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15.1.16

Os vendilhões da indignação

Somos um país, talvez um planeta de indignados. "É um absurdo" é das frases mais comuns; uma charge argentina de alguns anos atrás mostrava um casal: um lendo alto no jornal sobre o cometa Shoemaker-Levy, que explodiria sobre Júpiter com a força de dez mil bombas atômicas. O outro responde: "Absurdo! Cadê o governo que não faz nada!?"  Alguém dirá que é melhor do que o conformismo, mas essa indignação fácil não é ativa, não é direcionada. Não é, em outras palavras, em nada diferente do conformismo. E é vendida, ativamente, o tempo todo, além de ser reforçada "digrátish" pela internet. Dois exemplos brasileiros:

A Folha anuncia Roupa doada a vítimas das chuvas em Paraitinga vai parar no lixo. Lendo a matéria, entende-se que

A) Como a tragédia teve repercussão nacional e S. Luís do Paraitinga é minúscula, as roupas foram em quantidade muito maior do que a suficiente para cada morador de lá ter um closet maior do que o da Angela Merkel.

B) As roupas em excesso, após a distribuição, foram endereçadas a vários galpões de empresários que se voluntariaram para encaminhá-las a entidades assistenciais em outras plagas.

C) O galpão em que as roupas apodreciam encaminhou a roupa que estava em boas condições para uma entidade de Campinas, e não conseguiu foi achar jeito hábil de se livrar das roupas já rotas, sujas, ou já mofadas.

Em resumo, é uma não-notícia. Talvez pudesse ser notícia "parte das roupas doadas a S. Luís do Paraitinga estava em mal estado." Mas é claro que isso não alcançaria a indignação fácil no mesmo nível da sugestão de que roupas doadas mofaram ao invés de ser entregues a seus destinatários de direito, reforçando a percepção de corrupção generalizada e que, por sua própria onipresença, leva ao desânimo, não à ação. (A Folha não menciona, por supuesto, nessa ação de desinformação, o partido da prefeita de SLP. Ganha um bico esponjoso e colorido quem adivinhar.)

Na outra ponta do espectro político, uma imagem recorrente nas correntes de email, facebook ou twitter da esquerda brasileira é esta aqui:


Olhem que estarrecedor! Quase a metade do orçamento brasileiro vai para o pagamento dos juros da dívida - ok, e amortizações, que devem ser outra variedade de juros em tecniquês. De qualquer jeito, é evidente que o governo títere dos bancos, se quisesse, poderia declarar a moratória, ou a redução dos juros, e incontinenti sobraria dinheiro para saúde, educação, e tudo o mais.

Pois bem, a imagem mente que nem uma matéria da Folha sobre São Luís do Paraitinga. "Amortizações" se refere à rolagem da dívida. Explicando: a dívida brasileira não é como uma dívida que tenhamos no banco, mas sim uma massa imensa de dívidas e títulos. Como o Brasil não tem superávit nominal, à medida que estes vão vencendo, são pagos e contrata-se igual quantidade de dívida, por mais 1, 2, 4 ou 20 anos. A isso chama-se "rolagem," e o efeito total no dinheiro disponível é zero. Para fazer a conta refletida no gráfico acima, integraram os pagamentos de juros - o dinheiro gasto efetivamente - e a rolagem ("amortizações"). Pôr a rolagem na conta de gastos é, mal comparando, como se você não pagasse a conta integral do cartão de crédito e contasse tudo que ficou devendo como gasto mensal, ao invés de apenas o que está pagando.

Ora, um gráfico equivalente da receita federal teria, pela mesma lógica, que incluir a dita cuja. Em outras palavras teria como maior fonte de receitas, com proporção similar à das despesas, "empréstimos bancários." Para ficar claro: ainda que decretasse uma moratória, com todos os efeitos negativos dela consequentes, o governo não teria quase o dobro do dinheiro de que dispõe, mas uns 10% a mais. A proporção do orçamento brasileiro gasta com juros da dívida é alta e vergonhosa, mas não chega nem à metade daquela mostrada nesse gráfico, e assemelha-se àquela gasta com a previdência.  Tentando explicar de outro jeito: o Brasil não está pegando 100 mariolas de imposto e dando 40 pros bancos. Ele está pegando 65 mariolas de imposto, 35 mariolas emprestado dos bancos, e pagando 40 mariolas pros bancos. Se declarar a moratória, como não vai ter mais banco dando dinheiro, ele não fica com 40 mariolas a mais, fica com 5. (Isso num ano normal; ano passado, com nada.)

