sociedade. Deixando claro que não acho que radicalidade, apesar de ser o sentido que sim tem mais simpatia minha, seja um bem-em-si (nazistas são radicais), nem imune à crítica (uma posição radical é frequentemente uma posição hipócrita, pouco realista, ou contraditória).

Radicalismo é uma característica do tom da discussão, mais do que da posição nela. Assim, é radicalismo, por exemplo, fulanizar o debate, falando mais da incúria de tal ou qual pessoa ou grupo do que da discordância com suas opiniões e posições; no limite, é a demonização, em que a única coisa possível é destruir fulano, depois do que entraremos felizes na Cocanha, da qual só estamos alijados porque estes sujeitos (obviamente mal intencionados) estão de propósito ferrando conosco. É a abdicação da idéia, sequer como objetivo vago, de que a intenção do debate é convencer o adversário; a intenção é gritar, reforçar o próprio sentimento de grupo, e submeter o adversário pelo volume. O mais próximo que se chega da idéia de convencimento é o objetivo de envergonhar o outro por suas posições nefastas.

Reparem que os dois não são ligados. Pelo contrário, o personagem do ano 2013 das redes sociais, o coxinha, é basicamente um centrista radicalista, alguém cujas posições políticas são banais (contra a corrupção, a favor da educação, etc) ou, quando não, próximas do centro (a favor de aumentos salariais, a favor da dureza contra o crime), e  cuja forma de expressá-las é radical, raivosa, injuriada, demonizante. É tudo culpa do PT/PSoL/PMDB/Sarney/Alckmin, quem seja. Só uma anta rematada não percebe que estou certo, e qualquer ressalva ou ponderação é ímpia, quase criminosa. A divergência, então, só pode ser coisa de quem é comprado, corrupto, criminoso mesmo. Vide, por exemplo, os boatos de que o PT e a "turma dos direitos humanos" seriam "mancomunados ao PCC," pela parte da direita, ou pela parte da esquerda a idéia de que metade do orçamento federal é entregue aos bancos.

O coxinha, claro, não é o único; se radicalismo e radicalidade não são xipófagos, tampouco se repelem; nem a radicalidade é algum dado-em-si, mas depende antes de diversas métricas diferentes. Cada uma será importante para alguém, e menos importante para outros. A radicalidade aos próprios olhos pode, sim, ajudar ainda mais a consolidar o radicalismo, a falta deste implicaria uma traição àquela, uma traição do movimento. E a idéia de que "nós" os poucos, os puros, os eleitos estamos ameaçados pela corrupção da Babilônia que nos cerca não é, curiosamente, incompatível com a idéia de que as massas só aguardam um sinal para se erguerem junto conosco.

Não estou, aqui, suspirando por uma política de cavalheiros whig, oitocentista, em que não há grandes divergências porque estamos todos dentro do mesmo objetivo e da mesma classe. Ou, melhor dizendo, com uma imagem estereotipada do século XIX anglo-saxão, já que ninguém que tenha lido Thompson, Saki, ou Mark Twain poderia achar que um dia existiu essa política polida dos aristocratas. (O espaço entre os lados no parlamento inglês é da largura de um florete mais um braço...) Claro que política inclui sim emoção, inclui xingos, inclui porrada (geralmente só figurada). Nem estou dizendo que a recusa a transigir, a compor forças, está a priori errada - muitas vezes é justíssima, e até eficaz. Se estou propondo alguma coisa, é digamos um pessimismo esclarecido. Recusar-se a pensar que com a saída "deles" do poder estará tudo resolvido, e por isso mesmo aceitar, não a composição, muito menos a aliança, mas o diálogo com "eles." Recusar-se a pensar que nós somos intrinsecamente melhores, ao invés de apenas termos opiniões e idéias que reputamos melhores. Porque achar que a simples saída Deles ou mesmo acesso Nosso ao poder vai resolver as coisas é ter como destino a decepção. Repetida. Talvez, também, eu esteja suspirando por uma política centrada em pautas (o que queremos) mais do que em afetos e desafetos (quem odiamos).

 Se se pode fazê-lo olhando pra situação ucraniana, em que um autocrata stalino-tsarista e seus capangas enfrentam os capangas (inclusive neonazistas) do império, por que não no próprio quintal? Winston Churchill não era exatamente um traidor do movimento anticomunista, mas definiu assim a coisa: "fazer 'jaw-jaw' ao invés de 'war-war." E pra deixar bem claro que isso não significa abandonar a radicalidade, exemplos dessa política de pautas muito bem-sucedido no Brasil são o MST e o MTST. Que não se avexam de negociar nem com Kassab (foi ele que não quis) nem com a multinacional de celulose Fibria (ela quis) se for o caso.

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