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19.8.21

Are we the virus?

No começo da década da Covid, quando começaram os trancaços para conter a epidemia, na China e, pouco depois, na Europa, a redução da poluição e os animais silvestres passeando pelas cidades levaram a análises fáceis, que diziam que "nós somos o vírus." Com a humanidade confinada, ou até, nas versões mais radicais, exterminada, a natureza poderia renascer. Não muito tempo depois, a resposta, igualmente simplista, mas sem o ecofascismo da tese original: o vírus não é a humanidade, mas o capitalismo, que está acabando com o planeta. As duas teses são versões radicais de um pensamento em torno da ecologia mais amplo, levadas a essa radicalização pela enormidade da epidemia e dos seus efeitos sobre a economia mundial. Obviamente, eu sou mais simpático à segunda, mas não dá pra deixar de usar o bordão "na real a coisa não é tão simples assim."

Primeiro de mais nada, o "fato" explicado pelas teses merece uma ressalvazinha: 90% dos eventos observados, que são principalmente a vida selvagem em subúrbios e cidades pequenas, são absolutamente banais, e aconteciam muito antes dos trancaços. Leopardos matavam cães dentro de prédios em Mumbai, uma das maiores metrópoles da Terra. Os veados de Nara já moravam num parque dentro da cidade, e já saíam à noite - inclusive, o governo estava preocupado com turistas sendo atacados por eles.  Javalis e ursos são parte da fauna suburbana comum em todo o domínio holártico. O que aconteceu é que pessoas entediadas em casa, e já dispostas a crer na narrativa do retorno da natureza, passaram a reparar mais, na imensa maioria dos casos.

Mas OK, a queda na produção de fumaça, principalmente pelos carros (fábricas não tiveram uma queda de produção tão grande) foi mesmo enorme. E essa fumaça tem impactos locais (no caso de Europa e Leste Asiático, "local" é continental) enormes, sem falar no aquecimento global (que infelizmente não foi reduzido pelo trancaço, só parou de crescer). Então, quem será o vírus que deve ser cortado, humanidade ou capitalismo?

Pra início de conversa: a ideia de que, como diria o Agente Smith, o ser humano e o câncer são as únicas formas de vida que se espalham de forma ilimitada está 100% errada. Se espalhar até os próprios limites, e inclusive consumir os recursos locais e morrer, é próprio da vida. Todo ser vivo faz isso. A especificidade da célula do câncer, nesse sentido, é que ela funciona como um ser vivo independente, ao invés de como parte do organismo humano. Não fosse assim, não falaríamos da importância de grandes predadores para o meio ambiente: o exemplo clássico dos bancos escolares, o da floresta em que tirados os lobos os veados comem tudo e morrem de fome, é um pouco forçado, mas claro. Nem humanos nem veados se autorregulam. 

E não, as culturas pré-capitalistas, ou não-ocidentais, também não se autorregulavam. O holocausto da invasão e da varíola nas Américas alterou o clima do planeta, que esfriou devido ao reflorestamento; ora, se as pessoas morrerem levou ao reflorestamento, é que não estava todo mundo numa harmonia edênica. No Oriente Médio, o crescente fértil, berço das primeiras cidades humanas, sofre com desertificação e salinização antropogênicas há mais de três mil anos. Existem leis da Roma republicana e da dinastia Han na China coibindo desmatamento - ou seja, tem lei porque já era um problema. Mais longe ainda no tempo, o aquecimento global antropogênico começa com a cultura do arroz de inundação no sudeste asiático, ainda no neolítico, que inclusive impediu uma era do gelo. Mais longe ainda, seres humanos contribuíram - o quão decisivamente ainda é motivo de debate - para a extinção da megafauna holártica e neotropical (do norte global e da América do Sul). 

O problema entrou em outro nível com a revolução industrial, essa gêmea xifópaga do capitalismo? Sem dúvida. O que define a revolução industrial, afinal de contas, é o uso dos combustíveis fósseis para multiplicar a energia disponível para o trabalho, e com isso o carbono sequestrado pelas plantas e algas por milhões de anos começou a ser liberado em escala maciça. Pior: na segunda revolução industrial, a do automóvel, isso passou a ser feito menos para solucionar problemas práticos do que para alimentar uma engrenagem de status e poder cada vez mais bizantina e cada vez mais faminta de recursos, do próprio automóvel ao eletrônico com "obsolescência programada" à compra na Amazon como terapia, ao bitcoin, cuja melhor descrição é "imagina se você deixar o carro ligado o dia inteiro pudesse gerar sudokus completos pra trocar por cocaína." 

A situação é claramente inviável. O mais próximo que se pode chegar de um consenso científico hoje é que temos anos, e não décadas, para frear a catástrofe climática, e o capitalismo em sua espiral centrífuga é um obstáculo. Mas o que quero pontuar é que ele não é uma queda do paraíso. Não houve o mundo edênico pré-capitalista, não houve a sociedade autorregulada, e nem a natureza não-humana é autorregulada. O que precisamos não é voltar ao passado, é criar algo novo. 

4.5.21

El más grande del mundo III : a universidade mais antiga do mundo.

Qual a universidade mais antiga do mundo? E do Brasil?


Por muito tempo, a UFRJ se reinvindicou a Universidade mais antiga deste imenso Portugal. Outras universidades, mais modestamente, se referiam a suas datas de fundação oficiais, na segunda metade do século XX, ou falavam da antiguidade de uma ou outra unidade por elas absorvida. Por volta de 2006 isso mudou; começando com a Universidade Federal do Paraná, elas começaram a usar a data de fundação dessas unidades como a da universidade, sendo o estatuto com nome "universidade" apenas um passo nessa trajetória. 

Mesmo com esse recuo, ainda é comum ver gente falar, em tons de reprovação, de como o Brasil só foi ter universidade tardiamente; o discurso permanece inalterado seja com a primeira universidade em 1920 (quando a Universidade do Brasil, hoje UFRJ, é fundada para poder conceder um honoris causa à Rainha Elizabeth da Bélgica, segundo a tradição) ou em 1792 (quando a ancestral do centro de tecnologia da mesma UFRJ, a Real Academia de Fortificação, Engenharia, e Desenho, foi fundada). Afinal, Harvard é de 1636, e a Universidad Nacional Mayor de San Marcos, em Lima, é de 1551. Estamos séculos atrasados! Atraso, inclusive, que é muitas vezes invocado como causa ou reflexo do atraso nacional. 

Pois bem, este post, ao contrário dos dois primeiros na série do más grande del mundo que riem de bravatas brasileiras, é pra mostrar como quem prestou atenção no 1o parágrafo pode perceber que o 2o não faz sentido nenhum, e é a legenda nigra brasileira dessa vez que sofre de ingenuidade ante a grandiloquência alheia. 

A corrida pela universidade mais antiga no Brasil é reflexo de uma corrida semelhante mundo afora. Assim, a Universidade de Bolonha, por muito tempo chamada de universidade mais antiga, ganhou concorrentes na África do Norte e na Ásia. A corrida inclusive ganhou traços de feminismo, quando se revelou ao mundo que a universidade mais antiga que existe, a Qarauin em Fez, foi fundada por uma mulher. Que edificante! 