É até uma questão de não subestimar a inteligência alheia nem crer na maldade abnegada: se a proporção fosse essa mesma, qualquer governante declararia a moratória, dobraria o orçamento disponível com uma canetada, e instauraria um Reich de mil anos. Dilma, Lula, e FH seriam não apenas perversos, mas perversos dispostos a sacrificar o próprio poder (e riqueza, se quiser ir por esse lado - imagine a Odebrecht com um orçamento da União dobrado) pra ferrar com o país.

Não que eu imagine, pela grita sobre a diminuição dos juros da poupança, que boa parte das pessoas de classe média que repassa esse gráfico, detentoras de poupanças e fundos de renda fixa, ficasse assim tão feliz com a moratória, ou mesmo queda acentuada dos juros (esta sim sendo uma excelente ideia). Ou alguém acha que na Suíça se ganha 6% ao ano em aplicação segura? Ou que os próprios títulos não estariam incluídos na tal moratória, e sim só os "dos ricos" (que sempre são os outros). Mas não seria só a classe média que sofreria os efeitos dum calote. A quebradeira bancária teria efeitos negativos em toda a economia do país - o que reduziria as receitas tributárias, anulando a vantagem de economizar as atuais despesas com juros. Nunca é demais lembrar: ao contrário do Equador ou da Grécia, no Brasil a maior parte da dívida é interna, não externa. É devida a instituições e pessoas brasileiras.

E pra deixar claro: em termos econômicos, a "auditoria cidadã," que é vendida como uma redenção da pátria que anularia a dívida contraída por meios escusos, seria apenas um calote com motivação política. Não estou dizendo que não houve dívida contraída por motivos escusos (segurar o dólar em 1998 pra reeleição foi no mínimo eticamente questionável), mas que a auditoria é tanto desnecessária quanto irrelevante. (E sinceramente, quem divulga o gráfico acima não é confiável. Ou entende como funciona dívida pública, e acha que os fins justificam meios desonestos, ou não entende.)

Primeiro a irrelevância: não sei se fui claro ao descrever a rolagem. O que ela significa é que a dívida que estamos pagando hoje NÃO é a dívida contraída por FH, Itamar, Collor, ou mesmo Lula, em sua maior parte. São papéis relativamente novos, contraídos para pagar a dívida que vencia. De novo a analogia do cartão de crédito (vamos ver até onde dá pra forçar sem que ela quebre): pense numa pessoa que tem dois cartões de crédito, e usa um para pagar o outro. Dizer ao banco Mansa Musa que a compra feita no banco Maeda estava errada, quando você só sacou dinheiro no banco Mansa Musa, vai fazer com que este perdoe a sua dívida? Agora imagine que não tem só Maeda e Mansa Musa nessa cadeia, mas entre eles o Fugger, o Médici, a Mendes, uns trocentos elos. Por que o banco com quem você pegou dinheiro ontem, pra pagar a dívida de antes de ontem, perdoaria essa dívida se você demonstrar que láaaa atrás a dívida original era ilegítima?

E a desnecessidade, que é até mais importante: se não se preocupar com os efeitos econômicos, o Brasil não precisa de absolutamente auditoria nenhuma para pagar a sua dívida soberana. É isso que "soberano" significa. O Brasil é um país independente, e os tempos das canhoneiras européias estacionadas no porto para forçar pagamento (o Haiti sofreu bastante com isso) estão no passado. Se Dilma quiser declarar moratória (o nome técnico pro que se chama de calote, e o resultado almejado de uma auditoria cidadã), pode fazer isso porque sim. Porque acordou de mau humor. Como forma de performance artística, chamando a Marina Abramovic pra ler o decreto.

E as auditorias na Grécia e no Equador? Bem, elas demonstram o ponto: as duas não foram absorvidas pelo mercado de dívida como algum tipo de perdão bancário, mas como calote. Os juros pagos subiram após essa moratória parcial. A denúncia das condições escusas das quais se originou o endividamento, do sistema-mundo iníquo, não vão sensibilizar o coração de quem importa, que é o dono da dívida. Ela pode servir, no máximo, como justificativa política para uma moratória - que, de novo, o país pode fazer sem nenhuma auditoria, no dia que quiser. O problema é que o Brasil já quis, mais de uma vez, e em nenhuma dessas vezes o resultado final foi lá tão bom (lembrando de novo que o gasto público com a dívida não é de 40% do orçamento, e sim abaixo de 10 - e ano passado foi zero). A última foi em 1987, sob o Sarney. Sim, aquele Sarney. Não que uma moratória seja sempre a pior opção - na Grécia, ou na Argentina, recentemente houve crises de dívida realmente insustentável. Mas quem fala em auditoria da dívida tem que ter em mente que o efeito econômico, qualquer que seja a justificativa política, é complicado.

