Veja bem, não estou falando que não existem problemas no Brasil. Longe de mim ser Pangloss, e se fosse enumerar os problemas do Brasil, no plural, poderia ficar aqui o dia inteiro. O problema é com esse "O." Artigo definido singular. Tem circulado pela internet recentemente o texto do americano (a nacionalidade é importante porque ela é invariavelmente especificada por quem repassa) Mark Manson que explica que
"Não é só culpa da Dilma ou do PT. Não é só culpa dos bancos, da iniciativa privada, do escândalo da Petrobras, do aumento do dólar ou da desvalorização do Real.
O problema é a cultura. São as crenças e a mentalidade que fazem parte da fundação do país e são responsáveis pela forma com que os brasileiros escolhem viver as suas vidas e construir uma sociedade.
O problema é tudo aquilo que você e todo mundo a sua volta decidiu aceitar como parte de 'ser brasileiro' mesmo que isso não esteja certo."
Noves fora os lustros de autoridade dados a um texto bastante primário apenas porque o autor vem dos EUA, ele se inscreve numa tradição comprida, bem anterior às redes sociais, de busca pelO Problema do Brasil. Por uma única explicação simples que explique por que fomos barrados do paraíso. De preferência tão simples que caiba numa frase, por mais que a frase venha com uns textos em volta (este do "americano" é até curto; foram escritos livros de centenas de páginas com O Problema.) E bem, essa busca vai render infinitamente pelas redes sociais, simplesmente porque ela se baseia numa falácia e a responde com outra. Pra usar um jargão, ela é não-falseável. Não dá pra provar que seja mentira essa declaração - e, por falta desse teste, o valor de verdade também é nulo.
O problema desse tipo de texto começa pela petição de princípios que é a pergunta "por que o Brasil não deu certo." Essa pergunta, pra início de conversa, precisaria definir o que é "dar certo." Geralmente, é "atingir o nível de riqueza dos países centrais." Não digo de "civilização," porque a "civilização" dos países centrais é frequentemente idealizada. Exemplo de hoje mesmo:
Ora, em Tóquio metrô também inunda. E em Nagóia. E em Osaca. E em Nova Iorque, Toronto... isso foi o resultado de uma busca no google de dois segundos. Em Nova Iorque e Nagóia, inclusive, com não apenas os trilhos inundados, como metros de água cobrindo a própria plataforma, evacuada às pressas - e em na maioria dessas cidades não chove como chove no Rio de Janeiro. E esse é um dos componentes da petição de princípios, frequente se não inevitável: a glosa dos problemas do Primeiro Mundo, a imaginação da utopia terrenal como existente alhures, do mundo do país X como representando seja o ideal, seja o padrão da humanidade. Mas não é necessário: O Problema pode se resumir à diferença de riqueza entre o Brasil e os países mais ricos, sem precisar necessariamente de dizer que esses países ricos são a Terra Sem Medos.
Ora, O Problema é uma falácia completa, que depende duma espécie de inversão do Destino Manifesto americano, que poria os EUA e sua hegemonia sobre o mundo como culminação natural dos planos da Providência. O Brasil seria, por outro lado, a Cidade Obscura no Buraco, uma cloaca fétida que por conta dos próprios pecados não logrou chegar ao brilho do resto do mundo. Não é muito difícil ver o problema com essa imaginação, e é essencialmente o mesmo do Destino Manifesto original: não resiste a uma alargada de vistas, seja ela sincrônica ou diacrônica, pelo espaço ou pelo tempo. A trajetória do Brasil, longe de ser uma trajetória única de fracassos, é mais ou menos a trajetória do espaço no qual se encontra inserido, a interseção entre o Cone Sul e a América dos Escravos. Numa escala mais vasta, tem similaridades com a trajetória de toda a periferia do sistema-mundo que se desenha, centrado na Europa, desde que esta conquista a América dizimada pelas doenças eurasiáticas e implanta, seguidamente, o tráfico negreiro atlântico, a revolução industrial, e o imperialismo também sobre África e Ásia. Hora da figurinha de novo: estes mapas mostram a evolução dos PIBs mundiais.
