Comentei, no post sobre a busca de um Problema para o Brasil, sobre como a topografia brasileira pode ser bonita de se ver, mas é ruim para o desenvolvimento econômico. Pois bem, acho que essa declaração merece um pouco de qualificação.
Primeiro, o que já disse lá: a topografia do Brasil - ou melhor, do Brasil da costa sudeste e seu interior até a Serra do Espinhaço e o Rio Paraná, no qual se encontra a maior parte da população - é extremamente acidentada, mais do que o de quase qualquer região com população parecida. Deixa eu tentar desenhar (ou melhor, roubar uma imagem sobre o assunto da internet):
Não são apenas montanhas, são montanhas particularmente íngremes e altas, em termos de áreas habitadas. Há montanhas bem mais altas mundo afora, mas elas não são, em geral, objeto de ocupação humana densa - e, por coincidência (coincidência mesmo não é retórica), essas áreas de ocupação densa e altas estão quase todas em países pós-coloniais. São o altiplano andino e os planaltos de África e do México. Nem o Japão nem a Suíça, apesar das imagens de montanhas associadas a esses países, ocupam assim os morros; a Suíça (como a Baviera) não fica exatamente nos alpes, mas nos contrafortes deles, a metade da altura de São Paulo ou Curitiba. O Japão, então, se aperta quase todo nas pequenas planícies costeiras; a maior cidade de montanha não chega a meio milhão de habitantes. (E fica, de novo, a metade da altura de São Paulo.) E além de serem áreas de morro íngreme, são áreas de morro íngreme extensas. O que isso quer dizer, em termos econômicos, é que o Brasil é um lugar horrível de se fazer soluções logísticas modernas.
Sim, especificamente modernas. Porque a natureza, aí, sempre vai interagir com a tecnologia e as convenções e escolhas da sociedade pra dizer o que funciona pra quê. Uma topografia horrivelmente acidentada vai ser sempre menos prática de se usar pra transporte do que os terrenos ultraplanos da Argentina, EUA, ou Rússia, mas o quanto ela vai ser um estorvo vai depender da tecnologia. Para quem está andando a pé, o morro dificulta, mas não tão terrivelmente assim, e outros problemas podem ser piores; o calor ou frio inclementes, a floresta cerrada. Pra quem anda de carroça puxada por bichos, os problemas são em geral parecidos com os dos pedestres, mas os alagadiços e lamaçais se tornam piores - tanto a taiga russa quanto a pampa argentina, tão perfeitamente planos, estão cheinhas de brejos, que nos mares de morros brasileiros só se concentram em alguns pontos, todos próximos aos rios.
Rios esses, aliás, que foram desde sempre a principal artéria de transporte e comunicação (nos tempos em que as duas coisas eram sinônimas). E aqui já temos um problema de transporte em relação a outras regiões: os mares de morros significam rios encaichoeirados, em que volta e meia se tinha que descer a pé e carregar o barco, mas isso não é o pior: os morros mais altos, as serras do Mar e da Mantiqueira, estão justamente próximos e paralelos ao mar, no sudeste. Isso significa que, pra toda a área da bacia do Paraná, o desvio que se teria que fazer para chegar ao mar de rio é gigantesco. Isso não seria um problema hoje, para chatas (se fizessem canal e eclusa contornando Sete Quedas e transpondo Itaipu), empurradas por rebocadores diesel, mas para barcos empurrados com varas ou velas, em território ainda mal conquistado, significa que o Tietê e o Paraná no começo foram rios de bandeiras, de expedições guerreiras de caça de escravos, mais do que artérias de transporte.
Quando se introduz a locomotiva, os mares de morros significam um grande obstáculo a ela. Com a morraria toda, e muitas vezes com cidades localizadas em elevações bem distintas, o traçado da estrada de ferro ficou muito sinuoso. Trem não vence, sem esforços extraordinários, o mesmo tipo de gradiente, de ladeira, que um carro vence, o que significa que ele tem que ou fazer túnel-ponte-talude-viaduto ou contornar os morros. E quando a elevação é muito distinta entre a origem e o destino, nem o túnel-ponte é sempre viável, já que encurtar o caminho significaria aumentar o gradiente. Isso se reflete também na bitola, o espaço entre os trilhos; quanto maior, maiores e mais estáveis e rápidos podem ser os trens, mas também menos curvilíneo pode ser o traçado, e no Brasil, a maior parte das ferrovias é de bitola estreita. (O único grande país com situação parecida é justamente o Japão, com uma bitola de 1067mm contra o metro exato da brasileira, e com a exceção do trem-bala, que tem uma rede separada com bitola padrão internacional, de 1435mm.)
O resultado é que as estradas de ferro brasileiras, longe de terem sido maravilhas que ainda poderiam ser utilizadas e foram boicotadas, de forma voluntariosa, por JK ou FH, eram estradas cheias de curvas, pelas quais dificilmente um trem faria mais de 50km numa hora. Sim, havia uma idealização do automóvel, como no resto do mundo, no século XX, e uma visão dele como o sucessor natural do trem de ferro do século anterior. Mas além disso, a diferença de custo para se construir uma ferrovia em relação a uma rodovia com a mesma velocidade de projeto é muito maior no Brasil do que na maior parte dos países. Rodovias podem corcovear sobre os morros, porque os pneus agarram no asfalto com muito mais força do que aço sobre aço, e porque os veículos são bem mais leves (mesmo uma carreta bitrem é atirada longe quando tenta furar a passagem de nível e é atropelada por um trem); é o outro lado da moeda do trem gastar muito menos energia. E mesmo com esses entraves adicionais, houve sim tentativas, e até algumas construções reais, de expansão e melhoria da malha ferroviária bem depois do "momento pivotal" de JK. Sob a ditadura, se construiu a ferrovia do aço (que tem o maior túnel do Brasil, e era pra ser eletrificada) e a nova ferrovia de SP a Campinas, além da expansão das ferrovias de minério em geral (todas de bitola larga, ao contrário da maior parte das ferrovias antigas brasileiras).
Claro que topografia não é destino. Há milhares de outros fatores que influenciam no desenvolvimento dos transportes. Juros altos, por exemplo: ferrovias demandam mais investimento, mas têm menos custos correntes, o que significa que quanto mais juros, mais a balança pende pro lado da rodovia. A organização do território, que no Brasil ainda é um tanto arquipelágico, com cada região indo dar num porto, orientado pra fora e não pra dentro. E são muitos etceteras. Mas as montanhas belíssimas da serra do Mar, os mares de morros (que seriam ainda mais encantadores se não estivessem desnudos da mata atlântica), também cobram seu preço. O mito do Brasil com "infinitos recursos naturais, desperdiçados por um povo inferior," é, nisso como em tantas outras coisas, só um mito.
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