A auditoria da dívida é sedutora porque lida com duas narrativas da simplicidade. A primeira é o diagnóstico: não aconteceu uma situação complexa e difícil de entender pra se chegar aonde estamos, o que aconteceu foi que homens maus nos feriram, e depois que os denunciarmos, os exorcizarmos, jogarmos um balde de água na cara deles até que derretam, vamos nos redimir. A segunda é o prognóstico: pra resolver a situação, não precisamos de resolver problemas complicados. Não há interesses divergentes, entre os bons, para serem conciliados. Depois de denunciarmos e pisarmos nos maus, todos os bons viverão felizes  na Cocanha. (Sim, dobrar o orçamento federal sem nenhum efeito negativo daria uma bela duma Cocanha.) É sedutor, mas - como o gráfico de pizza, como a maioria das soluções simples - é mentira.



PS O faq do movimento auditoria cidadã tem esta pequena resposta à questão da rolagem:

MENTIRA. Frequentemente, pessoas ligadas ao governo afirmam que parte destes 40,3% seria apenas “rolagem” ou “refinanciamento” da dívida, ou seja, o pagamento de amortizações (principal) da dívida por meio da emissão de novos títulos (nova dívida). Portanto, isto seria apenas uma troca de títulos velhos por novos, não representando custo para o país. Porém, a recente CPI da Dívida realizada na Câmara dos Deputados revelou que grande parte desta “rolagem” ou “refinanciamento” contabilizada pelo governo não representa pagamento de principal, mas sim, o pagamento de juros. Portanto, a capacidade de endividamento do país está sendo utilizada para pagar juros e encher o bolso dos bancos, ao invés de, por exemplo, financiar a melhoria da saúde, educação, transportes, etc. 

Bem, ela é confusa, na melhor das hipóteses. Dizer que é rolagem não significa dizer que se está pagando o "principal" da dívida (de novo, não há um principal no sentido de uma dívida privada). Não é um julgamento de valor, como o embutido nessa resposta, mas uma definição da coisa. Significa dizer que o dinheiro para esse pagamento está vindo de novos empréstimos, e não de impostos arrecadados, só. Nem foi necessária pra ver isso a CPI da dívida - que, aliás, já fez basicamente o que uma auditoria teria para fazer, com todos os recursos do Congresso. O relatório está aqui. As informações sobre a dívida não são secretas, podem ser consultadas na internet a qualquer momento, o que faz da invocação da CPI um artifício retórico, assim como falar da saúdeeducação.

PPS Repetindo: já foi feita auditoria da dívida, pelo Congresso Nacional, eleito pelo povo (pode ser uma bosta a democracia, mas inda não achei a opção melhor), com todos os seus recursos. O pedido de outra "auditoria," por gente que parece pouco disposta a fazer perguntas e mais a apresentar respostas prontas, é antes um pedido de moratória versão apito de cachorro. Nada contra - mas que se apresente, ao invés de meias verdades, os prós e contras reais de uma moratória.

9 comentários:

Marcus Pessoa disse...

Um dos seus melhores artigos.

Coloquei na retranca "coisas que eu gostaria de ter dito mas não tenho competência suficiente para tanto".

Unknown disse...

Já que você se mostrou tão familiarizado com o assunto, poderia me esclarecer alguns pontos?

Você disse que: "Primeiro a irrelevância: não sei se fui claro ao descrever a rolagem. O que ela significa é que a dívida que estamos pagando hoje NÃO é a dívida contraída por FH, Itamar, Collor, ou mesmo Lula, em sua maior parte. São papéis relativamente novos, contraídos para pagar a dívida que vencia."

1) Todas as operações de "rolagem" parece que foram feitas tendo como base de cálculo a dívida acumulada de então, sendo repetido o processo com diferentes cifras até hoje. Se houver algo de ilegítimo na origem da contração destas dívidas, e, ainda mais, se entidades financeiras permaneceram se beneficiando dela desde então, pode ser o caso que parte dessa dívida seja de fato ilegal, ilegítima etc.
Desse ponto de vista uma investigação não seria benéfica para a sociedade brasileira?

2) A longo prazo o endividamento não é insustentável, sendo todos os Estados nacionais forçados a declarar moratória de pelo menos uma parte da dívida em algum momento?

3) A outra questão que tenho dúvidas é sobre o conceito de gasto público. Quando se contrai um novo empréstimo e se emite um novo título, está-se ou não fazendo um gasto? Afinal, um dia ele terá que ser pago, mesmo que só Deus saiba quando.

Obrigado e parabéns pela intervenção.
Abraço.

thuin disse...