Deu pra reparar num padrão, né. O Brasil não começa igual e depois fica pobre, mas já começa bastante abaixo dos países da Europa (e sua extensão transatlântica), e mantém-se mais ou menos na mesma "categoria" desde então. Até melhora um pouco, dentro desse campo; era colega da Bolívia e hoje é do México. Os países que, fora desse núcleo do Atlântico norte, conseguiram se ombrear a ele são pouquíssimos: são eles a exceção, e não o Brasil. A situação deste não é excepcional, trágica, horripilante; é banal. E mesmo os países que escaparam à regra comum são exceções bastante contingentes, que dependeram de condições geopolíticas complexas, e não de algum tipo de recompensa divina pelas virtudes de seus cidadãos. Os dominions brancos do Reino Unido, com acesso direto ao maior mercado do mundo e uma proporção cidadão-território enorme (às custas do genocídio da população aborígene, e sem a população de descendentes de escravos junto). A tigrada asiática, Japão à frente, com a combinação pós-guerra de carradas de dinheiro americano com sociedades e territórios feitos quase tabula rasa. O Japão um pouco antes disso, na era Meiji - que ainda é um milagre econômico à busca de causas, ou Uma Causa.
Sim, Uma Causa. Porque explicações reducionistas dessa diferença - mais bem situada entre o Atlântico Norte e o Resto - também são comuns, desde a banalização de Max Weber (sendo um pouco menos camarada, desde o próprio). Max Weber esse que situava a China confucianista, que atravessava quase um século de anomia e crise quando ele escreveu, como quase antítese do virtuoso espírito capitalista protestante. Ora, um século depois com a ascensão da tigrada asiática, neoweberianos explicaram como na verdade o confucianismo é uma forma ainda superior de virtude capitalista do que o protestantismo... E disso podemos falar duas coisas: primeiro, do nível temporal que falei. A busca por uma explicação para O Problema situa, sempre, esse problema num presente sobredeterminado, que não poderia ter saído de outro jeito. E sim, poderia. A história do mundo não é composta de Essências Puras de países e civilizações, como se fôssemos parte de um jogo de Civilization. Para ser, teríamos que ter as mesmas sociedades através das eras, que nem no jogo do Sid Meier. Sociedades se transformam, e profundamente, tanto pelas tais questões geopolíticas quanto pelo mero acaso. E segundo, que via de regra a falha social que se observa é principalmente a projeção dos próprios conceitos de certo e errado (claro que o tal Mark Manson é infinitamente menos sofisticado que Weber). Assim como o confucianismo pode ser causa do atraso e do progresso, o individualismo criticado por Manson também já foi identificado como causa do progresso americano, contraposto a um coletivismo latino.
Disse que são comuns as explicações para a diferença entre the West e the Rest, mas cabe aqui uma ressalva: são comuns no Ocidente, nos países ricos, que se percebem como coletivo à parte. Nos países periféricos, mais uma vez se pode ver como o Brasil não é excepcional: não é excepcional nem em procurar explicações particulares para o "seu" fracasso e se contrapor ao Ocidente, seja em termos dO Que Deu Errado, desse destino manifestamente ruim, quanto numa reação a ele nativista, que exalta as virtudes simples do povo não-ocidental. Pode-se ver muita coisa parecida na Rússia, no resto da América Latina, no Japão de antes do milagre, na Índia, no Oriente Médio, na Indonésia, na Europa do Sul antes da União Européia... em suma, em toda a periferia global, cada país se relaciona, no imaginário, antes com o centro do que com o resto da periferia, e no limite se vê apenas em contraste com esse centro. E busca O Motivo no caráter nacional, em algum evento histórico fatídico, em alguma instituição terrível, sabe-se lá no quê. O Brasil não é excepcional nem na doença de Nabuco; o complexo de vira-lata poderia ser doença de Nabucovsky, Nabukko, N'abuk, ou Nabucón.
Cabe, também, um esclarecimento que deveria parecer óbvio, mas parece que não é: renda e riqueza são coisas diferentes. Riqueza é renda acumulada, e gera mais renda. Países que são ricos há mais tempo têm já uma riqueza acumulada enorme, e não estou falando de ouro e pedrarias, ou números numa conta bancária, mas de infraestrutura e capital humano. Digamos que por um milagre o Brasil conseguisse elevar seu gasto público por habitante ao mesmo nível da Alemanha amanhã (isso representaria quintuplicar o atual nível, e ter um gasto público maior do que a renda per capita total do Brasil de hoje). Ainda demoraria muito tempo até esse gasto se traduzir em gares e viadutos de trem, em pessoal formado em universidades, em laboratórios de pesquisa, em edificações de qualidade, ou no que mais fosse, do mesmo jeito que se você amanhã ganhar o dobro do que ganha não vai poder construir uma casa duas vezes maior no mesmo dia. E quando se observa as diferenças entre o Brasil e os países centrais, o que está sendo observado não é a diferença de renda apenas, mas uma combinação dela com a diferença de riqueza.