A verdade é que "universidade" é um conceito bem menos óbvio do que possa parecer, ou a própria realidade de uma instituição. Pra azar dos mantenedores de listas e recordes, mesmo os prédios materiais só vão continuar a existir por muito tempo se forem constantemente renovados igual o navio de Teseu; imagine uma instituição de ensino. Alguém realmente acha que há algum sentido além da bravata da tradição em falar de uma universidade moderna como "existindo" de alguma forma que faça sentido na alta idade média? (Ou mais além, na dinastia Tang, como tem quem queira fazer retroceder a Universidade de Nanquim.) 

Então cabe a pergunta, se queremos comparar maçãs com maçãs: o que foi fundado em tal data? Se a Qarauin é a universidade mais antiga do mundo porque é descendente de uma madrassa, isso é, da escola religiosa ligada à mesquita de mesmo nome, fundada em 859, então a dúzia de universidades públicas de Paris criada nos anos 1960 poderia disputar o posto de decano com a ex-colônia avisando que a escola catedral de São Estêvão (Nossa Senhora só foi ganhar o bispado de Paris mais tarde) talvez date do século VIII. 

O sentido moderno de universidade, o de uma instituição que soma e mistura ensino e pesquisa acadêmicos em diversos campos, dentro de um paradigma científico, é do século XIX e centro-europeu; se você restringir universidade a esse sentido, a universidade mais antiga do mundo vai ficar na Mitteleuropa - é a Universidade de Berlim, fundada em 1810. Por outro lado, o sentido de instituição formal dedicada ao ensino avançado e/ou ao avanço do conhecimento é muito mais antigo - a Akademia platônica é de 340aC, o Taixue é de 3AD (e durou quase dois mil anos). E, finalmente, há a explicação mais banal, mas que foi ignorada nessa corrida, a de que universidade é algo que se autodenomina universidade - e essa, novamente, vai restringir o universo à Europa, já que a palavra, que queria dizer outra coisa, é latina e da idade média européia. 

Nenhum desses conceitos é melhor do que o outro. Só diferentes. A questão é saber perceber essa diferença, até para ver melhor a corrida de propaganda. E para a propaganda, muitas vezes se inclui instituições descontínuas, isso é, que ocupam espaços, ou tomam nomes, de instituições que acabaram. Mal comparando, seria como se a biblioteca alexandrina de hoje, criada em 2010, dissesse que é uma instituição com 30 séculos de história, encampando a biblioteca ptolemaica e o sistema de bibliotecas de templo faraônico.

Para falar do "el más pequeño del mundo" brasileiro, o que foi fundado em 1636 em Massachussetts não foi uma universidade. Foi um colégio. A universidade mais rica do mundo de hoje descende linearmente desse colégio (mais do que nos casos da Qarauin e das Paris XX), mas o que havia naquela época não era uma universidade nem pretendia ser uma universidade - nem no sentido de universidade daquela época, que não era o sentido moderno. O Harvard College de 1636, dedicado à formação de pastores, tem seu equivalente no Colégio dos Meninos de Jesus de Salvador, fundado pela Companhia de Jesus em 1553 - apenas dois anos depois da universidade de Lima, e mais de oitenta anos antes da colônia inglesa na América do Norte ter o seu. 

 Comparando curso por curso, o primeiro curso de engenharia do Brasil é de 1792, o dos EUA de 1817, ambos militares. Hoje o brasileiro se integrou como escola de engenharia de uma universidade civil, o americano segue parte da academia militar. O primeiro curso de medicina dos EUA é de 1765 (hoje parte da Universidade da Pensilvânia), o do Brasil é de 1808 (hoje parte da UFBA).  Direito, 1779 e 1827. Da tríade de profissionais burguesa, está tudo mais ou menos na mesma época, trinta anos de vantagem para o Brasil em engenharia, cinquenta de desvantagem nos outros. 

 

19.2.18

Preto no branco

Neste carnaval, a questão da adequação moral de se usar fantasias foi uma das que mais ocuparam as classes tagarelantes das redes sociais brasileiras; dentro dessa questão, muito se falou sobre apropriação cultural, falando sobre as fantasias de índios (com direito a índios propriamente ditos se manifestando pró e contra; não vi ninguém do Cacique de Ramos se pronunciando ou sendo perguntado). O curioso dessa discussão, ao menos pra mim, foi que o grosso dela, entre as classes tagarelantes - ou melhor, entre o que eu vejo das classes tagarelantes - se deu de um ponto de vista branco e ocidental. Tanto as pessoas que denunciavam a apropriação cultural quanto aquelas que rejeitavam a noção o faziam a partir do ponto de vista de fazer parte de uma cultura branca e ocidental e majoritariamente como, eles mesmos, brancos.

Essa discussão já estava morrendo quando vi um chilro no twitter que comentava que "pelo visto só aqui no twitter reparamos e condenamos o blackface," condenando o fato de os jurados do Estandarte de Ouro terem entregue um estandarte ao Salgueiro, apesar da escola ter incorrido naquela prática condenável. O curioso dessa declaração é que, bem, presumivelmente os jurados do estandarte de ouro têm mais intimidade com a cultura popular brasileira, e especificamente a negra, do que a média das redes sociais. O chilro condenando, então, então é um caso particularmente explícito de um movimento antiracista que tem os EUA como norte, vide o próprio uso do termo em inglês blackface, que tem uma história específica naquele país associada aos minstrel shows, o que não elimina o valor negativo das caricaturas de negros perpetradas por atores brancos em outras plagas, mas faz uma diferença na tradução que é muitas vezes ignorada; não que, por sua vez, como nada disso é imutável, blackface, sendo ou não um problema genérico dentro do racismo brasileiro antes da influência americana, seja hoje aceitável, porque o problema é a ofensa presente, e não a verdade histórica (que por sua vez é sempre contingente). Só do que estou falando é que as visões do racismo e de seu enfrentamento, tanto por companheiro de viagem quanto pelos próprios negros, são mutáveis, e dependem tanto de vivências diretas quanto de influências culturais e intelectuais, históricas e internacionais. E, no Brasil, a maior dessas influências é a americana. 

Não estou falando disso, bem entendido, para entrar na discussão como mais um dos "nacionalistas do racismo" que rejeitam as noções americanas sobre o tema, seja para pregar uma visão única nacional, seja pra propalar as balelas da democracia racial pseudo-freyreana (nem Freyre acreditava numa democracia racial efetiva). Pelo contrário, o que acho curioso da assimilação dessas noções no Brasil é que essa influência é, quando se pensa na demografia brasileira, extremamente conveniente para os brancos. Afinal, o Brasil, que recebeu mais de treze vezes mais africanos cativos do que os EUA, e menos da quinta parte de imigrantes livres, não é, demograficamente, um país em que os negros, descendentes de escravos ou não, são uma minoria entre outras que convivem com uma maioria privilegiada branca. Pelo contrário, é um país em que negros e mestiços (de negro e índio) constituem a maioria da população. Por pouco, segundo o IBGE, mas há mais de um estudo demonstrando o quanto a autoidentificação para o IBGE embranquece o sujeito em relação a como ele é visto por seus pares e, mais ainda, pela minoria branca que domina o país.

