Não, esta não é a "traição" do PMDB ao PT. Não se pode falar em traição duma relação de confiança que nunca existiu; o condomínio PT-PMDB no poder sempre foi uma coabitação tensa e guardada. As piadas de que Suplicy, nas inúmeras audiências negadas, queria alertar Dilma sobre Temer são só isso: piada, e tanto Dilma quanto Lula sabiam que Temer era um risco quando o aceitaram como vice-presidente. Fala-se da fábula do sapo e do escorpião de Orwell, mas o sapo tinha sido convencido de que o escorpião não o picaria, e não é o caso do PT, que aceitou o escorpião apenas por falta de opções. A analogia mais próxima seria com os Aliados da Segunda Grande Guerra: ninguém acha que o início quase imediato da guerra fria tenha sido "traição" por Truman ou Stalin. Ninguém - pelo menos não ninguém com ouvidos abertos - pensava que a velha oligarquia, da qual o PMDB é parte, tinha virado amiga do PT só porque fazia negócios com ele. A Andrade Gutierrez que o diga.
Mas houve, sim, um ator do qual se pode falar em traição, no sentido de quebra de expectativa, em relação ao PT, e esse ator é o judiciário (incluindo ministério público e polícia federal), no qual o partido via um aliado e que foi seu principal algoz. (Sim, mais ainda que imprensa ou a velha oligarquia.) Traição, mais ainda, porque, ao contrário da velha oligarquia cujo poder já estava lá, foi o PT que elevou a um real Poder da República a Procuradoria-Geral, cujo chefe em tempos idos era chamado de Engavetador-Geral da República. Foi o PT quem deu dinheiro e independência reais à PF, que antes era ferramenta a ser usada por figurões. E foi o PT quem nomeou um Supremo Tribunal independente. Alguém imagina Gilmar Mendes ou Ellen Northfleet condenando José Serra, mesmo com provas, quanto mais "porque a literatura jurídica assim o permite"?
Por que o PT fez isso, e por que isso se voltou contra o partido, é, acho uma questão simples: o partido que tem "dos Trabalhadores" no nome fez uma leitura liberal clássica das instituições públicas, esquecendo de questões de classe. Primeiro, acho que deve ser descartada a idéia de que a hipertrofia e independência concedidas ao aparato judicial foram resultado de "republicanismo" ou "boas intenções" genéricas do PT. Se o partido fosse essa virgem de Vesta, não teria cometido nada que permitisse à justiça se voltar contra ele.
Antes, arriscando um chute, o que o partido fez foi, ao prover de independência o judiciário (e cia. ltda.), trabalhar para construir essa independência de forma firme no funcionamento e nas mentalidades, evitando com isso que, uma vez perdendo nas urnas, o sucessor pudesse usá-lo contra ele. E fez isso desde sempre porque as repetidas vitórias do PT nas urnas estavam longe de ser favas contadas; só foram garantidas pela desconfiança popular de que o programa apresentado pelos adversários na propaganda eleitoral não era o verdadeiro, confirmada agora com o governo interino PMDB-PSDB. Acreditou que, sendo criada uma verdadeira noblesse d'état, essa aristocracia seria, se não amistosa, pelo menos neutra.
O que se viu é bem o contrário. Antes mesmo que o partido deixasse o poder foi caçado sem trégua pelo sistema judicial. Teorias de conspiração à parte (e mesmo como teorias de conspiração a maior parte delas peca por considerar a Lava-Jato um corpo com diretriz única e ordem unida), o que se pode ver é antes uma antipatia genérica contra o PT pela classe dos agentes da Justiça como um todo. (E por parte de uma fração surpreendente dos funcionários públicos, especialmente os mais bem pagos.) Isso ficou abundantemente evidente quando da nomeação de Lula como ministro da Casa Civil, momento em que choveram injunções de juízes afogueados, que só faltavam denunciar o comunismo lulopetralha nos autos.
E sinceramente, isso é perfeitamente natural. A classe média e alta, como um corpo, por mais que não sejam raras exceções individuais, não é simpática à classe trabalhadora, ou a partidos que se intitulem seus representantes, com exceção de pontos específicos na ideologia ou no tempo. Quando partidos de esquerda têm grandes votações de classe média, isso muito mais raramente deriva de simpatia a causas de esquerda do que de identificação desses partidos como "puros," dentro de uma oposição à sujeira percebida como a política atual. De novo: estou falando de maioria, de em geral. Claro que exceções são numerosíssimas. Mas não mudam o quadro geral. A política de aumento de salário, e portanto posição social, de funcionários públicos ter resultado num funcionalismo antipetista, longe de ser falta de gratidão ou traição, era inteiramente previsível. O Partido dos Trabalhadores caiu (o mais provável é que vá todo mundo pra cadeia, e só talvez acompanhados por Cunha e Aécio, e mais ninguém dos partidos oligárquicos) porque esqueceu de seu próprio nome. Não esqueceu "traiu," mas esqueceu na hora de pensar no que aconteceria.
PS Problema um pouco parecido aconteceu com a propaganda política de "nova classe média" ao invés de falar em "ascensão da classe trabalhadora." A velha classe média desdenhou da definição da Unctad usada, dizendo que era maquiagem petista e chocada com o valor baixo da renda da "nova classe média" (geralmente, sem se dar conta do quanto isso dizia que sua própria renda era um quinhão desproporcional da renda nacional), e a nova, bem, por que diabos classe média votaria em partido de pobre.
PPS La trahison des clercs é um livro da década de 20, de Julien Benda, que não tem muito a ver com o assunto aqui, mas que vale a leitura.
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