Cabe, também, um esclarecimento que deveria parecer óbvio, mas parece que não é: renda e riqueza são coisas diferentes. Riqueza é renda acumulada, e gera mais renda. Países que são ricos há mais tempo têm já uma riqueza acumulada enorme, e não estou falando de ouro e pedrarias, ou números numa conta bancária, mas de infraestrutura e capital humano. Digamos que por um milagre o Brasil conseguisse elevar seu gasto público por habitante ao mesmo nível da Alemanha amanhã (isso representaria quintuplicar o atual nível, e ter um gasto público maior do que a renda per capita total do Brasil de hoje). Ainda demoraria muito tempo até esse gasto se traduzir em gares e viadutos de trem, em pessoal formado em universidades, em laboratórios de pesquisa, em edificações de qualidade, ou no que mais fosse, do mesmo jeito que se você amanhã ganhar o dobro do que ganha não vai poder construir uma casa duas vezes maior no mesmo dia. E quando se observa as diferenças entre o Brasil e os países centrais, o que está sendo observado não é a diferença de renda apenas, mas uma combinação dela com a diferença de riqueza.
De novo: não que não haja problemas no Brasil, e mesmo aspectos da cultura nacional que me desagradem; os há muitos, alguns mais antigos outros mais recentes, alguns mais simples outros mais complexos, simples de diagnosticar e difíceis de prognosticar... problemas mis, de todo tipo. Mas nenhum desses problemas, e muito menos uma característica moral nebulosa (com direito, no texto de Manson, a um No True Scotsman de cara), pode ser considerada responsável pelo país não ser uma exceção à regra que escapou do lugar aonde está inserido no sistema-mundo capitalista. E que esses problemas muito raramente são "do Brasil, e mesmo quando são têm antes explicações históricas complexas do que simplesmente representam qualidades morais emergentes. Para pegar um exemplo que me incomoda particularmente: a altíssima legitimidade conferida à violência, desde que esta seja considerada justa, e a tendência a considerar justa a violência cometida pelo aparato de Estado, é característica comum nas Américas, e especialmente nas áreas do antigo complexo de latifúndios escravocratas. Idem a desigualdade (e sim, a desigualdade é uma característica cultural, e não só econômica: no Brasil, mesmo pessoas de esquerda consideram normal uma diferença de renda grande entre professor universitário, professor primário, e faxineiro, eg)... melhor parar por aqui; como disse, se for falar de cada problema do Brasil este textaum vira um Oxford English Dictionary.
PS: parte da construção desse tipo de texto fala dos "recursos naturais infinitos" do Brasil. Ora, a grande grana com exploração natural no começo da revolução industrial se dá à base da explosão da demanda por produtos de clima temperado, não cultiváveis na maior parte do país. E os solos tropicais, leves, ácidos, e cheios de ferro, são pobres, e piores ainda pra tentativa que se fez por muito tempo de simplesmente reproduzir a agricultura do norte da Europa (de solos fundos, pesados, e básicos, com chuva fraca e constante e pouco sol) nele. O minério brasileiro é relativamente abundante, mas nisso o Brasil (pop. 200 milhões) está no mesmo patamar da Austrália (pop. 20 milhões). As cidades brasileiras, longe de não verem desastres naturais como reza a mitologia, estão sujeitas a tempestades tropicais bem mais intensas do que qualquer evento climático de zonas temperadas, e entre o Mato Grosso e o Rio Grande do Sul a tornados; e isso combinado com os tais solos rasos e leves significa deslizamentos a dar com pau. O controle de endemias tropicais é complicado (e determinou a sorte de impérios, como narra o excelente Mosquito Empires).
Além disso, a topografia brasileira é linda de se ver, mas pra transportar cargas é simplesmente horrorosa. Enquanto nos EUA se tem a dupla hidrovia do Misssissippi-Missouri e dos Grandes Lagos-São Lourenço drenando as grandes planícies e o meio-oeste, enquanto a Argentina e a Rússia têm rios preguiçosos e amplos drenando planícies quase talhadas a plaina pelos deuses, no Brasil cisamazônico é quase literalmente tudo morro, com uma muralha escarpada separando a estreita (ou inexistente, em alguns trechos) planície costeira do planalto. Não é à toa que São Paulo fica a duas vezes a altitude das grandes cidades suíças (e Curitiba e Brasília ainda mais alto). E não, não dá pra falar do Japão como contraponto, porque o Japão não depende do transporte terrestre desde antes da revolução Meiji; as grandes cidades estão todas em planícies costeiras, o país é um arquipélago de povoamento dentro do arquipélago de pedra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário