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7.3.16

O poder longe do trono

Uma curiosidade dos acontecimentos desta sexta feira foi que eles, inegavelmente parte central do drama do poder no Brasil, se desenrolaram bem longe dos salões do poder institucional central, em Brasília. Os envolvidos principais: um juiz de província e um cidadão privado, que da presidência guarda apenas alguns privilégios meio ridículos de ex-mandatário. (Cujo absurdo, aliás, numa nota particularmente surrealista, o Instituto Lula denuncia, acertadamente atribuindo sua criação a Fernando Henrique, mas não explicando por que, se são absurdos, Lula não os renega.)

E no entanto, a cena foi vista por muitos como um golpe, como uma reviravolta no próprio núcleo do poder, por mais que seja absurda a noção de golpe num ex-presidente. Não apenas pelos petistas que gritaram a palavra "golpe" com todas as forças. O gáudio com que a notícia foi recebida pela oposição de direita, desde antes até da operação se iniciar, com a nota de felicidade no twitter do diretor da Época Diego Escosteguy, Mais: a operação toda realizada pela Justiça, com um destacamento de homens trajados em camuflagem e armados de fuzis se deslocando antes da aurora para conduzir um homem para o aeroporto, parece mais típica de golpe do que de uma tomada de depoimento; nem são lá muito convincentes as explicações dadas pelo juiz Moro, que ora fala que era para proteger o próprio intimado (de quem, não diz), ora que seria para evitar tumultos causados pelo gênio agitador do PT (seria o primeiro caso de repressão de tumultos com fuzis de assalto, capazes de varar dez ou doze corpos de uma vez, na história recente).  E também não faz muito sentido a ideia de que o aparato militar se tratava de uma operação em conjunto com a mídia, para apresentar Lula como prisioneiro. Porque, a não ser que os "conspiradores" da Lava-Jato fossem muito idiotas, seria óbvio que a desproporção do fato angariaria antes simpatia. Não conferem, portanto, nem as explicações de um lado nem de outro.

Lavro aqui uma suposição que podem chamar de fantasiosa, então: os agentes da Lava-Jato agiram assim porque tinham a convicção, mesmo que inconsciente, de estarem sim se acercando do núcleo do poder, de estarem levando a cabo uma revolução, de certa forma. Para eles, estavam chegando perto  do real mandatário, não apenas de um ex-presidente. A convicção de que ainda é Lula quem governa e Dilma é dele só uma marionete não é restrita a eles, aliás: há denúncias repetidas quanto a essa situação, reclamando dos pronomes de tratamento que Dilma e Lula usam ou de seus encontros em geral.

No outro lado do proscênio, o juiz Moro também é, no mínimo, uma personagem mais poderosa do que o título de juiz federal de primeira instância poderia supor. Não julga ações que se lhe apresentam, mas julga, investiga, prende, mobiliza as massas para apoiar a Justiça, angaria apoio de empresários à sua cruzada, em todo o território nacional. Ao contrário de outros juízes Elliot Ness no passado, suas muitas ações margeando ou mesmo saltando pra fora do devido processo legal não são controladas pelas instâncias superiores do poder judiciário. Quando algum questionamento sobre elas chega ao Supremo Tribunal Federal, a impressão que se tem é de que antes o STF tem medo de suscitar a ira de Moro que o contrário.

Não seria a primeira vez na história, do Brasil ou do mundo, em que o poder real não se avizinhava do trono oficial. Essa é, afinal, a pré-condição básica de todo golpe, e de boa parte das revoluções. Mais, há casos aos montes mundo afora de situações como essa se perpetuando, não apenas em momentos de crise em que uma ordem institucional se dissolvia para aparecer outra como por décadas. O Japão talvez seja o país mais pródigo em poderes por detrás do trono; seja no Antigo Regime, em que o xogunato Kamakura via, em ordem crescente de poder e decrescente de importância oficial, coexistirem alguns ou todos da escadinha (imperador, imperador aposentado, regente imperial, xogum, xogum aposentado, regente, regente aposentado, e pai ou mãe do regente aposentado); seja em tempos mais modernos, em que o mando depois da revolução Meiji foi exercido, durante cinco décadas em que paulatinamente se criou um poder parlamentar, por uma pequena camarilha de funcionários sem grandes títulos ou inserção explícita nas hierarquias oficiais (a maioria da pequena nobreza e dos domínios, no sul, de onde saíra a revolução).

Mesmo no Brasil, foram frequentes as ocasiões em que se obedecia antes ao Ministro da Guerra que ao presidente. Hoje, a distância entre a forma da lei escrita e a realidade da lei aplicada pode ser vista em qualquer favela: não há, no Brasil, pena de morte em tempos de paz nem tribunais de campo em qualquer situação, mas as polícias militares aplicam, após julgamento em tribunais de campo, pena de morte em grande escala, provavelmente sendo o país em que (em tempos de paz) as forças do Estado mais matam no mundo: 5000 mortos por ano, mais que Arábia Saudita, EUA, e China. E não dá pra chamar isso de atividade criminosa de policiais mal preparados; se fosse, não seria apoiada e aplaudida seja pela população, seja pelos próprios órgãos oficiais, que inventam "medalhas por bravura" e alardeiam massacres na propaganda eleitoral.

Assim, a suposição de que as formas do poder constituído e as realidades brutas do poder (que, no fundo, é apenas a construção bastante efêmera de "a quem as pessoas, especialmente aquelas armadas, escolhem obedecer"), não deveria ser particularmente estranha pra nenhum brasileiro. Mas a pergunta é: é o que vemos? Lula é um genrô, dirigindo o país desde seu apartamento de classe média em São Bernardo, em quem Moro, junto com uma pouco clara oligarquia midiática, quase deu um golpe naquela manhã de fim de verão? Estamos em estado de fluxo institucional, no ocaso de uma ordem e geração de uma nova (oficial ou não)?

Acho que são boas perguntas. Mas, pra ser sincero, não acho que nada disso seja verdade. Moro não desafiou diretamente nenhum poder oficial, e Dilma consultar seu mentor político não significa obedecer-lhe; aliás, para que se falasse em poder distante do trono, seria necessário que Lula nem precisasse de passar pela corrente de transmissão de Dilma, e suas ordens fossem obedecidas em si. Os jornalistas que sonham com a intervenção militar ("constitucional," diriam os apalermados dos panelaços) estão apenas sonhando e praticando seu jornalismo à moda do Tennessee de sempre. O que temos é menos uma crise do que a fantasmagoria de uma crise.

Acho.

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