É uma diferença bem grande de horizonte programático que sai dessa diferença demográfica. Uma minoria entre outras almeja, junto com as outras no melhor dos casos e junto com a maioria opressora no pior, representatividade, ser reconhecida, integrar-se. Uma maioria oprimida por uma minoria violenta almeja uma revolução em que tome o poder. O modelo, ao invés de ser o do extermínio indígena no século XX, é o do Apartheid; passamos dos EUA à África do Sul. Não se tem cotas para ter representação em caminhos de busca pessoal da felicidade, mas para dar acesso da maioria ao controle dos recursos nacionais; não se fala em aplainamento, mas em reparação. (A ação afirmativa americana, imitada aqui, como antes dela as dos grandes países da Eurásia, se direciona a minorias.) Se você conseguisse fazer no Brasil, não uma setorial negra dos partidos tradicionais ou grupo de discussão negro no parlamento, mas um partido de libertação negra e mestiça, que fosse visto como o legítimo representante de um anseio legítimo ao protagonismo, os partidos tradicionais é que seriam, todos, secundários - como ocorre na África do Sul.

Não estou dizendo, pra deixar claro, que os brancos antiracistas brasileiros, e muito menos o movimento negro, fazem isso de caso pensado, no interesse dos blankes. Simplesmente, o que acontece é que essa visão é privilegiada pelas disparidades de poder, prestígio, e geração e transmissão de conhecimento acadêmico, tanto a nível nacional quanto global. Global, porque é tanto mais fácil quanto mais prestigioso seguir os ícones culturais, políticos, e acadêmicos americanos do que africanos. Mais fácil porque conhecimento e ativismo, como tudo mais numa sociedade hierarquizada, se movem mais facilmente em linhas verticais do que horizontais. Mais prestigioso porque, igualmente, o prestígio está muito mais associado, salvo casos excepcionais, ao que acontece nas áreas centrais.

A nível nacional, é curioso notar que o centro de poder econômico e acadêmico do país é justamente o lugar em que o modelo de sociedade americano, com diversas minorias dentro de uma sociedade de maioria branca, está mais próximo de se aproximar da verdade. São Paulo tem menos de um terço da sua população de pretos e pardos, e uma proporção de imigrantes de todo canto, mas especialmente da Ásia oriental, literalmente dezenas de vezes maior do que as da maior parte do país. Assim, adaptar a visão americana ao que se passa em SP gera menos dissonância do que geraria mais ao norte, e mesmo do que ao Sul, que também tem uma maioria branca. E as redes sociais, longe de eliminar a importância dos centros, parecem pelo contrário maximizar essa influência.

Não deixa de ser interessante a ideia de um Brasil onde fosse impensável um presidente branco-branco (já que os campesinos dos sertões nortistas, apesar de serem classificados como brancos, são um problema de racismo e preconceito étnico à parte).

30.8.17

Estupro não é crime

Por que estupro não é crime?
Digo, no concreto, quando acontece mesmo, quando uma mulher abusada sexualmente o denuncia. Nunca é crime, sempre é questionado. Pergunta-se em que circunstâncias ocorreu. Se a vítima estaria pedindo. Se fez BO. Se gravou com câmera. Estupro, em termos abstratos, é coisa pior até que assassinato, é pra ser punido com torturas bárbaras, com castração química, o escambau. Mas estupros concretos nunca sequer aconteceram, quanto mais serem crimes. Por quê? Parece esquisito, né?
Eu diria que a resposta é uma questão de semântica, em que o significado que o cidadão de bem empresta às palavras é um tanto diferente daquele que o dicionário dá.
A primeira palavra: "estupro." Estupro, para o cidadão de bem, não é um violência de cunho sexual exercida contra uma pessoa. É uma violação da honra da vítima, especialmente da vítima mulher. Até há nem tanto tempo, isso era inclusive a concepção legal, tanto que não havia estupro de homem mas "atentado violento ao pudor," e era considerado impossível o estupro dentro de um relacionamento (que, aliás, é dos mais comuns). De certa forma, somos nós, que pensamos o estupro como violência sexual, os revisionistas, porque a noção dele como crime contra a honra familiar (e a mulher como basicamente propriedade violada da família, em última instância) é a mais antiga; não é à toa que a palavra "rapto" já foi sinônimo de estupro. 
A segunda: "bandido." Não, bandido não é uma pessoa que comete um crime. Nesse sentido, o cidadão de bem é até esclarecido, e considera que quem cometeu um crime cometeu um erro, mas tem direito ao arrependimento e ao perdão. Não se torna um criminoso por conta do crime, não tem sua natureza alterada. "Bandido" nesse dicionário é um subversivo. É alguém, preto, puta, pobre, ou petista, que saia do seu galho, que questione de alguma forma relevante seu lugar na hierarquia. E contra esses bandidos, por sua vez, é punição justa qualquer ação que de outro modo poderia ser crime. Não adianta falar de hipocrisia, porque é menos hipocrisia do que uma outra visão de mundo, em que os crimes dispostos nos estatutos da lei são menos importantes do que uma atitude subversiva, especialmente quando esta sai de classes perigosas, subalternas. 
E a terceira, "puta," porque qualquer mulher que saia do molde de virgem submissa entra automaticamente para a categoria de "puta." Teve gente xingando irmã Dorothy, freira e sexagenária, de puta comunista, e assim achando justificável seu assassinato. É por isso que o ato de ter bebido tem efeitos opostos sobre o julgamento moral quando se fala da vítima de estupro que bebeu e do estuprador que fez o mesmo; o estuprador (que não é subversivo, portanto não é bandido) cometeu um erro, e isso é tanto mais compreensível quanto ele não estava em pleno controle de si mesmo. A vítima, por ter bebido, se definiu como puta - e, portanto, mais indigna de qualquer solidariedade da parte do cidadão de bem. Quer dizer, não que seja necessário, porque ela já é suspeita de ser puta pelo próprio fato de ter sido estuprada. 
Nessa visão de mundo, o estupro é impossível. É um silogismo: qualquer mulher, pelo ato de ter sido sexualmente abusada, passa automaticamente a ser menos do que honrada e, portanto, puta e, portanto, abusar sexualmente dela não será estupro. O estupro, para o cidadão de bem, não existe, não pode existir.

19.7.17

Novos heterossexuais na ilha de Caras

Eu não queria, mas depois de uma semana sem o assunto ir embora, a ânsia de dar pitaco subiu demais. O CASO RODRIGO HILBERT não me parecia interessante, desde o começo, porque, bem, pra mim as pessoas falando do que o moço "é" a partir de programa de TV, revista Caras, e press release... é meio surreal. Dá vontade de perguntar se as pessoas também acreditam naquelas fotos que representam os herdeiros reais britânicos como uma simpática família de classe média cuidando do rebento; ora, não tem por que achar que a família real branca da Copa seria menos um produto de mídia do que a britânica. Inclusive com as hordas de babás, faxineiras, e seguranças que ficam de fora das fotos de família feliz.

Então, ok, eu vou comentar essa porcaria, JÁ QUE VOCÊS INSISTIRAM TANTO, até pra não ser demitido da escola da vida, que nem a recepcionista que não tinha opinião sobre o Lula, mas não é pra falar do que o moço é, ou do que os homens não são, mas justamente pra falar do produto de mídia que se chama "homem ideal." O novo homem ideal vendido pela rede Globo, em contraste aos galãs de antigamente. E bem, por mais que seja um produto de mídia feito pra vender, não dá pra reclamar de que o novo, ao invés de ser um principezinho paparicado, é um sujeito que paparica sua família, né.

Sim, ao invés de principezinho paparicado; o modelo Hilbert substitui o modelo, sei lá, Fábio Assunção, não os cafajestes e machões, cujos públicos são outros; a Globo, ou qualquer outra emissora, não vai ser burra de achar que um único produto vai agradar a todos os tipos de clientes. Então, nisso, o que você tem não é tanto um novo ideal de masculinidade quanto um novo padrão do que seria um tipo específico, o "homem atencioso." E aí entende-se também o beicinho (que chamar de frustração e choro, ou enfiar metaproblematizações mis, é grandiloquência facebookiana) dos homens; pra ser atencioso agora, ao invés de só levar umas flores e não gritar, precisa saber cozinhar e cuidar dos filhos, dá muito mais trabalho. Mas não, não é uma revolução no sistema. No máximo, um aumento da dificuldade em corresponder a um dos estereótipos disponíveis no mercado. Bem vinda, sem dúvida, que tava muito fácil pros homens com preguiça de ir na cadimia e tomar bomba pra virar "macho alfa."

O mais curioso, nesse produto e para alguém dado a pessimismos, é como a Globo desistiu de vender um casal perfeito mais parecido com a população brasileira, pra voltar à Islândia de sempre. No episódio da Copa, lembremos, quem decidiu que um casal maravilha negro não servia foi a Fifa, e não a emissora do Jardim Botânico, e em geral a emissora parecia que ia, por mais que a passo glacial, aumentando a representação negra em seus quadros. Nesses três anos (sim, só se passaram três anos desde a Copa do Mundo, por mais que pareça que estamos em outro século), seria o caso de se questionar se algo mudou no pensamento globoso ou é só uma infeliz coincidência. Eu, fico com a impressão de que sim, vendo capa de revista no supermercado, mas revista no supermercado não é sequer uma visão anedótica razoável...

E sim, acho que isso faz diferença, porque o ideal de domesticidade burguês tem, por trás dele, um rosto proletário, feminino, e, no mais das vezes, negro. A stepford wife só pode ser assim perfeita, fazendo jantares elaborados e cuidando afetuosa e criativamente dos filhos, porque não precisa lavar a louça nem varrer o chão. Ao comemorar que o ideal de domesticidade agora é menos machista, quase unissex, não se pode ignorar que ele continua sendo um ideal tornado possível por proletárias que, por sua vez, não têm a possibilidade de ser assim ideais. A virtude, nesse caso como em tantos outros, não é igualmente acessível a todos. E é uma virtude burguesa e branca tornada possível com a mais valia negra.


2.5.17

O gestor é, antes de tudo, um líder

Desde que foi eleito,  em São Paulo, o candidato que utilizava o bordão "não sou político, sou um gestor," os críticos têm notado que seu estilo de governar é exatamente o contrário da gestão tecnocrática que se esperaria da ideia de "ser um gestor." As evidências se acumulam, principalmente na área de trânsito, em que o slogan da campanha ("acelera São Paulo") era um desafio aberto ao que pregam urbanistas e engenheiros de transporte mundo afora, isso é, um desafio aberto à técnica e à gestão técnica. Nesse sentido, muito mais próximo da ideia de "gestor" estaria o prefeito anterior.

Ou seja, a ideia do que seria um gestor - de quem acha que o prefeito não é um- está errada. Melhor dizendo: a ideia que o prefeito, e aqueles que votaram nele, já que esse desafio à administração técnica já vem desde a campanha, fazem do que seja um gestor não passa pela gestão eficiente ou científica; pelo contrário, tanto em São Paulo quanto no Rio, à esquerda e à direita, a ideia da gestão tecnocrática foi a grande derrotada das eleições municipais de 2016, sendo incapaz - mesmo com um rol de realizações bastante amplo, dentro dos seus respectivos termos - de sequer chegar ao segundo turno.  Gestor, portanto, pra quem se elegeu e pra quem votou, quer dizer outra coisa. O que seria essa coisa, então?

A explicação parece estar no único livro citado por Dória em sua cerimônia de posse, que é exatamente o tipo de livro que também alcança grande popularidade entre os bispos da Universal, um livro de autoajuda para "empreendedores." Nele, como em boa parte da ideologia que se ensina para aspirantes a administradores nestes tempos pós-tayloristas, não se fala tanto da administração técnica, como aplicação de esquemas organizacionais em resposta a dados empíricos coletados, mas sim das qualidades pessoais, cultivadas e inatas, de um "verdadeiro líder." A ênfase é na capacidade de liderança e na força de personalidade individuais. O gestor, na política do século XXI, do Banespinha à Casa Branca, não é um técnico, mas sim um Líder. Assim, com maíúsculas. Um grande homem, um Ubermensch que lidera os verdadeiros patriotas e atropela os Untermenschen; algo parecido com o que aconteceu nos anos 30 e 40, com a diferença principal sendo a mudança do locus de poder, real e simbólico, das forças armadas para as grandes corporações, o que fez os Líderes trocarem a farda pelo terno.

Assim como na versão original, o desprezo público pela estrutura técnico-científica não significa rejeição, mas antes subordinação, com o big data e as redes virtuais se substituindo ao rádio e à imprensa escrita, Cambridge Analytica no lugar de Der Angriff. O Líder está acima das "opiniões" de reles cientistas, mas usa sem problemas o poder que pode ser conferido pelos mesmos, e inclusive recorre a eles, lhes demanda, fórmulas miraculosas que lhe permitam entregar o que promete - porque o que ele promete, apesar da frequente linguagem de sacrifício, é o famoso almoço grátis, em que a ciência mais a eliminação dos inimigos políticos levará o povo a uma feliz Cocanha.

É a história se repetindo como farsa, como no caso de Luiz Napoleão Bonaparte? Só se você ignorar que já era farsa da primeira vez.






6.4.17

Nabucos in love

"Nabucos" são aquelas pessoas que acham que tudo fora sempre será melhor que no Brasil, que tal ou qual coisa ruim "só podia ser no Brasil mesmo." O nome é homenagem, via Mário de Andrade, a Joaquim Nabuco, famoso pelo abolicionismo, mas que também perpetrou o texto abaixo:

Nós, brasileiros - o mesmo pode-se dizer dos outros povos americanos - pertencemos à América pelo sedimento novo, flutuante, do nosso espírito, e à Europa, por suas camadas estratificadas. Desde que temos a menor cultura, começa o predomínio destas sobre aquele. A nossa imaginação não pode deixar de ser europeia, isto é, de ser humana; ela não para na Primeira Missa no Brasil [...].

Estamos assim condenados à mais terrível das instabilidades, e é isto o que explica o fato de tantos sul-americanos preferirem viver na Europa... Não são os prazeres do rastaquerismo, como se crismou em Paris a vida elegante dos milionários da Sul-América; a explicação é mais delicada e mais profunda: é a atração das afinidades esquecidas, mas não apagadas, que estão em todos nós, da nossa comum origem europeia. A instabilidade a que me refiro provém de que na América falta à paisagem, à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo o que nos cerca, o fundo histórico, a perspectiva humana; que na Europa nos falta a pátria, isto é, a forma em que cada um foi vazado ao nascer. De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país. O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação europeia. As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amazônica ou os pampas argentinos, não valem para mim um trecho da Via Appia, uma volta da estrada de Salerno a Amalfi, um pedaço do cais do Sena à sombra do velho Louvre

Claro está que a maioria das pessoas que sofre da moléstia de Nabuco, como a chamou Mário de Andrade (espicaçando Drummond, aliás), não é tão "européia" quanto o original. Aliás, hoje, a "verdadeira pátria" de quem sofre desse mal já se espalhou, e pode estar também na América do Norte, ou mesmo na Ásia. E ele não é exatamente raro. Quem não ouve, pelo menos uma vez por dia, algo na base do "esse país é uma merda," "só podia ser no Brasil," ou "só podia ser brasileiro"?Desapreço, ódio, rejeição ao país natal, que estranhamente coabitam na mesma personalidade com a invocação de símbolos nacionalistas como a bandeira ou a camisa da seleção. E fica a pergunta: como explicar essa dualidade tão aparentemente contraditória?

Pois bem, a resposta é que, na verdade, o nabuco é um tsundere, que fica negando a própria afeição e xingando seu objeto. E ele ama o Brasil. Não os brasileiros, não o Brasil como ideia, como algo que poderia um dia existir, mas o Brasil real, as relações sociais reais do Brasil. OK, não todos os nabucos. Mas boa parte deles vai dizer frases que expressam o desejo de que o Brasil seja, ainda mais intensamente, aquilo que já é, seja mais ainda "Brasil" como diferença em relação a outras nações. Coisas como:

"O problema do Brasil são todos esses direitos dos manos." (A polícia brasileira é a que mais mata no mundo. São seis vezes os mortos da polícia americana, ou seiscentas vezes os da alemã, e mesmo três vezes mais do que a de países violentos como Colômbia, Venezuela, ou México.)

"O Brasil é ruim por causa do custo trabalhista." (Já temos a menor proporção de salários sobre renda nacional e a maior desigualdade de salários, de qualquer nação grande do mundo; a jornada de trabalho média é das mais altas; a terceirização é ampla e, agora, irrestrita.)

"As cadeias no Brasil são muito boazinhas com os criminosos" (São das piores cadeias do mundo, se não as piores; a superlotação é, de longe, a pior.)

"Falta religião e moral neste país." (O país é dos mais religiosos e afetos a temas morais em todas as pesquisas comparativas. O caso mais alucinado que já ouvi nesse sentido foi quando um moço me dava de exemplo de país ideal o Japão e dizia isso - só que o Japão é o país mais ateu fora da Escandinávia...)

"Os ecoxiítas que impedem o desenvolvimento nacional" (O Brasil é o país em que mais morrem ativistas ligados à terra e ao meio ambiente; muitas empresas de países ricos elegeram o país como centro de processos poluentes.)

E assim por diante. Cada vez que uma pessoa dessas diz que acha o Brasil ruim, está dizendo que gostaria que o país fosse, ainda mais intensamente, o que já é.

Devem estar bem satisfeitos.

14.11.16

Impostos, e o que eles compram.

Sim, eu sei que falar desse jeito, de um ramerrame tão chato quanto impostos, e sem ser diretamente dentro de uma grande narrativa - pró ou contra- parece estranho, nestes tempos que correm sob o signo da emoção. Mas acho que é importante, considerando-se a importância de questões relacionadas a déficits e impostos nos dias que correm, ter a percepção correta do que impostos e carga tributária são. Afinal, fala-se muito em "aumento da carga tributária" - e vai se ver, e os impostos não aumentaram, aumentou a formalização. Mas a impressão que ficou foi do aumento do imposto...

Não é problema só de impostos e carga tributária, claro. Um dos problemas mais comuns da nossa época é a reificação das estatísticas. Traduzindo o palavrão: é a tendência de pessoas a lerem estatísticas como dados da realidade bruta, mesmo quando essas estatísticas na verdade refletem todo um sistema de dados amealhados, interpretados, selecionados, e processados. Isso vale para a maioria das pessoas, pouco à vontade com números em geral, mas é um mal do século, comum a todo mundo, inclusive aos estudiosos de ciências sociais. Pode ser, inclusive, resultado da necessidade do discurso: é preciso falar alguma coisa, as estatísticas não são realmente confiáveis para serem comparadas, mas são o que temos, então falamos delas como se fossem reais. E aí alguém vem e pega o que foi falado, e usa por sua vez, e o "assumindo-se que assim seja" se perde pelo caminho, e uma comparação tortuosa vira um fato, às vezes com resmas de explicações complexas em cima. As coisas mais simples e aparentemente óbvias não são tanto assim. Por exemplo: o dia de trabalho no Brasil e nos EUA é de oito horas. Nos EUA, isso é chamado de "9 to 5." Aqui, geralmente é de 8 às 5. A diferença é que no Brasil temos uma hora de almoço obrigatória - que não é contada dentro do horário de trabalho. Mas americanos - dizem - também almoçam. E então, o que seria "certo" nessa comparação? Dizer que o brasileiro empregado formalmente tem um dia de trabalho de nove horas, descontar do tempo do americano o tempo de almoço... o mais simples, é claro, é simplesmente utilizar o tempo formal. De novo: o brasileiro tem direito a trinta dias corridos de férias. Na maioria dos países da Europa, as férias obrigatórias são de vinte e cinco dias úteis. E por aí vai...

Um desses números que parecem simples mas encerram em si todo um discurso é o da carga tributária. Gente bem melhor que eu já falou da carga tributária líquida, a diferença entre o custo efetivamente gasto pelo governo e aquele dinheiro que é só redistribuído, na forma de transferências diretas, por ele, mas o que quero falar é de outra coisa: o gasto do governo propriamente dito que é pago com "carga tributária" em cada país não é, nem remotamente, comparável. Não estou falando da qualidade do serviço, a clássica reclamação da classe média brasileira, mas de que as estruturas pelas quais as nações oferecem diferentes serviços a seus cidadãos são diferentes; a definição do que é e não é Estado é mais complexa do que à primeira feita parece. Mas diferentes de tal modo que é difícil, mesmo, reduzir essa diferença a um número. Um dos exemplos mais flagrantes: a carga tributária japonesa é bem menor do que a da França. Eficiência do modelo japonês... ou porque universidades e saúde são pagos do bolso do cidadão no Japão, ao invés de majoritariamente pelos cofres públicos, e os subsídios ao transporte são muito menores (o Estado dá, ao invés disso, às companhias de trem vastas áreas urbanas para desenvolver como imobiliária, e empréstimos a juro baixo via bancos e parabancos estatais). 