1) Acho que a gente tem que definir o que estamos chamando de "ilegítimo." A dívida ser ilegítima no sentido de ser o resultado dum processo iníquo numa democracia nascente na periferia do capitalismo é algo com que eu concordaria. A dívida ser ilegítima no sentido de ter acontecido algo diretamente ilegal é muito difícil de ser verdade - como mencionei, tem auditoria da dívida o tempo todo, por gente com tempo e recursos, teve uma CPI. E finalmente, a dívida ser ilegítima no sentido de legalmente cancelável, de ser um título que você possa dizer que não tem obrigação de pagar: isso é o que não faz sentido. Porque os títulos atuais não foram emitidos do nada, e sim pra pagar títulos antigos. E porque o país não precisa de auditoria pra fazer isso, se quiser. É só dizer "não pago."

2) Não necessariamente, mas essa é uma discussão complicada. E que merecia ser feita, ao invés de se camuflar o pedido de moratória como pedido de auditoria. Também acho correto questionar a realidade da necessidade de juros altos pra conter uma inflação de demanda com capacidade instalada a 50%.

3) Sim, está se fazendo um gasto. Mas está entrando uma receita equivalente. Voltando pro cartão de crédito: você está rolando dívida quando não paga a fatura mensal do cartão. Você devia mil em dezembro, deve mil em janeiro. Pensando nisso como rolagem, você gastou mil em dezembro pra pagar a fatura e contraiu nova dívida de mil. Mas na prática, da sua conta corrente, não saiu nada, nem a sua posição de dívida mudou. Você gastou algo? (Isso, claro, sem os escorchantes juros de cartão brasileiros...)

Adib disse...

Onde está o negócio da China para os bancos, então, nos menos de 10% que seriam o gasto real vindo dos impostos? Aliás, você também disse que a proporção seria semelhante à previdência, mas o gráfico mostra 22% e não menos de 10%. Esclarece, tio.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Ainda sobre o ponto 1 (caso tenhas vontade de prolongar um pouco a conversa).

Ok, agora pude entender melhor sua posição, não obstante ela me parecer precipitada em afirmar a legalidade integral do endividamento ao longo do tempo; isso porque as irregularidades podem não estar na operação de empréstimo em si, mas nos seus termos e valores, não? E a correção desses valores e dos termos pode não ser irrelevante, como ficou comprovado no caso grego. Sobretudo em operações tão altas e constantemente renovadas. Eu entendo que sua opinião esses problemas são revisados constantemente pelas instituições responsáveis. Contudo, não seria interessante uma abertura maior dos dados e da documentação para a sociedade civil?

thuin disse...

Adib, cê não acha 3% do PIB, praticamente sem risco, negócio da China? Isso é várias vezes o lucro TOTAL anual de Bradesco e Itaú juntos! E sim, os juros no teto pra conter uma inflação de demanda que não existe são algo absurdo.

Mas o que tô dizendo não é nem que moratória seja ruim, é principalmente que advogar moratória tem que ser às claras, pras pessoas saberem os riscos e benefícios possíveis, não com a promessa de um processo indolor e miraculoso.

E quando falei semelhante, tava incluindo, além do gasto de impostos (superávit primário), o gasto em aumento da dívida (déficit nominal). Os dois somados chegam perto da previdência, em alguns anos até ultrapassaram.


PS esse novo captcha tá muito fácil. "Não sou um robô."

thuin disse...

Severiano, todos esses dados são públicos, estão abertos à sociedade civil. Não tem caixa preta pra abrir. Nem grandes segredos na condução. Mas o mais importante não é nem isso, é que ainda que se prove que a dívida foi "contraída ilegalmente," isso não vai mudar os efeitos de uma moratória - que, de novo, por sua vez não precisa de nenhuma auditoria pra ser declarada. A Grécia aliás é um excelente exemplo. Os bancos alemães não falaram "é, ok," falaram "caloteiro se fode." Quem determina os efeitos de uma moratória são os credores, seja como ação voluntária (cobrar juros maiores de novos empréstimos) seja involuntária (quebrar - e como a dívida brasileira, ao contrário da grega e equadorenha, é nacional, quem quebraria seria o sistema bancário nacional).

O movimento pela auditoria é na verdade um movimento pela moratória por considerar ex ante ilegítima (no sentido ético-principiológico) a dívida; tanto que não reconhece a auditoria já feita pelo Congresso, com recursos e interesse em achar podre - nem vai reconhecer qualquer auditoria que não seja feita por ele mesmo. Acho super legítimo como movimento, mas acho complicado apresentar como "auditoria" (se inteligente, já que o apelo é forte).

Debs disse...

Olá, Tiago! Algum comentário sobre este artigo?
http://www.jornalggn.com.br/noticia/a-base-podre-da-divida-publica-federal-por-andre-araujo#.VpvGz9NVhc4.facebook

Uma explicação mais detalhada sobre o gráfico:
http://www.auditoriacidada.org.br/e-por-direitos-auditoria-da-divida-ja-confira-o-grafico-do-orcamento-de-2012/

Abraço