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30.6.11

Resumo de posição

Tive que responder essa pergunta, e por isso peguei e recauchutei um texto antigo deste blog.

O racismo à brasileira tem suas peculiaridades que o diferenciam dos outros modelos de racismo conhecidos. Algumas pessoas o consideram apenas como uma questão de classes sociais e outros acreditam na existência de preconceito e discriminação racial em relação aos não brancos. Utilizando-se de argumentos em apoio, como você se posiciona diante dessa ambiguidade?



Quando se fala em racismo no Brasil, uma argumentação recorrente se baseia na idéia de que "é difícil definir quem é o quê no Brasil.” A ideia tem uma base real na comparação com os EUA,* em que o racismo é primariamente baseado na ascendência, mais binário e fácil de identificar portanto em contraste com o racismo brasileiro baseado (de novo, primariamente) na aparência física. Mesmo que não haja mais nos EUA leis, como havia antigamente**, definindo qual a proporção de sangue negro que faz de alguém negro, a definição ainda é simples, e um afro-descendente que queira dizer que é branco estará "passing," fingindo, ao contrário daqui, em que a mesma pessoa será branca de verdade. O problema dessa formulação é que ela tem uma meia-verdade embutida, e que é irrelevante mesmo naquelas ocasiões em que seria verdade.

A meia verdade: é difícil definir exatamente quem é o que no Brasil, dentro de uma fatia específica da população, que inclui parte dos "pardos" e parte dos "brancos. Não em geral. A Benedita da Silva é preta, e ninguém duvida disso. A Martha Suplicy é branca. O Vicentinho e a Marina Silva já são mais complicados. E notem, apesar de ser interessante em termos políticos e de conscientização rejeitar a classificação trinária do IBGE em favor de uma dualidade branco/negro, a situação dos "pretos" é, em todo o Brasil, muito pior do que a dos "pardos." Mesmo tirando todas as variáveis exóticas. Pretos vivem mais separados dos brancos, têm menos valor no "mercado" matrimonial, ganham menos, são mais revistados pela polícia... OK, fazendo a eterna comparação com os EUA, que mesmo os pretos ainda sofrem de discriminação matrimonial umas vinte vezes menor do que nos EUA, com a pior região metropolitana brasileira, o Vale do Itajaí,**** tendo a mesma segregação matrimonial que a melhor americana, Washington.

A irrelevância: uma distinção clara entre grupos humanos não é condição necessária nem suficiente para o preconceito, ao contrário da teoria senso-comunista de que o racismo advém da observação das diferenças. Não só o racismo em suas diversas encarnações, da cordial à apartada, como até a xenofobia, que é muito mais radical e rejeita o contato, prescinde da possibilidade de distinção clara. A guerra da Bósnia é um exemplo: na Bósnia-Herzegovina pré-dissolução, a população falava serbo-croata. Não existe distinção física nem de sotaque. Dos 60% que responderam alguma coisa ao invés de simplesmente "iugoslavo" ao Censo, 36% se casavam com gente do "outro grupo." O sentimento religioso não era nem é particularmente pronunciado. A segregação residencial estava abaixo de 25iv* E conseguiram, mesmo assim, entrar em uma guerra étnica.

Do mesmo modo, o racismo no Brasil nunca precisou de uma distinção clara para se perpetuar. Nunca houve barreiras definidas, e nunca houve entraves ao contato – desde que fosse iniciado pelo indivíduo que está acima na escala. O senhor de engenho podia permitir ao escravo do eito que tomasse uma pinga junto dele; o contrário nem pensar. O racismo brasileiro, se quiser assim, segue uma lógica individualista, "de mercado," que se opõe à lógica de castas do racismo americano ou sul-africano v*, mas não deixa de ser reafirmador de hierarquias por isso em momento algum. Ao invés de ser enfiado pela sociedade numa casta específica, o indivíduo tem uma certa quantidade de "capital racial," (d'après Bourdieu) que ele utiliza junto com "capital social," "capital educacional,' "capital monetário” e afins. A questão é que esse capital racial não tem nenhuma tendência maior à equalização ao longo do tempo do que os outros capitais; pelo contrário, a tendência do capital é centrípeta, é que aqueles que têm mais vão ganhando cada vez mais.

Claro que isso não impede que haja outras formas de preconceito no Brasil, e que elas infelizmente não disponham da mesma quantidade de inimigos que o racismo. Não só o preconceito social é aceito; preconceitos étnicos diversos também são, dos mais leves ("aquele turco safado", "japoneses (que podem ser de qualquer origem asiática) são bitolados," "parece coisa de judeu") ao mais comum e, por ser exclusivamente brasileiro, não identificado como preconceito étnico, que é o preconceito contra nordestinos. Que, evidentemente, não é um preconceito contra nordestinos em geral; nenhum Jereissati ou Magalhães jamais sofreu discriminação por ser nordestino. O preconceito contra os “baianos” paulistas e “paraíbas” cariocas é um preconceito contra os mestiços do sertão nordestino – que, aliás, distorcem, por muitos deles responderem “branco” ao IBGE, baseados em hierarquias locais, as próprias estatísticas raciais brasileiras – se mudássemos de categoria a eles, ou criássemos uma nova, as desigualdades raciais se tornariam ainda mais gritantes.

Até há pouquíssimo tempo atrás, o Brasil, oficialmente, era um país em que não havia racismo, como apregoado pelos relatórios brasileiros sobre racismo enviados à ONU. Essa mentira já foi denunciada no genérico, mas ainda não no particular, a ponto de se ter a situação em que racismo é crime inafiançável, mas os milhares de casos cotidianos - da pessoa preta que não pode usar o elevador social ao ministro do Supremo Tribunal Federal quase barrado pelos seguranças na própria possevi* - não geram condenações. É uma falácia falar de outros males brasileiros, ou mesmo de outros preconceitos, como argumento contra a luta anti-racista; uma coisa não exclui a outra - e, cinicamente, eliminar preconceitos de classe numa sociedade capitalista é um pouquinho difícil. O que gera um efeito interessante - a interação do racismo brasileiro com o preconceito de classe, ao mesmo tempo que minora a radicalidade desse racismo (mas não sua violência), o torna mais difícil de eliminar.




*A comparação é inevitável; no universo conceitual brasileiro, o etnocentrismo está mais centrado na metrópole do que cá na colônia.

**E ainda há para os índios.

***Sim, tanto pra uma quanto pra outra a quantidade de pretos (VdI) e negros (DC) na população geral já tendo sido levada em conta e eliminada.

IV* Para efeito de comparação, o mesmo índice, de dissimilaridade espacial, varia para negros (BR: pardos+pretos) entre 37(SP, RJ, PoA) e 48 (Salvador) no Brasil, e entre 75(NY) e 92(Chicago) nos EUA.

V* O racismo na Europa, apesar de se constituir basicamente em preconceito étnico, é ainda uma terceira história, embora tenha, na França desde as levas imigratórias da virada do século e na Grã-Bretanha desde a leva caribenha pós-descolonização, características que se assemelham mais na forma ao modelo americano, e no resultado ao modelo brasileiro.

VI* Depondo contra a teoria da exclusividade do preconceito social; afinal de contas, é um juiz, velho e bem vestido tentando entrar no Supremo, não um sujeito em trapos. Ou, ao inverso, disse uma tia-avó minha uma vez sobre o próprio filho, "ele entrou no aeroporto todo sujo e cheio de craca nas pernas. Ainda bem que ele é branquinho, senão tinham jogado ele no lixo."

29.6.11

Dez anos de ação afirmativa, e a repetitiva miséria da estatística

Dez anos depois de iniciada a ação afirmativa pública beneficiando negros (não custa lembrar, de novo, que a ação afirmativa beneficiando brancos existiu no Brasil), sai uma matéria da Folha sobre o assunto, baseada na PNAD.

A matéria é mal escrita toda a vida, não sei se porque quer forçar a barra para dizer que as cotas são inúteis e o setor privado melhor ou pela costumeira falta de familiaridade com as estatísticas. A chamada é "Após dez anos de cotas, crescimento de pretos e pardos foi menor nas públicas." Ora, (e o que faz talvez pender a conta para a má-fé contra a burrice), em momento algum ela fala da proporção dos negros no ensino superior privado, só nas universidades públicas e na população em geral. Então, mesmo deixando de lado os fatos que explicariam muito bem um crescimento tendencial (isso é, na hipótese sem as cotas para o período) muito menor dos negros nas públicas, não é possível, apenas pelos dados apresentados na matéria, sequer concluir se a alegação dela é ou não verdade. O que eles apresentam é que o número de alunos negros em universidades privadas aumentou mais, em termos absolutos, do que nas públicas, assim como o número de alunos em geral. Assim:


Dados tabulados pela Folha a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE mostram que, no ensino superior, a proporção de auto declarados pretos e pardos cresceu de 21% para 35% de 2001 a 2009.

No ensino superior público, o aumento foi de 314 mil para 530 mil, uma variação de 69%. No privado, o crescimento foi de 264%, de 447 mil para 1,6 milhão. No total da população, a proporção desses grupos variou de 46% para 51%.


Cavucando um pouco, vê-se que eram, em 2009, cinco milhões de alunos em universidades particulares, o que faz os 1,6 milhões de negros mencionados representarem algo como 32% do total - índice um pouco inferior ao das públicas. Em 2001, de novo cavucando um pouco, vemos que haviam 2,091 milhões de estudantes em escolas particulares, dos quais os 447 mil negros representavam 21%. Índice, à época, exatamente igual ao das escolas públicas, portanto. IE foi nas públicas que a proporção de negros avançou (um pouquinho) mais.

E isso, claro, sem levar em consideração que, no Brasil, as universidades públicas são as melhores universidades, com exceções pouco significativas estatisticamente - as universidades católicas, as luteranas, a FAAP, a Cândido Mendes e o IBMec, e que portanto o impacto social de ter acesso a um curso de medicina na USP (ou na UFABC que apesar de novinha já é, por índices bibliométricos, a melhor do Brasil) não é o mesmo de ter acesso a um curso de direito na Universo ou na Uniban. Ou que, vendo a coisa pela outra ótica, é mais fácil para a classe média baixa a que pertence a maioria desses estudantes negros passar para uma dessas universidades particulares, sem sistema de ação afirmativa.

28.6.11

Substituição de importações ao contrário

Lelé propõe que as habitações populares no Brasil deixem de ser uma porcaria do lado estético. E um grande segundo passo nesse sentido (o primeiro é mesmo ter simplesmente a idéia de que isso é possível) seria começar a ter concursos de arquitetura, e concursos que fossem levados a sério, para projetos públicos. Nesse sentido, Lelé ter sido chamado pela Dilma para dar uma garibada no visual do Minha Casa Minha Vida faz parte do problema, junto com as 1,623,596 obras públicas feitas pelo escritório Niemeyer a convite, e que não passam de reciclagens infinitas da Oca do Ibirapuera. Pelo escritório, porque não creio que ninguém acredite que o Niemeyer ainda faça alguma coisa.

Quando falo em concurso levado a sério, estou pensando no fato de que mesmo quando há algum tipo de concurso público no Brasil, os mesmos arquitetos, com as conexões certas, invariavelmente são os ganhadores. Qualquer um que se interesse por arquitetura contemporânea logo vai reparar que a quantidade de coisas inovadoras e/ou boas por aqui é muito menor do que na maioria dos países com um rol de novas construções equivalentes, e não se pode atribuir isso aos arquitetos brasileiros, como provam os resultados do concurso Porto Olímpico, no Rio de Janeiro. A área a ser desenvolvida, enorme e com um canal no meio, é perfeita para qualquer ousadia. Entretanto, os escolhidos foram os mesmos arquitetos com ligações de amizade para com a prefeitura do Rio de Janeiro. Não que sejam ruins, necessariamente (gostei bastante do primeiro e quarto colocados, e nem um pouco dos segundo e terceiro). Mas inovadores é que não são.

Uma solução para isso, mais ainda do que a de internacionalizar o concurso, querendo dizer os concorrentes, seria internacionalizar os juízes de concursos arquitetônicos, para evitar o compadrio. Para avalizar em termos de "realidade brasileira," pode-se fazer assim: 60% de arquitetos e críticos estrangeiros, 40% de brasileiros. Não seria a solução que faria do Brasil uma Holanda ou Japão, mas pelo menos daria uma bagunçada long overdue* no coreto.

*En français dans le texte.

27.6.11

Clipping

Hoje é dia de clipping. Isso porque (bem, além de por causa da preguiça) tem coisa interessante por aí:

A Nature tem um suplemento especial sobre biocombustíveis, o que deveria ser leitura obrigatória pra todo mundo que mora no país que o Ignacy Sachs advoga como líder mundial da nova civilização solar.

O xkcd explica o mercado de vinhos. E sim, eu falo isso como um esnobe que toma vinho.

Amanhã sai o resultado do concurso Porto Olímpico, que vai ser a primeira coisa concreta tanto da olimpíada quando da "revitalização" da Zona Portuária.

24.6.11

Lugares estranhos do mundo XIII - Ar condicionante

É geralmente sabido que o acesso dos mais pobres a diversos bens considerados essenciais é mais restrito que o dos mais ricos. É por isso, afinal de contas, que são pobres, ou miseráveis, ao invés de simplesmente "não ricos." O que cada vez mais se nos damos conta, entretanto, é que o rol desses bens não inclui apenas aqueles que são diretamente objeto de trocas comerciais, como comida, roupa,
moradia, ou bens duráveis em geral, como educação ou transporte, ou mesmo àqueles cujo status comercial é questionado, como água. O ar, por exemplo, ou o clima, são também apanágio dos ricos. Acontece mundo afora, graças à diferença de urbanização; os bairros ricos, com muito verde e ocupando áreas que já eram mais desejáveis, são mais agradáveis. Mas o exemplo mais bizarro disso, sem sombra de dúvida, fica na capital* da Bolívia, La Paz.

La Paz é basicamente uma imensa tigela irregular ou anfiteatro, esculpida pelo rio Choqueyapo no altiplano andino, segundo planalto mais alto do mundo. O ponto original de fundação da cidade era no alto do planalto, uma parada na rota dos tropeiros entre a antiga capital inca, Cuzco, e o Potosí, a "montanha de prata" que fez do império espanhol, e do Peru em particular, o lugar mais rico do mundo durante séculos. Os espanhóis se carrearam para altitudes menos extremas depois de poucos anos, porque ninguém gosta de passar frio o ano inteiro e respirar com a ajuda de aparelhos, e em La Paz a descida e subida não eram tão íngremes que inviabilizassem a comunicação com o altiplano, como em outros vales andinos.

Mais recentemente, entretanto, gente que não tinha muita escolha foi empurrada para cima pelo esgotamento dos terrenos no vale, em volta dos depósitos ferroviários e aeroporto do distrito, hoje município, de El Alto. Pelo nome já deu pra sacar que o lugar é meio lá em cima, não? A diferença de altitude entre o núcleo original de povoamento espanhol, hoje considerado a parte nobre da cidade, e o altiplano circuncidante, onde ficam os pobres, é de um quilômetro. La Paz tem altitude "média" de 3.650msnm, o que já é alto pra chuchu. Mesmo o núcleo nobre, a 3000 metros de altura, tão alto quanto...pera, não tem nenhuma cidade no Brasil dessa altura - Campos do Jordão fica a 1600. Lhasa, no Tibete, a do Dalai Lama, fica a 3450. Aliás, tá aí: falando do Tibete, a ferrovia Qingzang, inaugurada há nem tanto tempo pela China, disponibiliza tubinhos com oxigênio para os trechos acima de 4000m de altura, a altura de El Alto.

Índice de pessoas com alta taxa de hematócritos
Sim, isso quer dizer que em La Paz, não apenas os pobres não têm ar como a cidade se irmana à Zona Sul do Rio de Janeiro, com os pobres ocupando os píncaros e os ricos os baixios. A diferença, claro, é que enquanto o clima do Rio é melhor nos morros (o que faz eles serem pouco atraentes são ou bem restrições legais, ou bem o risco de desastres), em La Paz pobre não tem direito ao oxigênio. O que, por sua vez, faz do Rio e não de La Paz um caso único, porque clima melhor para rico, se menos extremo do que na capital boliviana, é uma coisa comum. O jeito corriqueiro de atingir isso, quando não se tem uma cordilheira dos Andes à disposição, é através da arborização e impermeabilização do solo, quando possível acompanhada de corpos d'água. Em São Paulo, por exemplo, a diferença de temperatura no verão entre o setor sudoeste (do Morumbi à Vila Mariana) e os extremos da Zona Leste é de até nove graus Celsius.


*Bem, uma das. A Bolívia, como a África do Sul, tem capitais distintas para cada poder. A capital do judiciário, Sucre, é que é considerada "a" capital na constituição boliviana.

22.6.11

Mudança de nome

Pensando em mudar o nome do blog, mas para o quê?

Alegria da Luma

Uma coisa que ficou atrás da orelha com essa coisa toda da crise nos bombeiros do Rio: por que o estado tem tantos bombeiros? São 15.000 bombeiros, um quarto do total nacional, apesar do Rio ter um duzentésimo do território e um duodécimo da população do Brasil. Mas aí você poderia perguntar: isso não é porque o Brasil em geral é desprovido de bombeiros, e o Rio é o que mais se aproxima de um padrão decente? Bem, mais ou menos São 16.550 bombeiros pra 15,993 milhões de pessoas. Ou 1 bombeiro pra cada mil pessoas, ou 103,48 bombeiros por cem mil habitantes, que é a medida usual. Guglando por dois segundos, é mais do que a maioria das cidades da Califórnia (lá o serviço é municipal), mas menos que San Francisco (148), Sacramento (123), e Oakland (108), esta sendo parte da RM de SF. Los Angeles tem 85, Long Beach 80, e San Diego 63.

Ah sim, e o Rio tem mais bombeiros do que a Califórnia, aparentemente. A Califórnia, não custa lembrar, tem mais de duas vezes a população do Rio, mais de dez vezes a área, umas dez vezes a renda (PIB), terremotos, vulcões, e tsunamis.

20.6.11

Quem paga mais?

Segundo o estudo da UHY - sindicato internacional de contadores, o brasileiro que levar 200.000 anuais de salário bruto está bem melhor do que seus iguais em outros países. O que faturar 25.000, nem tanto. A carga tributária (contando previdência) sobre o primeiro é de 26% de sua renda, sobre o segundo 15,9%. No primeiro caso, é a quinta mais leve dos países pesquisados, no segundo está ali pelo miolo, entre as mais pesadas.

Aviso: pelo estudo, poderia-se crer que a carga tributária brasileira é progressiva. Só que mesmo o pobre-coitado que leva só míseros 32.000 reais líquidos pra casa no final do ano, coitadinho, ainda está entre os 20% mais ricos da população. Então esse imposto "progressivo" brasileiro só o é dentro do universo dos 20% mais ricos; quando se diz que a carga brasileira é regressiva, está se falando de uma comparação entre grupos maiores. E, claro, mesmo dentro desse grupo restrito, a comparação não leva em conta incentivos tributários ao investimento...

17.6.11

Desigualdades regionais

Acho que já li uns três artigos esta semana dizendo que a China vai soçobrar. Um deles falava nas desigualdades regionais que esfacelariam o país. Pois bem, fui atrás dessa desigualdade nas tabelas de PIB per capita de unidades subnacionais da Wikipédia, e qual não foi a minha surpresa?

Uma diferença de quase seis vezes entre Xangai e Guizhou (isso é, a renda da primeira é seis vezes maior, por cabeça, do que a da segunda). Se usar ao invés disso Jiangsu como topo da lista (limando as cidades-estado), são quatro vezes mais ou menos Para comparar,

a diferença entre Connecticut e Mississippi é de duas vezes. (Alasca e Delaware são minúsculos, e DC distorcido - contando este, umas cinco ponto cinco vezes.)

a diferença entre São Paulo e Piauí é de mais de quatro vezes. Contando o Distrito Federal, umas oito vezes e meia.

a diferença entre Nord-Pas de Calais e Pays de la Loire é de uns 20% (a mais que a renda per capita da primeira). Contando Paris, é de umas duas vezes.

a diferença entre Hessen e Mecklenburg-Vorpommern é de quase duas vezes. (Com Alemanha Oriental e tudo.) Contando as cidades-estado, um pouco menos de três vezes.

a diferença entre Nara e Aichi é de uns 70%. Contando Tóquio, duas vezes e meia.

Ou seja, em termos de províncias, a disparidade regional na China é similar à do Brasil, um pouco maior (porque apesar de serem cidades-estado, Xangai, Tianjin e Pequim são grandes).

Ah sim, a diferença entre as províncias do extremo sul argentino, Neuquén, ou a cidade de Buenos Aires, e o Chaco é de mais de dez vezes. Mesmo entre a província de Buenos Aires e o Chaco é de mais de três vezes e meia.

O fosso do Sena

Após o assassinato na USP, maior universidade pública brasileira, agora foi noticiada uma série de furtos no campus da Praia Vermelha da UFRJ, a "Universidade do Brasil" criada em 1912 para que o rei da Bélgica pudesse ganhar um honoris causa. As autoridades da UFRJ falam em manter a abertura da comunidade para uso público, "mas..." Não sei o que esse "mas" embute na UFRJ; na USP, o assassinato foi usado como justificativa de uma política que já o antecedia, que é justamente de isolar cada vez mais a universidade da cidade, restringindo seu uso aos membros da comunidade universitária. Aos sábados, quem tenta adentrar a cidade universitária só o fará se conseguir explicar o que fará lá - isso se estiver de carro. Os ônibus dão meia-volta na entrada.

Houve um tempo, na idade média, em que a universidade era um problema. Ao contrário de hoje, em que a universidade de elite tem medo dos danos a serem causados pelos peões ao seu redor, os burgueses (no sentido original da palavra) consideravam os jovens universitários um bando de arruaceiros e encrenqueiros. Os peões, esses também no sentido original da palavra, estavam no campo e, como os pobres respeitosos das crônicas de Kipling e João do Rio, não ousariam causar confusão para seus superiores sociais porque sabiam que se o fizessem viria porrada, e muita. Bem, a não ser quando, na beira do desespero, se faziam bandidos, ou se amotinavam em gigantescas jacqueries. O que pensaria o burgomestre de Paris, que reclamava da "instituição bolonhesa" que só lhe dava dor de cabeça, de seu descendente direto, o reitor Rodas?

O movimento atual de foco total na faculdade como unicamente local de produção de saber técnico, isolado o máximo possível da comunidade, responde a um duplo anseio de isolamento entre elites e inferiores e de eliminação das contradições. Nesse sentido, o assassinato caiu como uma luva para o circo armado. Aliás, circo não, teatro - "teatro de segurança" é a expressão usada por muitos analistas para as medidas de segurança tomadas pelo governo Americano* após o atentado às torres gêmeas**, que em geral são consideradas ineficazes em si e de si, mesmo sem serem postas na balança contra o custo, aos confres do governo e à liberdade, pra não falar da paciência das pessoas, mas que provêem uma sensação, não de segurança, mas de estar se fazendo algo perante uma insegurança que só crescerá e que só pode ser enfrentada desse jeito. Cabe como uma luva num isolamento frente ao exterior como medida imposta após um assassinato que aconteceu no interior, e sem evidência de ter sido cometido por um meteco.

O curioso é isso estar acontecendo justo no momento em que o discurso da integração entre a faculdade e a sociedade está na moda...

16.6.11

Mosqueteiros

Não consigo pensar em argumento melhor a favor do fim do sigilo eterno do que o fato de Sarney, Collor, e Bolsonaro serem contra.

Omphalos mundi

A surreal cobiça pelos royalties do petróleo (e só do petróleo) voltou ao noticiário nacional. O que eu acho da distribuição dos royalties do petróleo sem levar em conta a geografia já disse aqui, mas queria acrescentar uma coisa: é impressionante como o Brasil é autocentrado. Afinal de contas, que se queira tirar o royalty do petróleo, que é pago basicamente por brasileiros, já que a Petrobrás não é exportadora líquida, enquanto se ignora os royalties sobre a mineração pagos por estrangeiros, atesta para o fato de que os estados brasileiros só pensam na competição e na divisão do butim entre si, e não no resto do mundo. Não precisaram, as mineradoras brasileiras, de enfrentar uma tentativa de impor royalties mais elevados já que o minério de ferro está pela hora da morte. (E olha que os royalties australianos atuais já são bem maiores que os brasileiros.)

Outras evidências também pulularam pelo noticiário recentemente. Assim, ainda no tema "estados brasileiros estão dispostos a prejudicarem uns aos outros em favor de estrangeiros," a guerra fiscal que o STF cerceou incluía a isenção total de impostos a mercadorias importadas via portos daquele estado. Ora, assim como a Argentina impondo dificuldades à importação do Brasil, isso só beneficia os outros exportadores. Tudo bem que Santa Catarina queira beneficiar a sua indústria em relação à paulista, mas por que beneficiar assim a indústria chinesaamericanacoreanaturcaseilá? OK, no caso da guerra fiscal isso pode acontecer justamente porque, graças ao ICMS cobrado na origem exceto para energia e derivados de petróleo, Santa Catarina não receberia nada de imposto por um produto vindo de São Paulo de qualquer jeito. Mais um motivo para se ter o IVA, sem diferenciação por categoria, já.

Parêntese: só pra deixar claro, como até a Economist, em geral pró-empresa e antiestado, admite, falando de subsídios a Hollywood, guerras fiscais em geral só beneficiam a indústria incentivada, e não resultam em muito benefício para os guerreiros. Bem, não para os estados governados, imagino que mais para seus governantes.

Saindo das disputas tributárias, o ranking iberoamericano da SCImago de produção científica foi divulgado na revista da FAPESP como um motivo de se bater no peito e comemorar, já que a produção brasileira, apesar de ainda atrás da espanhola, está muito à frente de qualquer país latinoamericano. A USP sozinha já se equivale à Argentina, e não está tão atrás de Portugal assim; a UNICAMP, a UNESP e a UFRJ são cada uma comparável à Colômbia. Mas um sub-dado mais interessante do que esse é que enquanto na América Latina e Península Ibérica a proporção de colaborações internacionais fica entre 25 e 50%, com moda nos 30 e muitos, no Brasil ela fica entre 10 e 25%, com moda nos vinte e poucos. De novo, continuamos olhando muito para o próprio umbigo.

14.6.11

Lorenzianas

A Anefac (associação de gente que lida com finanças) divulgou a notícia de que, apesar do oba-oba recente, o Brasil continua se destacando, especialmente entre seus "novos pares" do G20, pela desigualdade e pela pobreza.

Não chega a ser uma notícia especialmente bombástica, a não ser para quem caiu na confusão geralmente feita no noticiário entre estoque, fluxo, variação (no fluxo, geralmente - variação no estoque sendo, bem, o fluxo), e tendência. Assim, por exemplo, o PIB é visto como riqueza (um estoque) quando ele representa a geração bruta de riqueza (isto é, um fluxo, e que nem conta a depreciação e outras perdas de riqueza - o PIB de um país que tem que reconstruir tudo é grande). E confundido com a variação anual no seu valor, que é chamada de "o pib." E do mesmo jeito, a desigualdade brasileira tem caido muito rapidamente, em termos relativos, nos últimos anos, mas essa queda é a partir de um valor absurdamente alto.

Pausa para explicar: a desigualdade medida pelo índice de Gini não é algum tipo de expressão direta da desigualdade absoluta. Ela mede, pra começar, apenas uma dimensão da desigualdade: a renda. Não está incluída a riqueza acumulada. Mais importante, não está incluída a prestação de serviços universais. Isso quer dizer que quando você lê que a desigualdade (índice de Gini) do Reino Unido (0,36) está próxima da dos EUA (0,40), ou pelo menos mais próxima destes do que da Escandinávia (entre 0,247 e 0,269), lembre-se de que o fato de britânicos terem acesso a um sistema único de saúde, e os americanos terem que pagar médico do próprio bolso, não entra na equação.

E mesmo a desigualdade de renda não é (por impossibilidade estatística, e até por conta de sigilo fiscal) da sociedade como um todo, mas por grupos de renda com uma resolução bem baixa, quintis (20% mais ricos, próximos 20%, etc) ou decis (acho que não preciso explicar). Por isso mesmo que sociedades consideradas profundamente desiguais na África têm índices de Gini baixos: como é meia dúzia de pessoas, e não 10% da sociedade, que é mais rica, os 10% (e os próximos 10%, e etc) não chegam a ser tão mais ricos, na média, a ponto de pesar no índice.

Mesmo com todas as ressalvas, é impossível negar que a mudança recente no Brasil foi expressiva. E isso é mais impressionante quando nos damos conta de que a mudança de atividade do Estado, nesse sentido, não foi o passar de um estado regressivo (que tira dos pobres para dar aos ricos) para um progressivo (dos ricos para dar aos pobres), ou mesmo neutro. Durante muito tempo, tanto a arrecadação de impostos quanto as transferências diretas de renda do Brasil foram fortemente regressivas, tanto em termos individuais quanto regionais. Hoje, isso mudou para algo francamente regressivo, no caso da distribuição, e fracamente regressivo, no caso da arrecadação. Em outras palavras, a distribuição de renda melhorou porque o grau em que o governo privilegia a classe média (os 20% mais ricos) e os ricos (o 1%) diminuiu, não porque ele atualmente privilegie os pobres.

Que essa mudança recente (principalmente devida ao bolsa-família, mas também à maior eficácia da Receita desde o Maciel) tenha sido para uma situação ainda regressiva, mas de si já tenha baixado a desigualdade expressivamente mostra o quanto a desigualdade brasileira não é "natural do sistema," ou uma herança externa ao estado e presente na sociedade que o governo ainda não conseguiu debelar, mas sim uma situação artificial construída pelo próprio estado. O estado brasileiro, longe de, como querem, ter se tornado ou jamais ter sido um Robin Hood, foi um Hood Robin pela maior parte de sua vida, e ainda é, se pouco. E a desigualdade brasileira é um pouco pior do que não mitigada pelo estado, ela sempre foi ativamente promovida por este. De novo, falando apenas em renda, transferência direta, incluindo aposentadorias e poupanças mas não nenhum gasto do estado. Não entra nessa conta o ICMS pago pelo seringueiro do Acre para sustentar a universidade da elite paulistana. Não entra nessa conta o IPI pago pelo mendigo no Anhangabaú que vira juro da dívida e assim fundo de renda fixa. Não entra o dinheiro do FAT sustentando empreiteiras. Não entra o ônibus ou metrô que tem que andar com as próprias pernas enquanto a gasolina tem subsídio de 14% via Petrobrás. Só transferências diretas.

Nos EUA, por outro lado, considerados a epítome do capitalismo selvagem entre os países ricos, e símbolo de liberdade e capitalismo, oposto à comunista Terra Brasilis, entre os colunistas e neodescolados da direita tupiniquim, a arrecadação de impostos é fortemente progressiva, e a distribuição de rendas medianamente progressiva. Isso apesar de todos os cortes de impostos e serviços do Reagan e do Bush. (Mas, de novo, sem levar em conta a falta de SUS.)

13.6.11

A vestal ciência

É comum, quando falamos em ciência que hoje foi desacreditada, apormos o prefixo "pseudo." Assim, o racismo científico, a criminalística lombrosiana, o darwinismo social, o flogisto, as investigações paranormais soviéticas, a eugenia seriam "pseudociências," e não ciência de verdade. E estaria preservada a verdadeira, a legítima, a pura ciência. Ora, como exatamente, afora o fato de serem teorias descartadas, se pode diferenciar a ciência da pseudociência? De um ponto de vista epistemológico, parece difícil. Ninguém chama o que Lamarck fazia, por mais que estivesse errado, de pseudociência; ninguém deixa de denunciar o trabalho de Gobineau como tal. Mas Lamarck e Gobineau ambos tinham noções acerca das ciências biológicas que eram amplamente aceitas em seus respectivos tempos, e que foram pouco após amplamente rejeitadas, não sem grandes disputas dentro e fora da academia, e importantes consequências políticas.

O motivo para a nomenclatura parece ser, antes, a noção de que a ciência é, em si e de si, algo bom e que não abriga (por definição) em si o erro moralmente condenável, como se ter sido parte de atrocidades condenasse a ciência como um todo. É, de certa forma, a mesma noção, mas do outro lado da torcida, que os criacionistas manipulam quando tentam desacreditar a teoria da evolução associando-a ao racismo científico. E, claro, é profundamente problemática, para além da questão racional e filosófica, politicamente. Porque implica em acreditar que a ciência não pode falhar - e dificulta a que enfrentemos ela quando falha. O racismo científico, por exemplo, ainda deveria ser combatido por uma questão moral mesmo que suas bases científicas fossem corretas oras pinóias.

10.6.11

Por único monumento

O almirante negro, João Cândido Felisberto, já não tem mais por único monumento "as pedras pisadas do cais." Pelo contrário, é hoje homenageado por um navio da frota da Petrobrás e por uma estátua na praça XV, ambos desvelados com a presença do presidente da República, sucessor ao fio dos anos daquele Hermes da Fonseca que mandou que se jogasse cal viva nos marinheiros, depois de renegar sua promessa aos amotinados de que ao largarem as armas seriam tratados dignamente. E aí está o problema: a narrativa na qual é celebrado o Almirante Negro* é uma narrativa contracultural, de resistência ao sistema dominante - como funcionam as coisas quando essa narrativa é celebrada pelo próprio sistema dominante. Será que João Cândido, post mortem, "traiu o movimento, véi"? Não que seja o único nem o maior, nesse caso : a 4km dali, uma enorme reprodução de um busto do Benim celebra o quilombola Zumbi dos Palmares. Cuja morte é feriado.

As coisas são mais simples, evidentemente, quando se trata de revoluções, em que a nova ordem celebra seus heróis em contraposição aos da velha ordem. Mesmo quando resgata estes posteriormente, trata-se do passado heróico da nação, e não de uma luta contracultural que, em muitos casos, como no do almirante negro, ainda está sendo travada. Ele é o símbolo de uma luta contra o racismo e o preconceito social que ainda vigoram, fortemente, no país, afinal de contas. Como pode ser comemorado o herói de uma luta que ainda não terminou? Não é estranho alguém que tem Hermes da Fonseca na galeria de predecessores comemorar o homem que Hermes da Fonseca torturou? (Não que essa continuidade não seja ela mesma uma construção algo recherché, já que não houve continuidade institucional, como no modelo americano, mas uma, dois, três, quatro, cinco constituições desde então.

É uma versão simbólica do próprio problema dos partidos trabalhistas e social-democratas quando chegam ao poder de forma menos do que completa. Como continuar criticando um establishment do qual se faz parte? Mas no caso, é potencializada pelo fato de o próprio ato de celebrar "heróis de nossa história," em monumentos de bronze ou pedra ou concreto, de tempo cíclico ou de verbo oficial, ser tão irremediavelmente ligado à cultura do poder, e especialmente àquela burguesa.






*Falo da narrativa, explicitamente, e não do próprio, que apesar de liderar a revolta contra a tortura na Marinha ficaria horrorizado com parte das apropriações de sua imagem feitas, era integralista e conservador em geral.

9.6.11

O tamanho do rombo

O IPEA fez as contas, e a área de mato perdida com o novo código (des)florestal é pouquinha coisa. Algo como uma área maior do que os estados de Sergipe, Alagoas, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraíba e Rio Grande do Norte juntos. Ou, se preferir, maior do que as Ilhas Britânicas. Bobagem.

E, claro, esse é o cenário otimista do estudo. No pessimista, some-se ao conjunto de estados Pernambuco e Santa Catarina. Vamos lá: pegue o mapa do Brasil e corte fora os estados mencionados todos para ver quanto de área florestada sumiria com o código florestal. Ou, para usar uma área contígua, São Paulo, Rio, e Paraná. (Em termos internacionais, é mais do que a Suécia ou o Iraque.)

Mas pera, piora.

No bioma Amazônico, estão 60% dessa área não recuperada. Em termos relativos, no entanto, a Caatinga e a Mata Atlântica seriam os biomas mais prejudicados. Nessas regiões, o percentual de reserva legal que não seria recuperada, em comparação ao total da área desmatada, seria superior a 50%. “É um percentual muito grande se considerarmos que a Mata Atlântica, por exemplo, é um hotspot da biodiversidade brasileira”, argumentou Ana Paula Moreira da Silva, autora da pesquisa.

7.6.11

Dicionário

"Revitalização," volta e meia comento por aqui, quer dizer valorização imobiliária; é um doublespeak comum no mundo inteiro.

"Massivo" quer dizer maciço, e "atrativo" atraente, isso são apenas anglicismos de quem tem vocabulário pequeno em português e menor em inglês, recorrendo ao pidgin que é o marquetês.

"Usina plataforma," inventada pela Eletronorte e pela EPE e adotada com entusiástica alegria por Lula e, agora, Dilma, quer dizer usina hidrelétrica que vai destruir o meio ambiente e as comunidades locais igualzinho às outras, mas que através de uma comparação malbaratada com plataformas marítimas de exploração de petróleo vão ser vendidas como ecológicas, justificando que sejam feitas no meio de áreas de preservação.

Não que plataformas sejam lá inerentemente seguras para o meio ambiente. A Eletronorte só quis trocar a sua péssima reputação ambiental pela boa (e não inteiramente merecida) reputação da Petrobrás através da prestidigitação. Mas vamos lá para os custos dessas tais usinas plataforma (ou, mais propriamente, canteiros de obra-plataforma), se fossem levados a cabo: a obra de uma usina hidrelétrica emprega mais de cem vezes o contingente de trabalhadores embarcados de uma plataforma. Seriam transportados todo dia milhares de trabalhadores de helicóptero, é isso? Ou os trabalhadores seriam alojados em barracões e proibidos de sair do perímetro ao longo das obras?

Hoplitas espartanos

Uma das defesas das ditaduras que às vezes se ouve é a noção de que na ditadura, varridos os políticos, teríamos menos corrupção; os próprios militares certamente parecem acreditar nisso em suas invectivas no clube militar.

A noção é, evidentemente, asinina, mais até do que a maioria das defesas das ditaduras. Logicamente, porque se há menos transparência e controle externo dos afazeres do Estado há mais espaço para roubar. Historicamente, porque as ditaduras não varrem com políticos, só os substituem por outros; mesmo os políticos civis hoje tidos como exemplos de roubalheira Brasil afora ascenderam na política justamente durante e como aliados da ditadura - Sarney, Maluf, ACM, e Collor foram todos interventores, governadores nomeados pelos generais. E os políticos sem esse nome, militares, foram (e continuam sendo, num ministério que gasta tanto quanto os da Saúde e da Educação, sem que muito se veja disso por aí) extremamente corruptos. Exemplo disso (e com perdão à morta) é o Figueiredo. O obituário de sua viúva no Globo fala em "dificuldade financeira" pela qual ela vendeu, entre outras coisas, duas telas do Di Cavalcanti. Realmente, pagar condomínio de apartamento de luxo na praia de São Conrado e manter um haras na região serrana deve custar caro; imagino que os trocados das telas do Di tenham ajudado.

6.6.11

Números

O governo tucano paulista de José Serra criticava o custo de 33bi do projeto de trem-bala entre Rio e Campinas dizendo que com esse valor daria para construir 200km de metrô. A crítica foi encampada, de forma entusiasmada, por boa parte da imprensa. Agora, entretanto, leio sem crítica nem polêmica que o governador tucano paulista Geraldo Alckmin pretende duplicar 20km da rodovia dos Tamoios ao custo de 4,3bi. O custo por km da rodovia (que, duplicado apenas este trecho, mais barato porque não é em descida de serra, não serve pra nada; a rodovia só faz sentido inteira, do planalto ao mar) vai ser bem maior do que o do TAV. Daria para fazer, segundo as contas (erradas) do Serra 43km de metrô com o valor a ser enterrado no trecho San José Ocampo - Paraibuna da Tamoios. Mais realisticamente, daria para fazer uns 12km. Ou 60km de trem-bala. OK, a conta é imbecil, então vou parar por aqui, mas continua a pergunta: por que uma rodovia duplicada comum vai custar mais caro do que um trem bala?

CORREÇÃO: os 4,3bn são para duplicar a rodovia inteira. As contas restantes estão mantidas. O preço, assim, é ligeiramente menor do que o de uma linha de trem bala com desapropriações, enormes túneis urbanos e material rodante inclusos.

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Quer saber o preço da gasolina em qualquer canto por aí? (Qualquer canto na OCDE.)

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A Economist anda recrutando gente na Uniban pra fazer o Daily Chart. Depois da barbada com o índice de felicidade da OCDE, agora conseguiram fazer uma média superior a quase todos os elementos que a compõem, e quase igual ao maior deles. É a tabela de desflorestamento mundial, que eu acharia interessantíssima se não fosse a possibilidade de que não valha o papel no qual não está impressa.

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Cabral quis mostrar que é mais macho do que o Serra. Este mandou a polícia descer o cacete na polícia; aquele não só mandou descer o cacete nos bombeiros, como mandou prender todos os 439. 439 presos de uma vez. Cadê o povo que comparava a Dilma à ditadura militar quando o Cabral mandou prender o pessoal que tacou coquetel molotov no consulado americano?

3.6.11

Democracia racial

Uma das coisas que mais se ouve, em discussões acerca do racismo, é gente negando que tenha qualquer privilégio por ser branco, ou dizendo "eu nem me considero branco, sou da raça humana." É um sentimento muito nobre, mas quando é usado para negar o racismo esbarra na questão óbvia: é completamente impossível para um não-branco nem se considerar [negro/japa/índio/judeu/etc], porque vão lembrá-lo disso o tempo todo. São todos (ok, um tanto menos o japonês e o judeu) coloridos. Têm raça. Enquanto isso, o default-branco pode constituir a própria identidade a partir das bases que quiser; não teve uma imposta a ele. Aliás, um default-branco que também não inclui as pessoas que sejam brancas mas nordestinas e/ou faveladas.

E isso afeta as pessoas desde a infância, inclusive se refletindo no desempenho educacional. Até porque o Brasil é um país extremamente preconceituoso. Num post bem lá atrás comentei por alto sobre como o preconceito no Brasil não se restringe aos negros, mas é difícil deixar de sublinhar isso: ao contrário da autoimagem de que o país seria particularmente tolerante, o preconceito, em todos os matizes, é uma constante da sociedade brasileira. Manifestações de preconceito que seriam consideradas inaceitáveis em outros países são, aqui, lugar-comum. Quantas piadas de japonês com pau pequeno, turco e judeu ganancioso, negro bebum, bicha alucinada ou coisas parecidas ainda existem na TV?

A tolerância que foi, em alguns momentos, evidenciada no Brasil foi basicamente em relação aos imigrantes europeus e árabes brancos, e em menor medida aos japoneses, durante a época da imigração em massa, e as razões dessa tolerância, longe de serem uma certa bonomia do caráter nacional, estão justamente ligadas ao racismo. Os imigrantes sofreram preconceito, mas esse preconceito foi temperado pela crença na sua superioridade racial em relação à população nativa, negra ou misturada. Sobra até para os argentinos (de novo, com farto estímulo dos mídias de massa) que, estes, em geral têm uma atitude bem mais positiva para com o Brasil do que vice-versa. Sim, mesmo os portenhos.

Um exemplo de como a atitude tolerante para com imigrantes (e, hoje, turistas) brancos não se estende a qualquer um é a situação dos imigrantes bolivianos, cognominados aqui em São Paulo "roxinhos," e que já são parte significativa da população em alguns distritos.* Não é apenas que muitos deles sejam trabalhadores semiescravos; mesmo os que não são enfrentam uma alta carga de preconceito diário. Crianças bolivianas em escolas públicas comem o pão que o diabo amassou. O preconceito brasileiro, é verdade, difere do presente em alguns outros lugares porque quase nunca se confunde com xenofobia; com raras, apesar de cada dia mais numerosas, exceções não se pretende "expulsar esses caras daqui." Ele é, antes, hierárquico, como tudo numa sociedade tão profundamente hierárquica. Que eles não saiam da cozinha, que saibam do seu lugar, cada macaco no seu galho.

Até por isso, seria interessante revisar, não apenas a xenofóbica lei de imigração getulista, mas também as diretrizes do MEC quanto ao ensino da cultura indígena. Estas ainda não foram editadas, mas pelo que tudo indica se focarão (como o fazem as diretrizes para o estudo da África e do negro no Brasil) especificamente nas etnias que historicamente fizeram parte do Brasil. Expandir isso para pelo menos o conjunto da América do Sul, além de ajudar a combater esse preconceito sofrido por bolivianos, paraguaios, e chilenos (e outros imigrantes de origem ameríndia que venham a se tornar significativos), seria um passo em direção a uma visão de mundo escolar menos voltada para o próprio umbigo. O Brasil é um país, pelo que se vê nos bancos escolares, tão girth by sea quanto a Austrália.

2.6.11

and statistics

A revista Exame, num libelo pela privatização que resolverá todos os males do Brasil, denuncia a carência de infraestrutura aérea explicando que "enquanto o Brasil tem 175 fingers na soma de seus aeroportos, o aeroporto de Atlanta, sozinho, tem 199 fingers." É um absurdo! Um escândalo! Um único aeroporto tem mais fingers do que o Brasil inteiro!

Bueno, a movimentação total desse único aeroporto é comparável à do Brasil inteiro. Foram 88 milhões de passageiros em 2009. No conjunto dos aeroportos da Infraero, no mesmo ano, passaram 113 milhões de passageiros. Vamos refazer esse dado vergonhoso, e descrever exatamente o mesmo número assim:

Fingers por milhão de passageiros. Brasil: 1,54 Atlanta: 2,26

MÉDIA DE FINGERS POR PASSAGEIRO DE TODOS OS AEROPORTOS DA INFRAERO É DOIS TERÇOS DAQUELA DO MAIOR AEROPORTO DO MUNDO.

Não soa tão escandaloso assim, soa? Mas pera, fica melhor. O Galeão, segundo a mesma reportagem, tem 30 fingers. Ora, o Galeão movimentou 12 milhões de passageiros em 2009. Que tal

GALEÃO TEM MAIS FINGERS POR PASSAGEIRO DO QUE MAIOR AEROPORTO DO MUNDO

Olha que coisa. Com exatamente os mesmos números que a Exame usou para denunciar o absurdo que é a infraestrutura aeroportuária brasileira, a Infraero poderia se vangloriar de ter uma excelente infraestrutura. E não, isso não é uma defesa da Infraero, que sofre de todos os vícios e bem poucas das virtudes do serviço público, e isso só parcialmente devido ao imbecil modelo de negócios dela (que é culpa dos que a criaram), administradora sem ativos nem concessões sob o seu nome.

Ah sim, fingers, ou pontes de embarque, são aqueles canudos pelos quais se entra no avião sem precisar descer ao pátio.

1.6.11

Ebenezer Scrooge

David Cameron, primeiro-ministro do Reino Unido, quis deixar bem claro que não é apenas bombas que as grandes potências jogam sobre o mundo árabe. Não, ele vai fazer jorrar sobre os pobres nativos a dinheirama de 110 milhões de libras. Ao longo dos próximos quatro anos. Condicionadas, claro, para evitar o risco moral... Para a região entre o Marrocos e Omã. E conclamou seus pares no G8 a imitá-lo em sua generosidade.

Eu disse milhões, não bilhões.

Para mal comparar, um único dos Rafales que estão soltando bombas sobre a Líbia custa uns 15 milhões. A qualquer dado momento, ativos da OTAN em valor superior à generosa promessa de Call-me-Dave estão sobrevoando a Líbia. Para falar dos domínios de outro ditador sanguinário que mata o próprio povo, um único dos navios de escolta da OTAN atracados na base de Bahrain custa mais de 240 milhões de libras. O dobro da ajuda a ser distribuída, ao longo de quatro anos, cheia de condicionantes, por uma área continental com centenas de milhões de habitantes.

A parte do "condicionado" é o melhor. Afinal de contas, aquilo que é, comparativamente, esmola, tem que ser bem vigiado para prevenir o risco moral. O raciocínio não se aplica a todos os casos - o nível de "garantias" exigidas aos bancos em seu resgate após a crise de 2008 não é lá muito alto - mas é coerente com a visão de David Cameron e congêneres para a ajuda do Estado aos pobres e desvalidos da própria Grã-Bretanha. Afinal, a visão dos tories é de que se deveria retornar as coisas à feliz sensação de comunidade e pertença da era vitoriana, que eles chamam de "Big Society." A era das Poor Laws. A era que viu impostas à Índia sob os britânicos (primeiro a Companhia das Índias, depois o Raj) mais grandes fomes do que em toda a história pregressa ou futura. A era em que viver deixou de ser considerado um direito humano e passou a ser efeito da caridade alheia.

Bela meta.