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30.3.12

Falsa Equivalência II

Uma das coisas que mais costumam me irritar, e um dos recursos favoritos de quem defende (por ingenuidade ou interesse, ou os dois) uma situação opressora, é a falsa equivalência. Para deixar claro o que é a falsa equivalência, ela não é qualquer caso em que se apresenta como iguais coisas díspares: se alguém disser "maçãs são uma fruta pouco doce" e alguém disser "é, mas carne é vermelha," isso não será uma falsa equivalência. Será um non sequitur. Falsa equivalência é quando se reduz a diferença entre duas situações apresentando sua característica em comum. Para o exemplo absurdo, é algo como "Roubar uma maçã é crime, genocídio é um crime. Sou contra ambos porque são crimes." Pera, deixa eu melhorar a coisa: "Helmut roubou meia dúzia de maçãs. Adolf cometeu meia dúzia de genocídios. Me recuso a dizer que Adolf é pior do que Adolf, porque ambos cometeram crimes." É um truque de prestidigitação, como a maioria das falácias que fazem parte da maleta do retórico. Usa uma verdade (ambas as coisas são crimes) para escamotear uma diferença importante.

A falácia da falsa equivalência é, obviamente, sempre utilizada por quem toma o lado mais errado numa disputa. Sempre que as ações erradas desse lado são (por qualquer razão) indisfarçáveis, pode-se, ou bem lançar mão do contrafatual ("se pudesse, ele faria pior"), ou bem da falsa equivalência. Assim é com os defensores daquilo que eles chamam de Regime Militar, e da gloriosa revolução de 31 de Março de 1964. Também conhecida como golpe de 64, e ocorrida entre 31 de Março e 1º de Abril de 1964. Estranhamente, os generais não contaram o dia de sua vitória, 1º de Abril, como o marco inicial da revolução.

Nota: estou chamando este post de "Falsa Equivalência II" porque o I seria este aqui sobre Orgulho Branco.

Os defensores do golpe militar, e da ditadura que se lhe sucedeu, e durou mais de um quarto de século, praticam tanto a falsa equivalência quanto seu irmão-oposto, que fala que nada que não seja o tipo perfeito e platônico de uma categoria lhe pertence. A ditadura brasileira, parafraseando a Folha de São Paulo, não foi uma ditadura, mas uma "ditabranda" em comparação com as piores ditaduras do mundo. A frase é ofensiva a qualquer pessoa com o mínimo de neurônios, e não só a quem foi morto e torturado pela ditabranda, claro. Se assim fosse, nem Stalin e Mao foram tão ruins assim, porque não foram Hitler.

Há outras falsas equivalências, mais diretas. Por exemplo, a de que "a lei da anistia vale pra todos, se for revogá-la vão ter que prender também a Dilma e os outros esquerdistas." Ora, em sua imensa maioria aqueles esquerdistas envolvidos na luta armada contra a ditadura JÁ FORAM PUNIDOS. Foram mais do que punidos, já que nem sequer a legislação da própria ditadura previa eletrochoque, privação sensória, pau de arara, ácido na genitália, ou outras brandas gentilezas ensinadas aos torturadores brasileiros e latinoamericanos pelos legionários franceses. Os anistiados pela lei de anistia foram aquelas pessoas que não cometeram nenhum crime que não fosse político. Se é esse o problema, ótimo. Revoga-se a lei da anistia para todos aqueles culpados unicamente de crimes políticos. Tá feliz?

Outra: de que "tanto militares quando terroristas cometeram crimes, não há diferença entre eles." Essa é prima, na verdade, se mais encorpada e com mais mentira, da idéia contemporânea que contrapõe direitos humanos e "direitos dos humanos direitos," na frase de Serra e Alckmin. Prima porque iguala pessoas cometendo crimes e o Estado os cometendo; e é surreal que gente de direita, que reinvindica uma tradição liberal e defensora do particular frente ao Estado, não veja essa diferença. E maior e mais encorpada porque, ao contrário dos traficantes de drogas, os estudantes que participaram da luta armada contra a ditadura não mataram e torturaram às centenas. Claro, mataram algumas pessoas em suas ações. Era uma luta armada, afinal de contas. Mas qualquer conta simples vai ver que não são escalas nem remotamente comparáveis. Aliás, se houvesse algum tipo de equivalência, não apenas os generais não agiriam contra a abertura dos arquivos da ditadura como seriam os primeiros a mostrá-los em sua defesa.

Mais uma: "tal blog de esquerda age como agiriam os militares." Essa quase no nível da comparação entre Helmut e Adolf. Vamos lá, censurar um comentário não é a mesma coisa que fechar órgãos de imprensa e torturar jornalistas de baciada. A esquerda está na Presidência da República faz 10 anos; a oposição ao regime militar há 18. Sabe quantos órgãos de imprensa foram fechados por fazer oposição desde então? Zero. No caso do PT, nem judicialmente, o que é fácil no Brasil, foi feito algo contra a imprensa. Alguém imagina a Veja, em 1969, fazendo capas com o Costa e Silva de polvo satânico?

É claro que a falsa equivalência não é o único argumento dos granadeiros e de suas vivandeiras. Também há o contrafatual. Ele é assim: "não se sabe como seria a esquerda se tivesse ganho." Ora, é verdade, não se sabe. Mas, fora de alguns contos de ficção científica mais surrealistas, não se imputa a ninguém um crime que "poderia" ter cometido. Vai saber se dona Amélia do apartamento 5 não seria, em outra situação, uma terrível serial killer? Isso a torna certamente pior do que o sujeito que matou uma pessoa, não? Pois é, o contrafatual a favor da ditadura é exatamente esse. Não há como saber o que aconteceria se "a esquerda" (qual delas?) da época tomasse o poder, porque não tomou. Há como saber duas coisas:

A) quando a esquerda, lato sensu que inclui a oposição da época, via PSDB e depois o PT, chegou ao poder, não praticou censura, tortura e assassinato de seus opositores em massa, e

B) não havia muita chance de qualquer tipo de revolução comunista, razão alegada pelos militares para o golpe, acontecer no Brasil. As próprias rapidez e facilidade com que o golpe aconteceu confirma isso - não custa lembrar que os navios americanos da Operação Brother Sam nem tiveram que chegar ao Brasil, levando a que fossem considerados por muito tempo uma invenção paranóica da esquerda.

Falsa equivalência, contrafato, truculência, segredo. Não são exatamente o tipo de argumento usado por quem se acha inocente.

27.3.12

A Orkutização do Brasil

Corre o Facebook brasileiro uma notícia apócrifa na qual Mark Zuckerberg reclama dos brasileiros:

O mau comportamento dos brasileiros na Internet é conhecido em todo o mundo, assim com fizemos no Orkut, estragando, tornando-o um show de Spams e Imagens animadas e brilhantes com recados carinhosos, religiosos e alguns com muitos interesses publicitários, o Facebook está sofrendo.

O canal de notícias CNN disse que Mark Zuckerberg está triste com o comportamento dos brasileiros na rede social Facebook. “Se por um lado, os brasileiros fazem o Facebook crescer, por outro estragam tudo”, disse.

Os engenheiros do Facebook estavam pensando em permitir a inserção de imagens no formato gifs animados (imagens com movimento), mas Mark impediu a ideia por causa do Brasil. Segundo Mark, se o Facebook abrir espaço para os Gifs, o compartilhamento entre os usuários brasileiros ficará igual ao Orkut, cheio de letrinhas coloridas, se mexendo, com mensagens de carinho e amor.

Sobre a possibilidade de fechar o Facebook no Brasil, Mark descarta. “Não irei censurar os brasileiros de usarem a rede, mas criarei um manual de comportamento”.

Ao ser interrogado sobre o Facebook está se transformando em um Orkut, no Brasil, Mark disse que não existe diferença entre as redes sociais, a diferença está em quem usa. “Qualquer serviço na Internet que tenha usuários brasileiros, em grandes proporções, vira um problema”, disse.


A notícia, obviamente falsa (mesmo que pensasse assim, Zuckerberg não ficou bilionário falando verdades inconvenientes a públicos-alvo), não deixa de ser curiosa pelo que revela da Weltanschauung brasileira. Ela é, afinal, apenas a transposição para a boca de uma autoridade estrangeira (sim, em se tratando de Facebook, MZ é uma, talvez a autoridade) de uma diatribe comum nas redes sociais brazucas, contra a "orkutização" do Facebook. O termo não é usado na fala de "Mark Zuckerberg," mas há referência ao Orkut, quase desconhecido no resto do mundo e que, por coincidência, ficou associado no Brasil ao povão.

Preconceitos internéticos contra este ou aquele serviço existem mundo afora, mas eles em geral seguem linhas de afinidade tecnológica e/ou idade. O exclusivismo, embora tenha às vezes algum viés de classe, não tem nela sua bandeira desfraldada. Não é que não exista preconceito de classe fora daqui, longe disso - a volúpia com que americanos comuns chamam rednecks de mutantes incestuosos e (sic) racistas é de fazer corar um skinhead do sul maravilha brasileiro nos seus piores momentos. Mas é que esse preconceito não se alinhou, tanto quanto eu saiba, com a exclusão digital de forma tão patente em qualquer outro lugar do mundo. Não deixa de ser uma reação: o homem de bem vê um Brasil que, mais lentamente do que eu gostaria e com muitos retrocessos, vai deixando de ser um país só para ele e os seus. Se preparem que o Brasil ainda vai se orkutizar muito.

Outra peculiaridade é o entusiasmo demonstrado por muitos brasileiros (além do próprio autor do texto) pelas palavras do "Mark Zuckerberg." Alguém imagina um americano falando mal dos EUA desse jeito? Não deixa de ser a transposição para a Internet da velha fala do homem de bem, "só podia ser brasileiro" - outra frase impensável na boca de um americano. O brasileiro de classe média, em geral, pode até declarar seu patriotismo, mas duplamente pensará também que o Brasil é uma porcaria; o xingamento do Brasil (não crítica) só é vetado aos estrangeiros e olhe lá que as opiniões se dividirão entre os apoiadores e os que acham que tem razão, mas não deveria falar isso porque é estrangeiro.

O sentimento de patriotismo brasileiro antes é dedicado ao seu estado do que ao seu país - é igualmente difícil de imaginar alguém dizendo que uma porcaria "só podia ser paulista/mineira/etc." Não é um assunto sem consequências - a fragilidade de sentimento solidário da federação brasileira se reflete em uma fragilidade política. O Brasil é dos países com menor transferência de dinheiro via governo entre regiões mais ricas e mais pobres; ausente o bolsa-família e a aposentadoria rural, essa transferência seria regressiva. Nos EUA modelo de capitalismo, essa transferência é bem mais benéfica a estados mais pobres, mesmo essa diferença de renda sendo bem menor do que a brasileira.

26.3.12

Somos todos ménilboneanos

Um dos temas recorrentes da ficção científica e da fantasia é a possibilidade de se moldar a natureza humana através da ciência, criando novos estratos da humanidade, seja de maneira utilitária (são os varnas do Admirável Mundo Novo do Huxley, dos Epsilons idiotas à elite Alfa), seja por motivos estéticos. No segundo caso, em particular, isso tem sido apresentado como (caso se trate de modificações impostas, e não de automodificação) uma expressão particularmente perversa de uma elite decadente. No começo, a questão levantada pende para o lado da decana da ficção científica, Mary Shelley, e do seu monstro de Frankenstein. A própria Mary Shelley falava da blasfêmia de criar vida, mas é claro que essa blasfêmia era ainda maior porque a vida criada era a do próprio ser humano.

Eventualmente, entretanto - e até pelo fato do Frankenstein ser praticamente o tratamento definitivo da questão com que lida - se foi além, falando do horror da criação finalística de seres humanos, e, eventualmente, de seres biológicos conscientes de modo geral. Biológicos, sim, porque devido a algum, chamemo-lo de biochauvinismo, o tratamento dado a inteligências artificiais nem sempre levantou o mesmo tipo de questionamento ético; da enorme produção dos Contos de Robôs de Asimov, só uma minoria o faz, enquanto outros assumem aprioristicamente que os robôs-escravos, felizes com sua condição, só têm problemas com humanos maus. (Se você acaba de imaginar o Asimov vestido de coroné do antebellum americano, problema seu.)

Eventualmente, o questionamento da ética de se tratar robôs migrou, conforme foi se deixando de lado a noção pré-concebida de que haveria algo único e irreplicável em nossa arquitetura biológica de inteligência, do tratamento de quase-animais (ainda que poderosos ou idiots savants) para o tratamento de deuses encarnados. Mas vamos ficar com os animais, e sair um pouco da ficção científica: o movimento dos direitos dos animais, iniciado no final dos anos 70, com gente como Peter Singer, tem aumentado de popularidade. Em linhas gerais, o questionamento do movimento estende essa preocupação da ficção científica para além do humano ou do inteligente para todo ser capaz de sentir - apesar de essa não ser uma definição óbvia ou natural. Uma consequência natural desse movimento é o veganismo; uma luta dele, aquela contra as formas de crueldade mais absurdas pelas quais passam animais, tais como as fazendas industriais ou esportes de sangue. Uma menos natural, mas ainda lógica, para alguns de seus exponentes, como o Peter Singer aí, é a defesa da zoofilia...

A complicação é que a versão vulgar da defesa dos animais parece pautada, acima de tudo, pela aparência e pelo sentimento. Assim, é mais comum que se veja pessoas opostas às corridas de touros do que a comer carne - e não falo de comer carne criada em fazendas industriais, coisa que a maioria das pessoas admite que não é uma coisa muito legal, mas comeríamos carne orgânica se estivesse disponível a preço módico. Mesmo um boi "orgânico" sofre tratamento similar ao longo de toda sua vida - com amarras, ferros em brasa, eletrochoques, castração a frio, e outras crueldades - ao que o touro de lida sofre num único dia. Qualquer bife é milhares de vezes mais cruel do que uma tourada. Mas ok, essa atitude díspar, que não sei se pode ser chamada exatamente de hipocrisia, não é exatamente peculiar à espécie bovina, e seres humanos também se preocupam muito mais com sofrimentos espetaculares e únicos do que com aqueles recorrentes, com os que não lhes dizem respeito do que com os que lhes dão prazer. (O prazer, e não a necessidade alimentícia, é responsável pelo consumo de carne, já que outras proteínas poderiam substituir a dita-cuja.)

Que as duas questões éticas - animais como sujeitos de direitos e os direitos daqueles que são diferentes do humano mas ainda sujeitos de direito - não ultrapassaram os salões das faculdades de filosofia, entretanto, pode ser visto com ainda maior intensidade no que compete aos animais de estimação. Afinal, vamos lá: se animais têm direitos comparáveis aos direitos humanos, o quão ética poderia ser a criação e manipulação genética deliberada deles, para fins estético-recreativos? Não estou questionando a própria instituição da posse de animais, já que é legítimo pensar que o direito a não ser escravo é um direito específico da humanidade, derivado da consciência e não da capacidade de sentir. Mas é difícil pensar em uma violação de um indivíduo mais essencial do que a manipulação da sua própria natureza - que é o que acontece com todas as raças de animais, por definição. Et pourtant, o não é muito grande o número de defensores dos animais que advogam pela proibição de criadores e raças (e pela castração das raças tão deformadas que seu nascimento inicia uma vida de sofrimento, como buldogues e pinschers). As necessidades afetivas das pessoas em terem animais de estimação, isoladas do prazer em formas e características distintas e padronizadas, podem perfeitamente ser satisfeitas com vira-latas, afinal.

(Este não é o argumento ecológico contra criadouros felinos e caninos, defendido neste blog há um tempo atrás. Mas aquele também vale.)

22.3.12

Wolves at the door

O lobo é dos animais mais próximos, em seu comportamento social e nicho ecológico, do homem. Até por isso, foi o primeiro bicho a ser domesticado por nossos antepassados paleolíticos, há tanto tempo atrás que naquela época a Hebe era virgem. (Entre 7.000 e 35.000 anos atrás, pra ser exato.) Apesar, ou talvez por causa disso, nosso relacionamento com os lobos que permaneceram do outro lado da cerca sempre foi violenta como o são as brigas de família. Lobos comem a Chapeuzinho Vermelho, servem de montaria a Orcs, derrubam casas de porquinhos, comem o sol, a lua, e os deuses... há exceções, claro. As lobas parecem gostar de criar humaninhos, de Rômulo e Remo a Mowgli. Entre os povos da estepe asiática (aonde talvez tenha ocorrido a primeira domesticação) o lobo é um ancestral honrado; entre os russos, talvez por influência dos ex-patrões mongóis, o lobo é mais uma figura de trapaceiro, à João Malasartes, do que uma fera terrível. Mesmo quando é uma fera, entretanto, ele é geralmente mais loquaz, mais razoável, bem falante do que outros animais antropófagos, como o urso, o tigre, ou o crocodilo.

Fora da mitologia, as coisas são mais simples: animais perigosos deviam ser mortos. Assim é que os lobos foram extintos da Inglaterra ainda no século XV, e na Europa como um todo sobrevivem apenas em cadeias montanhosas remotas; o lobo perdeu mais território do que a maioria dos animais jamais teve. Não havia espaço para um predador cooperativo, eficiente, e faminto num campo aonde seres humanos trabalhavam. Entretanto, conforme o homem deixou de ser cercado pelo mundo e passou a cercá-lo, conforme a natureza foi se transformando em parque, em alguns lugares o bicho foi sendo reintroduzido. Hoje, pode-se encontrar lobos novamente na Escócia ou nos EUA ciscanadenses.

Nem todo mundo, evidentemente, compartilha da visão do mundo como um parque; fazendeiros das áreas em que foram reintroduzidos os lobos não são, em geral, lá muito simpáticos à idéia. Um dos problemas enfrentados na reintrodução se torna, portanto, o convencimento desse povo. Mas tem gente em escritórios mais remotos que pretende matar lobos por motivos racionais, se não muito simpáticos, e um tanto dadaístas. Assim, o governo canadense está matando lobos em prol do meio ambiente. Ou melhor, dos rebanhos de renas. A lógica é a seguinte: a extração de petróleo de areias alcatroadas, além de ser dez vezes pior para o efeito estufa do que a versão comum, provoca uma enorme degradação do ambiente ao redor. São rios secos, montanhas de enxofre, planícies de terra arrasada. Um cenário apocalíptico, no qual os rebanhos de renas não podem encontrar muita comida. Com seu habitat reduzido, os rebanhos sofrem uma pressão negativa; para "salvá-los," ao invés de minimizar os danos do petróleo (o que, ok, não é muito viável), retira outra pressão negativa. IE os lobos.

Nos EUA a coisa é mais, digamos, tradicional. Assim como nos tempos paleolíticos, os lobos são mortos porque competem com os caçadores humanos. Registre-se que nenhum dos dois casos representa ameaça à existência do lobo como espécie, que é classificada pela IUCN como "preocupação mínima." Só são vagamente degradantes - especialmente porque são praticados justamente pelos respectivos departamentos do meio ambiente, distorcendo a visão que levou à criação desses departamentos e ministérios.

21.3.12

Realpolitik e a pata manca

Talvez seja exagero chamar Dilma de pata manca precoce, mas isso só o tempo dirá. Que, hoje, tem cara, tem. Seu governo se restringe a tocar o barco e a defenestrações ministeriais. A alegação é, sempre, satisfazer as bases, fazer o possível - apesar das "bases," em ambos os significados de aliados políticos e massa militante, não estarem nem um pouco satisfeitos. É um leitmotif dos argumentos em defesa de ações governamentais, no mundo inteiro, a necessidade, o pragmatismo. Não se faz o ideal, mas o possível. Ora, essa alegação é, inegavelmente, sempre verdadeira, sendo virtuosos ou escusos os objetivos do governo; ninguém, nem mesmo o mais férreo autocrata, jamais vê suas vontades integralmente efetivadas no mundo real. Nem Quéops, nem Gengis Cã, nem Qianlong, Alexandre Magno ou o autocrata de sua preferência. A questão é que o pragmatismo é usado como desculpa para encobrir dois grandes vícios de governo, a mediocridade e o que vou chamar de teriomania, e que com uma assustadora frequência leva o nome de Realpolitik.

A mediocridade é simples, se danosa: a lógica do poder - como qualquer coisa que é vista como amealhável, como capital - é a acumulação. Não se gasta capital político, mas se consolida. Não se deve gastá-lo nesta ocasião, porque deve ser reservado para assuntos importantes. Nem nesta. Nem nesta. E assim se vai perpetuando uma situação de imobilismo, ou melhor, de inércia (movimentos anteriores são perpetuados). Assim, Dilma tem a maior base parlamentar de qualquer presidente da história do Brasil - mas nunca impõe à sua base que vote desta ou daquela maneira, porque isso significaria perder seu apoio. Nem tampouco abre mão dessa base em momento algum. Não há o julgamento pragmático de quando isso vale a pena, mas a necessidade quase atávica de acumular deputados, como um esquilo se preparando para um inverno que nunca virá.

