Um duplo exórdio, antes de continuar o argumento principal: concordo plenamente com a legitimidade da violência popular contra o Estado, que é este que deve temer seu povo. Mais, que essa legitimidade não se aplica apenas ao Estado, mas a todas as instâncias do Poder. Por isso, inclusive, vou além da maioria das pessoas que estão do lado dos manifestantes e não considero a morte do cinegrafista - que não era um neutro relatando o que acontecia, mas um representante da grande mídia, inimiga dos manifestantes - um assassinato. Lamentável, sem dúvida nenhuma, como é a morte de qualquer ser humano, mas não é mais um assassinato do que as mortes causadas por soldados em guerra; é uma morte ocorrida no contexto de uma luta coletiva, e não individual, tida como legítima por seus membros. Se você considera estas também assassinatos, talvez - provavelmente - concordemos, cristãmente. (E, claro, qualquer comparação da violência pelos manifestantes (não só os black blocs) e a polícia é uma falsa equivalência do tamanho de um bonde. A polícia brasileira mata, aos milhares, e por execução, não como dano colateral em batalhas campais.) Se você considera que a guerra em questão não é uma guerra justa, ou que a mídia não é parte da estrutura opressora do poder - bem, eu de novo não acho que guerras em geral são coisa boa, e acho que ser parte da estrutura de poder é bem diferente de ser um soldado atirando em você; mesmo nas guerras 100% de verdade entre os estados, atirar em não-combatentes, ainda que sejam "do outro lado" é desencorajado. Mas são contextos e estados mentais bem diferentes, é o que quero dizer. Se se aceita "dano colateral" da boca de um general, não há por que chamar esse dano colateral de assassinato das gargantas duma turba (de novo: e vice-versa).
Feito esse exórdio, passo para a questão que me interessa mais, que é a da utilidade. Quando teve a grande manif no Largo da Batalha, aquela à qual se seguiu a revogação do aumento das passagens em SP, muita gente denunciou o material de construção largado de véspera no Largo, sem tapume em volta. O consenso era de que se tratava de armadilha da PM, para que as pessoas pegassem e cometessem atos violentos, justificando a repressão. Em retrospecto, era provavelmente histeria nossa, e foi só coincidência (aquela porcaria de obra não acaba nunca). Mas o espírito da idéia - que, repito, perpassou aquelas primeiras manifestações, que se multiplicaram justamente a partir da percepção delas como não-violentas era de que violência seria jogar o jogo da polícia. Não creio que essa percepção (repito, difusa, generalizada, e horizontal) estivesse errada. O próprio Gandhi, mais famoso líder de ações não-violentas, com o ligeiro impacto da independência da maior democracia do planeta, não era um advogado da não-violência apenas por convicção religiosa de jaina (ele nem era jaina, na verdade). A questão é "o que pode funcionar melhor."
A violência, a ação direta, é o sonho da polícia, como foi reconhecido pelos boateiros do Largo da Batata. Porque a ação direta propriamente dita (o terrorismo popular contra o Estado) não levará a uma vitória contra as forças da repressão, a não ser que se esteja num momento de fermento prérevolucionário (a Economist tentou quantificar esse estado de fermentação, sem tanto sucesso). A violência, fora desse contexto, pode fazer sentido íntimo para os próprios manifestantes, como queria Franz Fanon, de libertação, de descolonização. Mas não traz mudança política, ou pelo menos não no sentido que pretende trazer. Nem o povo que via sua catarse na violência contra a PM, que reclamava de qualquer crítica como "governismo," ou simplesmente censurava a insuficiente radicalidade alheia, ignorava isso de todo. Não fosse isso, não renegaria toda e qualquer evidência de violência concreta como obra de P2s e outros agents provocateurs, ao mesmo tempo que louvava a violência abstrata. E sim, acho que o entusiasmo generalizado entre a esquerda e a mómenos-esquerda indignada de facebook pelos bbs ajudou a por lenha na fogueira. Ninguém é black bloc essencialmente, nem se autodesignar bb significa sempre um mesmo continuum de força em toda manifestação.
Não adianta muito denunciar que a grande mídia e governos manipulam e distorcem as notícias em proveito próprio. Bem, dã. Eu faria o mesmo. OK, não faria, mas eu não seria um bom editor de jornal. Aliás, essa renúncia, junto com a confusão de radicalidade com maniqueísmo, leva até a chamar de ilações uma reportagem da revista Época justamente de que o político fluminense Garotinho estaria inserindo seus próprios agents provocateurs em protestos. (Em que isso é defender os manifestantes? Só são inimigos os agents provocateurs da polícia oficial, e não os das milícias com quem Garotinho já foi acusado de ser conectado?) Do mesmo jeito, vi chamarem o deputado e candidato recente a prefeito Marcelo Freixo de pelego por se distanciar da violência nos protestos, além de negar a rocambolesca acusação que lhe foi feita pela Globo. Ora, se Freixo depender unicamente da esquerda radical para se eleger, volta a ser procurador ano que vem. O jogo a ser jogado no momento se dá num caldo de cultura brasileiro que é profundamente legitimador da violência autoritária, mesmo por quem a sofre. É um jogo em que mesmo a esperança de que a violência, provocando uma radicalização da brutalidade policial, a exporia, não é muito alentadora - e não só porque todas as informações serão manipuladas, e o poder de informação ou desinformação anda junto com o poder estatal e econômico. Paradoxalmente, um jogo em que a violência não funciona em parte justamente porque a violência é tão legítima, tão aprovada, tão onipresente.