E essa comparação entre o Japão e a França nem é tão estranha quanto a comparação que se faz entre a carga tributária brasileira e a de países ricos para reclamar que o retorno "não é semelhante." Primeiro porque, como já disse na resposta ao gringo picareta, renda não é riqueza, e serviços públicos também são riqueza. Segundo porque a comparação entre percentuais não faz sentido; tente exigir comprar uma casa igual à do Bill Gates pela mesma porcentagem das suas economias que ele gastou. Terceiro pela diferença entre carga tributária líquida (que não deixa de ser um serviço público, mas para a qual não cabe falar de eficiência do estado, já que quem recebe sabe muito bem o quanto recebe). E quarto, finalmente, pela diferença de "pacotes de serviços" oferecidos pelos diferentes governos. Ah sim, um quinto: pela existência de receitas extraordinárias, não-tributárias, como são o petróleo e outros hidrocarbonetos nos países exportadores. 

Não é uma diferença pequena, circunstancial. Mesmo para empresas sofisticadas é difícil julgar entre preços de pacotes de serviços diferentes para tomar uma decisão; é por isso que muitas agências reguladoras mundo afora, e em especial os bancos centrais, exigem algum tipo de estandardização de pacotes de serviços por seus regulados, até, em alguns casos, a nível internacional. E entre os "pacotes de serviços" dos governos não há estandardização nenhuma, a tal ponto que fica difícil até julgar a diferença, de tal modo as estruturas são diferentes. Uma obra que tentasse fazer um esboço do esboço de um estudo comparativo real entre essas estruturas, sopesando cada particularidade e transformando-a num número, ou em meia dúzia, seria tão grossa (assim de deixar os calhamaços do Braudel ou do Osterhammel parecendo panfletos) quanto cheia de "assumindo-se-que." 

Longe de tentar atacar essa cavalariça de Áugias, tentei só fazer uma conta bem mais grosseira, que resumo na tabela abaixo. A conta começa na parte fácil (PIB do país per capita multiplicado pela carga tributária - o que ignora inteiramente a questão da progressividade do gasto e de quanto efetivamente um dado cidadão paga), e junta uma das coisas mais simples de se definir à parte entre os grandes gastos públicos, que é o financiamento da saúde. Porque, se vários países têm sistemas de saúde universal, como esse sistema de saúde é universal está bem longe de ser uniforme. Basicamente, se tem os sistemas como o SUS, chamados de "pagador único," em que o Estado mantém, via impostos, um sistema de saúde que é inteiramente grátis pra quem chegar e aparecer, e modelos de planos de saúde regulados e subsidiados, mas que têm, obrigatoriamente, que ser pagos pelo cidadão além dos impostos. Na prática, portanto, poder-se-ia chamar esse pagamento de imposto também - e um imposto bastante regressivo, já que não guarda relação nenhuma com a renda de quem paga. Mas o Obamacare, ou a Krankenversicherung, ou o Kokuminkenkoohoken, não entram pra estatística de carga tributária. Faz sentido: não são impostos entregues ao Estado, mas pagamento a empresas privadas. Por outro lado, são pagamentos que o Estado obriga que se faça a essas empresas privadas, que são pesadamente reguladas e imbricadas na estrutura do Estado.

A tabela abaixo, então, longe de tentar sistematizar e conceitualizar essas diferenças importantes, tem apenas uma ideia modesta de, imaginando bem ao gosto neoliberal o Estado como um "pacote de serviços," mostrar o que está incluído nesse pacote, e quanto ele custa aos cidadãos. (Em dólares, não em % do PIB - cf. "construir uma mansão que nem a do Bill Gates com a mesma proporção da minha renda.) (Os números pra PIB e carga tributária foram conseguidos na wikipédia.)


País
Carga tributária em % do PIB
Carga tributária per capita, em dólares PPP
O que é pago com impostos
O que é pago pelo cidadão médio, obrigatoriamente, hors imposto
Brasil
35,7
5.265
Saúde
Universidade pública
Educação (todos os níveis; terciária restrita)
Previdência

EUA
26,9
14.458
Previdência
Subsídio a combustíveis
Educação (até média)
Saúde (restrita)
Saúde - 3552

Alemanha
40,6
18.521
Educação (todos os níveis)
Subsídio a transportes
Saúde - 4460
Japão
29.5
11.148
Previdência
Subsídio à saúde
Saúde - 1500
Educação (todos os níveis) - 3750+
China
28,1
2.226
Educação (até média)
Subsídio a educação superior
Saúde (parcialmente)
Subsídios ao transporte
Saneamento e energia subsidiados
Saúde - 200
França
44,6
17.184
Previdência
Subsídio à saúde
Educação (todos os níveis)
Subsídios pesados ao transporte
Saúde - 1600
Reino Unido
34,4
14374
Previdência
Saúde
Educação (até média)
Subsídios à educação superior


Argentina
37,2
7625
Previdência
Educação (todos os níveis)
Saúde (restrita)
Subsídios ao transporte
Saúde - 1200




4.10.16

Museu da África e da Escravidão no cais do Valongo

Quando a prefeitura lançou o site Visão Rio 500 anos, lancei essa proposta lá. Foi a mais votada do site. Não passou pela peneira dos "técnicos" da prefeitura. Então repito aqui, a proposta e o programa expositivo, na esperança de que alguém lhe dê atenção.
Carta aberta às autoridades públicas e empresários do Rio de Janeiro: pela construção de um museu da Escravidão e da África no cais do Valongo.



Por que no Valongo? Porque tanto simbolismo quanto conveniência ali convergem. O cais do Valongo, recentemente escavado, foi a instalação única pela qual passaram mais pés de escravos no planeta (mais de meio milhão de pessoas, entre 1811 e 1850). E o armazém defronte, um dos primeiros armazéns “modernos” do porto do Rio, foi projetado por André Rebouças, ele mesmo negro, neto de escravos, e abolicionista, um dos maiores engenheiros do Império, que proibiu a utilização de escravos como mão de obra na sua execução (em 1871, quase vinte anos antes da escravidão ser abolida no Brasil), homenageado junto com seu irmão no maior túnel da cidade (mas quantos por ali passam saberão ligar o nome à pessoa?). Não é uma instalação qualquer, em um lugar qualquer: é um memorial de importãncia, sem falsa modéstia, planetária. Instalação que, aliás, foi ela mesma uma tentativa, por estranho que pareça a nossos ouvidos ouvir isso, de apagar o passado colonial e andrajoso fazendo instalações científicas e higiênicas para o tráfico de ePor que um Museu da Escravidão e da Africa no Valongo?

Em primeiro lugar, por causa da importância simbólica daquele lugar. Lá desembarcou o maior número de africanos escravizados em toda a história. A importância da escravidão atlântica para formação da sociedade brasileira e para a construção do mundo moderno exige que se preserve aquele lugar. Nessa história de muita dor e sofrimento, o Rio de Janeiro desempenhou papel fundamental. Além de ter o maior porto receptor de escravos do mundo, nesta cidade funcionava toda a complexa cadeia de tráfico humano, que ia desde a construção e contratação de navios à contratação e repasse de seguros. Aqui, também, na condição de capital imperial, foram tomadas decisões importantes que mudaram a história do tráfico e da escravidão no Brasil, como por exemplo, a proibição do tráfico negreiro e a definitiva abolição da escravidão em  13 de Maio de 1888, quando nos tornamos o último pais das américas a fazê-lo.