A teriomania é um pouco mais curiosa. Ela se desenvolve a partir do momento em que alguém identifica coisas moralmente condenáveis que por outro lado são vistas como necessárias. Ora, como aquele que vai em frente e comete o malfeito necessário não tem, em geral, vocação para aquele Judas do conto de Borges, que redimia os pecados do mundo sendo condenado ao inferno, convertem em uma ação particularmente moral a transgressão moral. São virtuosos porque se dispuseram a tomar para si os pecados, para que a sociedade sobrevivesse. São melhores do que aqueles que não se dispõem a tomar esses golpes morais em nome do bem maior. A progressão tem uma conclusão lógica: aquele que empreende ações imorais por fins morais é superior àquele que para os mesmos fins apenas usa meios morais.

Assim é que ninguém fala que em nome da Realpolitik, talvez devamos limpar o meio ambiente. Talvez seja uma ação de Realpolitik tirar as bases americanas do Oriente Médio. A Realpolitik não faria com que um grupo numeroso e politicamente amorfo como os homossexuais valesse mais em termos de cortejamento eleitoral do que um grupo igualmente numeroso, mas politicamente definido e influenciável por líderes definidos como os evangélicos. A Realpolitik não faria com que se aumentasse o IRPF no começo do mandato, para melhorar as finanças do governo. Etc. etc. etc... Essa noção de pragmatismo sempre irá, preferencialmente, seguir pelo caminho considerado moralmente questionável. É por isso, em parte, que partidos de esquerda, quando estão no poder em posições não tão seguras, são muitas vezes mais realistas do que o rei mercado.

Não é a única coisa que faz Dilma se acochambrar tanto com os interesses obscuros da política, claro. Existem casos de pragmatismo real. Existem avaliações erradas. Existem problemas de incapacidade pessoal. Dilma, afinal, não é política. Estreou em cargos eleitos como presidente. Está acostumada a mandar, o que podia fazer como ministra, mas não sabe o que fazer quando o esporro é devolvido e não pode mandar - ou seja, na relação com os outros poderes da República.

O novo Código Florestal, ou a adulteração dos royalties de hidrocarbonetos, são questões reais da relação de forças no Congresso. A bancada ruralista é mais coesa do que a imensa maioria dos partidos brasileiros (sim, coesa de parlamentares votarem contra seus próprios interesses e opiniões, se for fechada questão), representa um terço do Congresso, e tem interesse direto no desmatamento. Os royalties do petróleo são cobiçados pelas três quartas partes dos deputados e oito em cada nove senadores. Dilma não se opõe diretamente porque sabe que seria derrotada, e tegiversa.

Por outro lado, a constante reação assustada à bancada evangélica é uma combinação de leitura errada, covardia, e teriomania. Leitura errada porque a bancada evangélica é superestimada e mal avaliada - não é coesa em absoluto, nem é tão forte assim. Nem é, em sua maioria, particularmente avessa aos mesmos incentivos materiais que seduzem o resto da "base aliada." Não foi eleita, em muitos casos, como evangélica. Os 71 parlamentares listado como "da bancada evangélica" (menos de metade do número dos ruralistas) são todos aqueles que participam da Frente Parlamentar Evangélica, o que não significa mais do que uma carteirinha de clube; cada parlamentar participa de várias "frentes." (Tem Frente Parlamentar até de apoio a hidrovias.) Mesmo se você tirar da conta do neopentecostalismo deles o preconceito que é a única coisa que defendem, e que é defendido por outros, não há indicação - para além do barulho - de que seria eleitoralmente problemático. Mas a covardia confunde barulho com força; a teriomania torna prazeroso o ato de tapar o nariz para sentar-se à mesa com Edir Macedo, dono da Record e de Crivella. E assim temos os afagos e mimos aos evangélicos.

PS diga-se, sobre Crivella, que o ministério da Pesca não significa p. nenhuma. Além de não dever existir. O que dói nos afagos aos evangélicos é o abandono de programas de direitos humanos.

PPS que o preconceito não se restringe aos evangélicos, e que o tom de histeria anti-LGBT não é de agora deve ser admitido vide esta cena de 2005.