É uma nódoa na história nacional, portanto algo melhor esquecido? Não. Nódoas são para serem lembradas, e a cultura que saiu da escravidão deve ser celebrada. Nem é uma idéia tão original - existem museus da Escravidão em outras cidades, ligadas mais ou menos ao tráfico, como em Liverpool e Nova Iorque. Existem museus do Holocausto, outra grande tragédia da humanidade, como em Berlim ou Washington. Este, aliás, atrai 17 milhões de visitantes por ano, muito mais que qualquer atração turística brasileira. Hoje, o Brasil retoma ligações com a África que em parte se perderam ao longo do Século XX, e um museu que registre o maior laço entre os dois países é também importante. E, finalmente, na parte “África,” sem falar da escravidão, o Rio de Janeiro, com uma população negra bem maior que a de São Paulo, não tem algo da importância do Museu Afro-Brasil, do Ibirapuera.

Acervo não falta - as próprias escavações do porto, por óbvio, retiraram inúmeras peças relevantes à história da escravidão no Brasil, e os arquivos em mãos de diversas instituições públicas na cidade também não são pequenos. Não que a idéia seja um museu “sótão,” à moda antiga. Pelo contrário, o ensino, a celebração e a mem´ da tragédia que foi a escravidão e da riqueza que dela se extraiu, devem incluir seções interativas, devem incluir fac-símile, toda a tecnologia necessária pra que o Museu da África e da Escravidão não seja “mais um museu,” visitado principalmente por colegiais entediados, e sim o que tem potencial para ser - uma atração internacional carioca, no nível do Cristo ou do Pão de Açúcar. (E um centro de pesquisas, igualmente de importância internacional.) Tem, também, o potencial para reforçar e reforjar as relações brasileiras com a África, continente que é hoje o que mais rápido cresce no mundo, e com a diáspora negra em toda a orla do Oceano Atlântico.

scravos, numa prefiguração do genocídio “científico” e industrial que foi o Holocausto.

Recentemente, fomos surpreendidos pela notícia de que as autoridades públicas pretendem entregar o galpão construído por André Rebouças e hoje utilizado pela ONG Ação da Cidadania a um grupo de empresários para que lá seja feito um empório gastronômico, como parte do projeto de requalificação do Porto, que por sua vez é parte de um projeto de inserção do Rio de Janeiro na rede de cidades globais de negócios. Defendemos, ao invés disso, a alocação desse empório gastronômico em outro espaço (há os armazéns da beira do cais, com sua vista para o mar, há a possibilidade já aventada de reconstruir o Mercado Municipal da Misericórdia, há os galpões da antiga estação Marítima, junto à Cidade do Samba) e a criação no armazém do museu da África e da Escravidão

Mesmo pensando-se apenas na inserção do Rio como cidade de negócios e turismo global, um empório gastronômico sem ligações locais mais fortes não terá a mesma capacidade de atração global que um memorial de importância mundial. Atrações assim desencarnadas dependem de dinheiro e redes de status consolidadas, o que não é o caso do Rio, não numa competição global. Se Tóquio, com PIB comparável ao do Brasil inteiro e suas 200 estrelas Michelin, não virou destino corriqueiro de gastrônomos europeus e americanos, não será um empório no Rio (que não tem 10 das tais estrelas) que o será. E não é como se o galpão de Rebouças fosse a melhor opção para um tal empreendimento; qualquer um dos 18 galpões do cais do porto, no qual a operação comercial está sendo desativada, serviria melhor a um tal propósito, proporcionando aos visitantes as largas vistas da baía da Guanabara.

Reiteramos, portanto: o Rio de Janeiro, o Brasil precisam de um museu e memorial da Escravidão e da África no Valongo, no armazém projetado por André Rebouças, defronte ao cais por onde pisaram milhares de vidas escravizadas. Um resgate da história da cidade, do país, e do mundo, que fará o Porto Maravilha merecer de forma plena seu nome.


Museu da África e da Escravidão no cais do Valongo - programa expositivo

Este programa foi feito apenas como um exemplo do que poderia ser feito, sem ter a ambição de ser uma proposta de curadoria, precisaria da contribuição de diversos especialistas de instituições, no Rio, no Brasil, e no mundo, que lidem com as temáticas da África, do Negro, e da Escravidão, no âmbito de museus históricos e de arte.


Áreas disponíveis apenas no galpão da Ação da Cidadania:

Térreo - 6000m2
2 galerias de 1500m2 cada
(Possibilidade de cavar um subsolo de 1500m2?)

Área disponível no resto do quarteirão: ProMatre: 3300m2. Edifício Importadora Mercantil: 700m2x10 andares Total: (assumindo-se edificação de 2 andares no terreno da Promatre): 13.300m2 ;

Total com quarteirão e subsolo:23.800m2

Cabe ressaltar que há, no local, equipamentos essenciais a serem relocados: a própria Ação da Cidadania, para a qual o armazém de Rebouças é não apenas instalação de uso como também fonte de renda, na forma de aluguel para eventos, e o hospital ProMatre. Além disso, também existe a questão da “relocação” da proposta do governo do estado de empório gastronômico. Felizmente, no atual estado da Região Portuária, boa parte dos terrenos e edificações ainda pertencem à União Federal ou à Caixa, podendo assim ser utilizados na solução.

Uma solução possível é a da utilização dos galpões da antiga estação marítima, recentemente restaurados. Os galpões estão inseridos na vila olímpica da Gamboa, defronte à cidade do Samba, sem que haja uso definido. Cada um deles tem 4500m2, somando uma área equivalente à do armazém de Rebouças, com uma área entre eles de outros 6000m2. A área interna dos galpões tem plano aberto e pé direito alto, se prestando a diversas soluções que preservariam, como nas instalações atuais, o uso duplo pela ong. Um pouco mais longe, mas com acesso fácil pelas redes de metrô e ônibus, há o terreno da expansão nunca realizada da Estação Barão de Mauá, hoje ocupado pela fábrica de aduelas das obras de expansão do metrô; o terreno tem mais de 30.000m2. Outra possibilidade é a utilização de armazéns do cais do porto; nenhum dos armazéns do cais de 1910, todos tombados, se presta à movimentação portuária moderna, e diversos deles tendem a ficar sem uso no futuro próximo, e cada um tem 4.000m2, com características similares aos já citados galpões da Marítima. Os armazéns do Porto também serviriam para as instalações do pretendido empório gastronômico, com direito a mesas no cais - o oceano certamente é uma vista mais agradável do que uma praça com algumas pedras, e definitivamente do que comer bem lembrando da tragédia humana que aquelas pedras testemunharam.  Finalmente, a ProMatre pode ser instalada em algum terreno próximo, tendo requerimentos de espaço mais flexíveis; logo ao lado, há o estacionamento das Lojas Americanas. Também há uma área de estacionamento grande do Hospital dos Servidores, o que levaria inclusive a uma sinergia entre os dois hospitais.


Plano expositivo do próprio museu:

Temas:

A escravidão atlântica e o tráfico negreiro, dividido em 2

1 - o tráfico:
  • Origens nas ilhas atlânticas
  • Os principais fluxos (telão interativo com mapas de origens e destinos em cada século)
  • A experiência dos escravos no tráfico - do Sudão às Minas Gerais. Os comedores de gente. ( reconstituição de porão negreiro)
  • A importância da acumulação de capital na Europa - comerciantes e estaleiros no Rio colonial (as primeiras naus em Salvador e no Rio, a expedição a Angola, o açúcar e as minas)
  • A formação dos estados caçadores de gente na África (mapas, armas e correntes)
  • O cais do Valongo e seus antecessores no Rio de Janeiro; outros portos de escravos mundo afora.
  • O panfleto do Brooks, abolicionismo, e abolição do tráfico. Os esquadrões ingleses.

2 - A escravidão nas Américas

  • A experiência dos escravos, de eito e de casa
  • A importância econômica da escravidão
  • Pretos livres e não tão livres. Reapresamento.
  • Resistência individual e quilombola; mistura com índios
  • A escravidão indígena; as bandeiras e as missões
  • A abolição nas américas. Haiti e repúblicas hispânicas. Guerra civil americana.
  • A abolição no Brasil e os quilombos urbanos
  • O legado da escravidão - desigualdade e racismo. Decreto de 98. “Embranquecimento”
  • Quilombos hoje
  • O Rio dos escravos (maquete(s? uma por século?) interativa(s) com localização de pontos relevantes - atracadouros de navios tumbeiros, casas de leilão, irmandades religiosas de pretos, clubes, quilombos urbanos)
  • Resultados ligados à escravidão de escavações arqueológicas no Porto - conexão com o cemitério dos pretos.


3 -  A escravidão mundo afora

  • Tipos de escravidão. Escravidão familiar, estamental, de mercado
  • Escravidão antiga; as minas helênicas e persas. Os latifundia romanos.
  • Relação de sociedades escravistas vs. sociedades com escravidão. (galeria de horrores - escravos russos com rosto marcado a ferro, chapéus costurados coreanos, galés mediterrâneas,
  • Os fluxos de escravos radanitas na Europa da alta idade média e a palavra escravo.
  • Diferentes escravidões (de mercado, da gleba, pessoal)
  • Depois da abolição: os cules asiáticos
  • A escravidão árabe nos séculos XIX-XX.
  • A escravidão ilegal hoje

4 - A África ocidental

  • Origem dos imigrantes forçados no Brasil e no Rio.
  • História das sociedades das áreas emissoras. Fluxos bidirecionais Brasil-África.
  • Arte e cultura clássica idem (bronzes do Benin, panos da costa, objetos de culto fon e iorubá, a influência islâmica)
  • Contemporâneas ibidem (mostras temporárias de artistas convidados)
  • Religiões de matriz africana no Brasil (umbanda criada em São Gonçalo, relação de terreiros, diferenças entre as religiões, perseguição oficial e extraoficial)
  • Imigrantes negros de hoje no Brasil (Haiti, Nigéria, Angola, Senegal, Cabo Verde)

5 - Áreas não expositivas

  • Administração, pesquisa, e reserva (áreas restritas)
  • Biblioteca
  • Lojinha
  • Café/restaurante


Por que o subsolo? Pra conseguir mais área, e para fazer uma “experiência de navio negreiro,” como no Imperial War Museum de Londres se tem uma experiência de trincheira da Grande Guerra.  Com um subsolo de 1500m2, poder-se-ia dar igual área para cada uma das grandes seções, talvez um pouco mais para a escravidão americana - 2000m2. Assim, sobrariam 4000m2 para as áreas não-expositivas.

Caso além do galpão seja possível incorporar o quarteirão a norte, poderia-se deixar todas as áreas não-expositivas nessa área, e usar o galpão apenas para as exposições. Nesse caso, pode ser feita uma dança das cadeiras de subtemas, para deslocar mais deles para o piso térreo.

1 - Subsolo - o tráfico:

  • A experiência dos escravos no tráfico - do Sudão às Minas Gerais. Os comedores de gente.
  • A importância da acumulação de capital na Europa - comerciantes e estaleiros no Rio colonial
  • A formação dos estados caçadores de gente na África
  • O cais do Valongo e seus antecessores no Rio de Janeiro; outros portos de escravos mundo afora.
  • O panfleto do Brooks, abolicionismo, e abolição do tráfico. Os esquadrões ingleses.
  • A escravidão árabe nos séculos XIX-XX.

2 - Térreo - A escravidão na América

  • Os principais fluxos
  • A experiência dos escravos, de eito e de casa
  • A importância econômica da escravidão
  • Pretos livres e não tão livres. Reapresamento.
  • Resistência individual e quilombola; mistura com índios
  • A escravidão indígena; as bandeiras e as missões
  • A abolição nas américas. Haiti e repúblicas hispânicas. Guerra civil americana.
  • A abolição no Brasil e os quilombos urbanos
  • O legado da escravidão - desigualdade e racismo. Decreto de 98. “Embranquecimento.” Jim Crow. Direitos civis e movimentos negros.
  • Quilombos hoje
  • Origem dos imigrantes forçados no Brasil e no Rio.

3 -  Galeria - A escravidão mundo afora

  • Escravidão antiga; as minas helênicas e persas. Os latifundia romanos.
  • Relação de sociedades escravistas vs. sociedades com escravidão.
  • Os fluxos de escravos radanitas na Europa da alta idade média e a palavra escravo.
  • Diferentes escravidões (de mercado, da gleba, pessoal)
  • Depois da abolição: os cules asiáticos
  • A escravidão ilegal hoje

4 - Galeria - A África ocidental


  • História das sociedades das áreas emissoras.
  • Arte e cultura clássica idem
  • Religiões de matriz africana no Brasil
  • Imigrantes africanos de hoje no Brasil

5 - Edifício importadora Mercantil (retrofit e adaptação)

  • Administração, ensino, e divulgação.
  • Reserva
  • Biblioteca
  • Lojinha
  • Café/restaurante
  • Auditórios
  • Exposição (último andar) sobre a história do porto do Rio de Janeiro

6 - Pro Matre (destruída e feito novo edifício, que articulasse os edifícios do armazém de Rebouças e da Importadora Mercantil)

  • Pesquisa
  • Reserva
  • Exposições contemporâneas? (Obras de arte contemporâneas tendem a ser grandotas.)
  • Estacionamentos subterrâneos? (com 3 andares, teria-se 10.000m2, o bastante para 400 carros)
  • Grande auditório?





Fontes de acervo/instituições a cooperar:

Memorial dos Pretos Novos http://www.museusdorio.com.br/joomla/index.php?option=com_k2&view=item&id=83:memorial-dos-pretos-novos
Centro Cultural José Bonifácio
Museu histórico nacional
Museu nacional
Museu afro-brasil
Biblioteca nacional
Arquivo histórico nacional
Banco do Brasil
www.slavevoyages.org (The Transatlantic Slave Trade Database)
Arquivo nacional do Reino Unido
Arquivos municipais da cidade de Marselha
Arquivo nacional da torre do Tombo


Bibliografia

Slavery and Social Death
O Trato dos Viventes
Visões da Liberdade
O Rio de Janeiro do Século XVIII
Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue
O Navio Negreiro (Rediker)
The Many-Headed Hydra